23 de janeiro de 2017

Groenland Vertigo. Hervé Tanquerelle (Casterman)

O regresso de Tintin. Correndo o risco de nos repetirmos, uma das expressões mais curiosas de escutar em relação à exposição e regular “consumo” da banda desenhada é aquela empregue por leitores adultos de que “cresceram com” determinado título ou género ou autor ou personagem. Depreende-se de que o crescimento é aquele dos interlocutores, em termos físicos, psicológicos, emocionais, uma vez que essa realidade a que se retorna, da banda desenhada, espera-se que se mantenha a mesma, com algum nível de conforto e de confirmação da nostalgia.  Não nos abstemos, como afirmámos a propósito de O testamento de William S., de nos integrarmos pessoalmente em experiências dessa natureza, que ignoram os avisos da lógica mental para acederem de imediato aos centros nevrálgicos da nostalgia e das respostas automáticas de prazeres infantis. Todavia, é o esforço e exigência da educação e da verdadeira maturidade que nos deve fazer procurar por outros domínios da banda desenhada, que com efeito cresceram com os tempos, e dessa forma ora trazem modo mais complexos de narrativas, ora aumentam os graus de referencialidade e integração cultural, ora se estruturam com formas visuais e compositivas mais consentâneas com uma sofisticação próxima da de outras áreas artísticas, e por aí fora. (Mais)

Mas no interior da cultura popular e da produção comercial, também se poderão encontrar exemplos de uma pesquisa interna, dentro das limitações genéricas ou estilísticas advindas da inscrição numa “escola”, que levará a alguma sofisticação interna. Isto é, que não estando propriamente a procurarem novos caminhos de pesquisa formal (como sucede com alguns autores da Frémok, por exemplo) ou de densidade dita literária, conseguem elevar os tais géneros clássicos a níveis mais recompensadores ao leitor adulto. Tal é o caso deste título de Tanquerelle que, em mais do que um ingrediente, se inscreve totalmente nesse modo vetusto que é o da aventura, e para mais, estabelecendo com a obra clássica de Hergé uma afinidade fortíssima.

Comecemos pelo aspecto superficial. Não pode haver dúvidas de que toda a abordagem estilizada de Tanquerelle é devedora da imensa família a que se dá o nome de “linha clara”, em si mesmo um descritivo bastante elástico e que aceita no seu seio variadíssimas prestações. Recordemo-nos brevemente, porém, que o termo surgiu tardiamente, e foi aplicado não apenas de forma retrospectiva aos autores da escola de Bruxelas (Hergé, Jacobs, Martin, etc.) como àqueles então contemporâneos (Swarte, Chaland, Benoît) que a empregavam de uma forma subversiva e interrogadora em termos históricos. Já o seu uso contínuo na contemporaneidade (Stanislas, Olivier Schwartz, Émile Bravo, Tanquerelle) pode revestir-se de vários propósitos e importa tentar compreender outras particularidades. Por exemplo, Schwartz, sobretudo na série Les enquêtes de l’inspecteur Bayard e depois nos seus álbuns do Spirou tenta quase tão-somente recuperar essa legibilidade numa espiral de confirmação da sua “naturalidade” da banda desenhada como meio de entretenimento infanto-juvenil. Já Bravo, também no seu álbum do Spirou e, com maior leveza, Tanquerelle neste Groenland Vertigo, procuram compreender em que medida é que este veículo pode reflectir certas preocupações contemporâneas, culturais e políticas.

Este livro é aparentemente uma semi-ficção, já que o protagonista, Georges, é um autor de banda desenhada que se lança numa viagem pelas paisagens árcticas, como o próprio Tanquerelle terá feito, dado o seu trabalho anterior. Sendo Georges o filtro narrativo que coordena todo o saber da “aventura”, o móbil da missão é outro, e o que preencherá o coração dela é ainda um terceiro. O móbil é a, perdoe-se o aparente pleonasmo, instalação de uma instalação (na acepção artística da palavra) de Ulrich Kloster, o qual poderá ser visto como uma amálgama de vários artistas contemporâneos, mas desconfiamos ser Anselm Kiefer a figura central). Toda a missão é paga por Kloster, mas também as relações entre a tripulação e os envolvidos são minadas por ele, uma vez que entra numa espiral de paranóia, já que julga que todos os problemas advindos à sua arte se devem a conspirações. Tornando Georges o depositário do seu diário secreto, instala-se uma tensão de interesses triangulados.

Porém, aquilo que alimentará a aventura da perspectiva humana, digamos assim, é, naturalmente, as pequenas adversidades do dia-a-dia de Georges a bordo do navio, as suas relações com todos os outros envolvidos, e acima de tudo a sua cumplicidade com Jorn Freuchen, um autor de literatura de viagens, que quer revisitar secretamente um local inóspito e isolado onde os espera uma espécie de “pequeno graal”. Erroneamente poder-se-ia pensar que esse objecto seria o MacGuffin narrativo do livro, mas a verdade é que ele materializa-se, é manipulado directamente pelos protagonistas e altera a relação e agência das personagens, logo tem um peso mais directo na tessitura da narrativa. O MacGuffi é, na verdade, o tal diário e as suas revelações.

Expostas desta forma, poderá dar-se a ideia de que estas estruturações de relações e objectos transformam Groenland Vertigo numa intriga tensa e rápida. Todavia, o ritmo instigado pelo autor é na verdade de uma grande tranquilidade, quase “doméstico”, não fosse a acção coordenada em espaços isolados e num navio. Todas aquelas soluções narrativas clássicas de súbitas surpresas e momentos de acção não desvirtuam essa tranquilidade, e esse é um dos outros domínios que o aparentam à obra de Hergé.

Além disso, essas afinidades poderão ser vistas em muitos outros elementos, desde a relação entre discípulo-mestre estabelecida com Georges e Jorn, ecoando a relação de Tintin e Haddock, mesmo que a relação destas personagens famosas seja antes invertido em termos de agência. Mas Tanquerelle leva às vezes esses ecos a locais familiares, como a sequência do pesadelo alimentado pela bebedeira de Georges recordará os leitores das famosas alucinações de O caranguejo das tenazes de ouro.

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A carga de referencialidade do livro espraia-se numa série de direcções: discutem-se as antigas missões nos pólos, fala-se da prospecção de petróleo, nas suas consequências ecológicas e o impacto do aquecimento global na paisagem, explora-se o mundo da arte de forma tangencial e descobrem-se técnicas de preservação do whisky. Todas estas informações, porém, são elegantemente integradas na narrativa, de forma pertinente, apropriada às personagens envolvidas e criando uma ambiência naturalista a toda a história.
Esse naturalismo aumenta visualmente pela integração (ainda uma característica da ligne claire) de pormenores precisos em relação a certos objectos, e o magnífico trabalho de cor, de suaves e competentíssimas aguarelas, que contrastam mas complementam a linha sólida e fechada de Tanquerelle.

Ao contrário de todos aqueles esforços das “profacções” em retomar as aventuras clássicas como se o tempo não tivesse passado, e suspendendo a forma como a nossa sociedade avançou em termos de aceitação do outro, de abertura das experiências humanas, culturais e política, Groenland Vertigo não abdica das estruturas clássicas da narrativa e da relação entre aas personagens e a acção, mas contemporiza esses tais valores. Daí que seja um “regresso” desse tom de aventura mais feliz do que as “imitações da norma”, ela mesmo ultrapassada já há décadas.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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