18 de junho de 2017

Nimona. Noelle Stevenson (Saída de Emergência)

Nimona é uma personagem intempestiva, irreflectida, violenta, inconsequente, com um sentido de humor duvidoso, e de oportunidade enxovalhado, enfim, um péssimo “modelo de comportamento moral” para qualquer criança ou adolescente. As mortes, destruição, uma certa paixão pelo caos, as suas alianças pouco saudáveis, causadas pela protagonista, tornam-na com efeito um péssimo exemplo se se pretender instigar nos jovens leitores um manual de comportamento e de civilidade. Mas esse não é, felizmente, o fito de Nimona. (Mais)

Não sendo esta a primeira aposta da Saída de Emergência no campo da banda desenhada, e dando continuidade, até certo ponto, a alguns dos territórios genéricos da literatura a que mais se tem dedicado, procurando cumprir um papel inédito (nestas últimas décadas) em Portugal na edição de clássicos, referências contemporâneas e gestos antológicos significativos nos campos da fantasia, ficção científica, e outros géneros distintos, Nimona consegue porém trabalhar para um nicho de público particularizado, o que não o impede a uma maior universalidade. Noelle Stevenson já tivera outro do seu trabalho publicado em Portugal, a saber, a co-criação Lumberjanes (que vai saindo pela Devir), mas este é o seu primeiro projecto a solo de grande fôlego. Ambos poderiam ser descritos como “livros de banda desenhada para um público jovem feminino”, uma vez que as personagens principais, ou motrizes da acção, são femininas e seguem uma diversidade de personalidades e representação que vão bem mais além do que as fantasias sexualizadas e violentas “para rapazes” (amazonas na esteira de Sheena, Sonja, Lara Croft, ou pior, Vampirella, escapando apenas a Mulher Maravilha, quer por design quer pelo seu emprego narrativo). Mas isso seria desde logo um pequeno disparate, uma vez que não se podem fechar estes textos somente a um leitorado feminino por essa razão, já que têm elementos suficientes e constantes de uma universalidade, e que discordaria dessa ideia-chave de que apenas são “universais” os textos com personagens masculinos no centro. Nesse aspecto, Nimona é desde logo uma vitória.

Ao contrário de Lumberjanes, em que existe uma dinâmica de grupo de girl empowerment, Ninoma procura antes uma outra estrutura de integração e colaboração entre as personagens. Nimona é uma personagem misteriosa que surge para oferecer os seus préstimos de “braço direito” ao vilão da sociedade em que vive, o Lorde Ballister Coração Negro. O objectivo dela é que Ballister se torne uma ameaça ainda maior para a organização que exerce um poder oculto e opressivo sobre aquela sociedade, o Instituto para a Aplicação da Lei e Heroísmo, mais o seu paladino, Sir Ambrosius Virilha Dourada. Nimona, como se costuma dizer, “entra a matar”, literalmente. E isso serve de primeiro embate moral entre Ninoma e o aparente vilão, o qual deseja criar uma rede de resistência ao poder do Instituto, mas sem ultrapassar certas linhas de decoro e violência. Esse é o mecanismo que torna Ninoma desde logo num curioso exercício metatextual sobre o próprio género em que se insere.

À partida, aparentemente, Nimona é um livro de high fantasy: trata-se de um mundo de aspecto “medievalista”, com cavaleiros, castelos, servos e monarcas, justas e honras, combates a espada e alguma magia, envolvendo feitiços, bruxas, dragões, poções e ervas venenosas. Mas ao mesmo tempo, há espaço para um serviço noticioso via televisão, um grande interesse pelas ciências exactas e experiências laboratoriais, bases de dados computorizadas, telefones e outros bens algo deslocados dos princípios genéricos. Noelle Stevenson, portanto, parece estar a seguir aquele útimo estádio do ciclo dos géneros que John Cawelti descreveu, em que após a sua formação, repetição e consolidação se segue algum cansaço e, finalmente, se permite a sua paródia. Também se poderia pensar na banda desenhada de super-heróis, uma vez que Ninoma é uma “transmutadora” (depois descobriremos o que isso significa), o que lhe permite surgir em vários corpos e funções, recordando uma panóplia de outras personagens clássicas.

Stevenson não é propriamente original nesse acto em si (poderíamos fazer uma brevíssima comparação com Castle Waiting, de Linda Medley, ou, entre nós, por exemplo, apontar um autor como Diogo Carvalho, que tem explorado de forma muito interessante as paródias ao género, mantendo porém algumas das suas qualidades esperadas), mas é-o nos contornos em que o faz, nos elementos que introduz. E acima de tudo, a importância está de facto na maneira como Stevenson burila as suas personagens, mais através das acções, dos diálogos e dos espaços intersticiais dessas relações do que através de simples exposições temáticas. Repare-se como o título do livro e o móbil da atenção não é o “herói” Virilha Dourada nem o “vilão” Coração Negro, mas a acólita do segundo, a sidekick, sendo ela quem introduz realmente um novo peso na distribuição dos poderes e papéis.

Quando se falam de livros “feministas”, um dos problemas é entender mal esta última palavra, e achar-se que o que se pretende é uma espécie de desequilíbrio de género. Apesar das naturezas múltiplas que essa palavra abarca, fiquemo-nos pelo desejo de correcção histórico que se pretende na crença de quem ou em que condições certos papéis podem ser cumpridos: o de herói e o de vilão, o de monarca e de força antagónica, etc. Quem pensar que essas distribuições estão hoje resolvidas, vê mal ainda a questão e é nestes gestos, aparentemente populares, inconsequentes, “infanto-juvenis”, que se encontram as raízes de gestos verdadeiramente equilibrados e equalitários. A distribuição de representação e agência em Nimona não segue papéis distintos entre “homem” e “mulher” (e fiquemo-nos pelo binarismo), e essa é uma das suas dimensões mais interessantes.

Nimona não é uma pessoa perfeita, de forma alguma, mas nenhuma em todo este universo de personagens o é, e o mais dinâmico está na forma como todas elas vão tentando compreender não apenas as limitações das suas acções face ao espaço dos outros, como as responsabilidades que devem assmir perante as suas acções que com efeito cumprem. A relação entre Ballister e Virilha Dourada é bastante complexa e se há pelo menos uma questão que nunca fica respondida de forma cabal, essa “falha” não é um problema, mas antes uma responsabilização do próprio leitor em interpretar e contribuir para a narrativa. O mesmo se poderia dizer em relação a Nimona ela mesma, mas nesse caso há uma resolução mais clara, ainda que aberta. Stevenson, trabalhando num género leve e de uma forma quase ligeira, acaba por criar uma narrativa com uma estrutura densa, uma rede emocional particularmente complexa e uma pequena máquina que nos obriga a repensar a tal distribuição de papéis conforme os sexos.

Em termos visuais, Stevenson é muito devedora de estratégias da banda desenhada japonesa. Não no que diz respeito à figuração, cuja estilização e minimalização está mais próxima de uma longuíssima tradição de cartoonistas norte-americanos, sobretudo da imprensa editorial, com uma assinatura rápida, mas no que diz respeito à forma como estrutura a relação entre as vinhetas enquanto unidades de leitura e campos visuais. Tendo um formato de livro, a composição de páginas bebe de uma estrutura tipificada de grelhas irregulares de 6 vinhetas em média, com muitas variações expressivas e consequentes, mas diminuindo os cenários a cores ou breves traços, impelindo a leitura de uma forma contínua e marcada. A divisão em capítulos pareceria desnecessária, mas tem tanto a ver com a sua origem (começou como um projecto online) como ajuda a reforçar as “elipses” entre cada momento mais alargado.

Nimona é, enfim, um contributo significativo na francamente cada vez mais diversa oferta de banda desenhada em Portugal, que procura demonstrar como a qualidade não se encontra no cumprimento de géneros ou estilos mais normativos, mas antes em experiências muitas vezes mais especificadas em termos de instrumentos e até leitores. Uma obra acabada e inteligente para um público mais jovem, um livro que não tem receio de debater temas mais difíceis através de fantasias leves, e que responsabiliza o leitor a compreender os valores em questão, talvez não seja o livro ideal a quem quer a papa feita, mas sê-lo-á sem dúvida a quem tenha coragem de pensar sozinho, ainda que mais corajoso ainda de ouvir os outros. Tal qual Nimona o faz.

Um outro aspecto interessante seria analisar como, mais uma vez, um projecto que começou em webcomic ganha maior “sucesso” na sua instância material e livresca e como esse negócio “apaga” a sua vida anterior online. Essa dimensão económica e negocial, porém, poderá ser estudada por pessoas munidas de melhores instrumentos que os nossos.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na internet. 

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