12 de junho de 2017

Nagual. Diniz Conefrey (Quarto de Jade)

Com O livro dos dias, e desdobrando-se numa série de exposições, palestras, workshops, e outros gestos, sabíamos que o diálogo, senão mesmo entrega, de Diniz Conefrey à cultura ameríndia era de uma intimidade absoluta. Não se trata tão-somente de um “fascínio”, que já antes descrevêramos como um prazer que advém da ignorância, mas um saber que bebe de uma incessante pesquisa, inquirição e respeito. E tampouco se trata, nunca!, de um mero aproveitamento superficial que seria transformado em “tema recorrente” ou “assunto”, que depois se exploraria de várias maneiras. Trata-se de facto de um entrosamento e diálogo com aquela cultura para que se opere uma transformação da matéria visual-textual do autor num hausto novo, e seu, que se expressa de modos diferentes conforme o projecto. Nagual é um conjunto de histórias curtas que se apresenta então como novo ciclo dessa respiração. (Mais) 
Este volume, com efeito, reúne cinco relatos associados então a essa cultura, apenas um dos quais havia sido publicado anteriormente, na revista Intervalo, mas que sofreu alterações singulares a nível textual e visual. Mesmo suspendendo aqui uma comparação dessas duas peças, assinale-se que essa profusão de transformações editoriais, essa intervenção da parte do autor, é significativa em si mesma. Não sendo inédita em termos históricos e podendo comparar-se a práticas literárias ou outras ao longo da história da possibilidade editorial, ainda assim revela uma preocupação ética e estética da parte do autor que não é comum. Como poucos, a obra de Conefrey não se subsume a uma vontade de “contar histórias” ou “alimentar” um mecanismo de expressão, mas antes a fomentar uma permanente pesquisa, a nível gráfico, como é de esperar, mas igualmente a outros níveis. 

Conforme lições directas e específicas aprendidas com o autor, tratam-se estes relatos de uma tradução poética dos mitos dos povos do México central (associáveis, mas anteriores, aos nahua e aztecas), cada capítulo, parte ou relato – caberá ao leitor optar pelas relações de aliança entre essas peças -, poderemos compreender o conjunto tanto como uma fluidez narrativa integrada, como perspectivas distintas de facetas de uma mesma realidade. Como reza na história “O segredo”, há aqui algo “persistente na continuidade do seu silêncio observador”. Por um lado, existem elementos que podemos considerar recorrentes, desde estruturas frásicas, a “eventos”, passando mesmo por personagens – os pássaros-jaguar, a serpente emplumada Quetzalcoatl, a árvore-canção… -, mas, por outro, cada passo parece regressar a um ponto de partida virgem. Essa ambivalência organizativa é sublinhada pelas escolhas do autor em construir as suas páginas com imagens que vivem numa espécie de tensão permanente entre a abstracção estilizada (de onde emergem formas florais, orgânicas, cósmicas, de fluxos dos elementos) e a figuração, também ela estilizada, tudo elementos provenientes das artes pré-colombianas daquela complexa e múltipla cultura.

Não temos aqui, de forma alguma, uma narrativização e familiarização destas estruturas, uma espécie de manual em que se possa consultar e ficar a conhecer as histórias dos povos em questão. Há antes um encontro entre a lavra artística e poética de Conefrey com essas respirações a que o autor tem dedicado uma parte significativa da sua vida e interesses. Já a propósito do seu Os labirintos da água, e a relação com Herberto Helder, havíamos mencionado a prática de tradução deste último poeta descrita como “poemas mudados para português”. É essa ideia de mudança, de verter, que estaria prevista na prática de Conefrey, e se em casos anteriores havíamos visto alguma ideia de subsunção a um programa narrativo, aqui há uma abrangência mais directa do que passaria por poeticidade plástica da banda desenhada. Apesar da cultura a que estes contos dizem respeito, há algo próximo da poeticidade abstracta e cósmica de São João Evangelista na escrita de Conefrey, substanciada pelas imagens. Cada um dos relatos remete a mitos originários (da chuva, do dia, das cidades, das criaturas divinas que povoam aquele imaginário, das forças motrizes daquela cultura), bastas vezes agónicos, nas quais o lirismo acentua, e não desvigora, os conflitos entre as forças opostas que fazem mover as narrativas.

Recordemos o significado desta palavra grega, “mito”, que remete à ideia, primária e substancial, da estruturação dos elementos narrativos, quer dizer, muthos em si mesmo não é a narrativa, mas antes as escolhas que levaram à sua própria constituição. Dessa forma, poderemos considerar que o que Conefrey estará a operar é uma estruturação individual, singular, artística, dos elementos que colhera do Período Clássico mesoamericano – nomeadamente das suas narrativas míticas e bebendo em particular, como anota no fim do volume, das impressionantes, hercúleas mas ainda misteriosas pinturas murais de Teotihuacan, no México [veja-se, por exemplo, o mural Animais Mitológicos, de que o autor nos forneceu uma imagem, no fim].

A pesquisa visual, se ancorada de forma clara, nítida, quase directa, sobre os murais, vai explorando algumas das linhas abstracizantes que o autor tão bem expôs em Metereologias. Aliás, algumas das considerações adiante são também eco de alguns dos mecanismos de representação que operam nessas bandas desenhadas abstractas.

Nada disto significa, todavia, que o autor se escuse de se integrar nas tradições variadas da banda desenhada. Na realidade, bem poderíamos considerar o seu trabalho como corolário “natural” dos desenvolvimentos de autores que experimentaram os vários caminhos das metamorfoses gráficas no interior do emprego mais clássico, narrativo e até genérico desta disciplina. Se pensarmos numa linha que fosse unindo autores como Doré, Frost, Verbeek, Feyninger, Sterrett, entre tantos outros, veríamos mais uma continuidade, do que revoluções radicais, apenas perceptíveis como tal numa perspectiva lacunar da história. Mais ainda, seria algo produtivo compreender em que medida é que alguns dos momentos destas histórias de Conefrey, não tanto estabelecem linhas de influência ou herança directa, mas estipulam afinidades longas, com autores tais como Jack Kirby ou Jim Woodring, apontando para a possibilidade de identificar um largo espectro que iria do épico ao onírico. Lavrado numa só matéria pelo artista português.

O título da recolha, Nagual, remete a uma palavra que diz respeito a uma espécie de reflexo, totem ou imagem especular animal que pertencerá a cada ser. Seria necessária uma compreensão maior e mais integrada da cultura mesoamericana para sermos exactos e equilibrados em relação ao papel dessa noção nesse sistema, mas o que nos importa aqui sublinhar é então essa ideia de um, se nos for permitido aproveitar um termo da filosofia ocidental, e das suas inflexões desde Heráclito a Nietzsche e finalmente Deleuze, dizíamos, a ideia de um devir-animal. Isto é, a abertura ontológica ou dinâmica existencial de um nomadismo do si, em que linhas de força de outra existência, que não-humana, se vêem entrosar na identidade de partida. Recordemos que na sua discussão da relação entre a orquídea e a vespa, tanto a vespa devia-orquídea quanto a orquídea devia-vespa. O que ocorria era uma desterritorialização mútua, e não uma mera ”imitação” uma da outra, mas uma relação que se intensificava à medida que ocorria, ao ponto dos elementos criados nesses devires não ser atribuível ou subjectificável a nenhuma das identidades de partida.

Ainda que não exista propriamente um protagonista comum nestas histórias, e não se preveja nenhuma personagem humana com um papel hierárquica ou actancialmente superior (com a excepção de “Zacuala”, em que o factor humano é introduzido de forma mais directa, mas mesmo assim irmanado à figura do coiote), não deixa de haver uma permanente tensão, ou fluxo aberto, entre identidades florais, arbóreas, animais, minerais, cósmicas, que se vão encaixando entre si. É o devir da chuva. É a transformação da pele escamada da serpente em plumas. São as conchas dos moluscos empregues enquanto origem da música e do vento e, quem sabe, do movimento do tempo. É a árvore que é canção e se desdobra em ramificações permanentes, tentáculos que se estendem, rios que desaguam e se estendem. De certa maneira, há aqui uma dinâmica fluxional que nos faz recordar algumas ideias expostas no Gaïa de de Th. Cheyrol, permitindo assim a uma ideia muito alargada de um espectro holístico, de que o humano faria parte, mas não se destacaria de forma privilegiada ou central. Um fundo comum, que noutras ocasiões equacionámos ao “Mundo das Madres” de Goethe, onde se encontram em potência todas as formas. E que vislumbramos aqui e ali nestas histórias, numa “matéria impalpável de segmentos trémulos e vitais”.

Resta, então, mergulhar nesse fluxo e não temer onde a leitura nos possa levar.
Nota final: agradecimentos ao autor-editor, pela oferta do volume, e estes esclarecimentos.  

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