7 de dezembro de 2016

Pereira prétend. Pierre-Henry Gomont (Sarbacane)

Se os homens não são ilhas, alguns deles bem o tentam ser. Pereira, sem outro nome ou apodo que o torno à partida uma personagem cheia de vida, parece querer viver a sua vida no interior de uma redoma suficientemente confortável, longe dos tumultos que os outros agregam. Já lhe basta as agruras da viuvez e da solidão, mas que ao mesmo tempo o sustentam nesse seu isolamento. O pior é quando a força das circunstâncias, marés incontroláveis, impulsionam essas ilhas, afinal, para um arquipélago, senão novos continentes. Ora Afirma Pereira, o famoso romance do escritor Antonio Tabucchi, é a história de um homem cuja suposta mundividência, teimosa, atreita, esguia, é forçada a abrir-se para o verdadeiro mundo, por mais doloroso que isso possa ser. (Mais)

O título do livro é de uma importância extrema por razões narrativas, de forma dupla e, consequentemente, por razões teleológicas e éticas. O título italiano, Sostiene Pereira, remete a uma espécie de locução que será empregue como mantra ou metrómono de toda a intriga. Tudo o que lemos é lido como se estivesse removido em segundo grau, como se tivesse sido algo dito por Pereira a uma terceira instância que, agora, nos relata a nós a história. O verbo, para além de criar uma distância e, logo, uma dúvida, que poderá mesmo nascer nas próprias afirmações do Pereira, cria uma confusa figura do narrador, que surge então como mero veículo intermediário entre a experiência vivida pelo protagonista e o relato que o leitor recebe. Além do mais, cria uma impressão de relatório oficial, de algo que terá sido ditado de forma a tornar-se parte de um processo, acto burocrático, regrado, que faz patinar uma certa qualidade novecentista expectável do romance. Isso leva então à questão teleológica, a de que ler Afirma Pereira seria como ler-se um relatório, fruto de um inquérito policial, que traz por sua vez uma gravidade, intensidade emocional e até, porque não?, suspense à intriga, mesmo nos seus momentos iniciais e alongados em que parece não se passar grande coisa. Finalmente, desemboca tudo isso numa questão ética e que tem a ver com a figura do próprio Pereira, e a sua ulterior transformação.

Como é consabido, a relação de Tabucchi e Pessoa é profunda, tendo sido o poeta português o coup de foudre que tornaria o escritor italiano português de afecto. Ora, a personagem de Pereira não deixa de parecer um construto sob a égide dos heterónimos de Pessoa. Afinal de contas, Pereira é, como Ricardo Reis e Alberto Caeiro, cada qual a seu modo bem distinto, um observador, não agente, da vida que passa. As coisas sucedem e sucedem-lhe, e mesmo que haja uma breve vontade de intervir por entre a inteligência de como julga os factos e os outros, esses sim, agentes, é a inércia (observadora) o verdadeiro princípio, sobretudo na esfera do anímico e político. Como o autor do Livro do Desassossego, acrescente-se, Pereira orbita por entre espaços fechados e minúsculos, pequenos cosmos sem grande tumulto – o apartamento onde vive, o apartamento que faz as vezes de redacção do suplemento cultural do jornal em que trabalha, o café Orquídea em que vai almoçando as suas omeletas de ovos. E, no fim, acto único, revolucionário e irrepetível, talvez esteja ali um grito de Álvaro de Campos.

Mas também há outra dimensão e que importa sublinhar quando se fala em adaptações da literatura pela banda desenhada. Nos casos mais usuais, a adaptação cinge-se a tão-somente fazer uma transposição da cadeia de acontecimentos, mais uns quantos laivos de caracterização das personagens e dos cenários, de um meio (no caso, a literatura) para outro (a banda desenhada), sem haver um escavar mais profundo do valor estético da obra original, uma preocupação em traduzir as inquietações primárias da obra, sem uma devolução das mesmas intensidades. É o que tem alimentado grande parte das adaptações “escolares” que fizeram escola em Portugal – independentemente de terem levado a obras magistrais do ponto estrito do desenho (desenho, não composição), como é o caso de Eduardo Teixeira Coelho – e que se mantém como a bitola dessas normalizações, muitas vezes medíocres, com algumas excepções que o são precisamente por auscultarem outras preocupações (Filipe Abranches, Miguel Rocha e Diniz Conefrey, sobretudo nos projectos em torno de Herberto Helder e, mais recentemente, Conrad). Ora a frase ou fórmula “afirma Pereira” surge ao longo dos capítulos do romance de Tabucchi como uma espécie de marca rítmica, algo que ancora o relato, que mantém a distância do relato em segunda mão.

Organizado em breves capítulos o conciso romance, a adaptação cria algumas transformações necessárias, como por exemplo uma tessitura mais contínua, que simplifica as deambulações e paragens de Pereira num percurso mais concentrado. Essas alterações são necessárias, claro está, uma vez que estamos perante dois meios diferentes e, em termos gerais, quase todas elas são aceitáveis (também o filme de 1995 as faz). Mas o Pereira de Gomont, porém, que nada tem a ver com o modelo que Mastroianni criara para a versão cinematográfica, também está algo distante do de Tabucchi: menos assertivo e seguro, quase menos arguto, um contraponto ligeiramente mais patético em comparação com as figuras heróico-trágicas dos jovens com que se relaciona. No romance, há um tratamento mais equilibrado, em que tanto os defeitos e qualidades de cada qual surgem à tona, sem criar-se hierarquias fáceis entre as morais das personagens. O aspecto menos feliz, a nosso ver (para além da mudança de um franciscano em um dominicano, o que não tem nada a ver), é a assunção de uma voz “real” e “tangível” - na superfície da banda desenhada – do retrato da mulher morta de Pereira, com a qual ele fala à noite, em casa. Se no romance essas conversas apenas têm uma direcção, criando uma empatia pela solidão mas ao mesmo tempo uma saudável saudade de Pereira pela mulher, e que poderá ser lida como um exercício da sua introspecção e consciência contínua, na banda desenhada ganha laivos quase de uma fantasia, por vezes mesmo delicodoce, que impede encontrar em Pereira um crescimento ético mais vincado, lição máxima do romance.

Gomont, porém, mantém grande parte do charme dessa mescla entre a inércia de Pereira – desenhando-o como uma espécie de Mr. Hulot rotundo, de grande presença – e as suas divagações mentais e físicas pela cidade de Lisboa e arredores. Empregando vários tipos de registos do desenho ou da estrutura de composição, temos momentos mais esquemáticos e simbólicos que quase dispensam as palavras em nome de outro tipo de intensidades interiores, e outras estratégias que trazem para primeiro plano muitos dos sagazes diálogos de Tabucchi. O uso de silhuetas em muitas das cenas tanto serve para sublinhar a intimidade das conversas de Pereira com outros, ou os mistérios policiais que se vão adensando. A focalização está sempre em torno do próprio Pereira, mas sentimos que há momentos em que teremos direito, digamos assim, em perceber melhor a personagem nas suas decisões e acções do que ele próprio.

Visualmente, na verdade, o autor traduz de forma quase precisa e perfeita as palavras que Tabucchi escreveu, sobre este Verão em que a vida pacata de Pereira se vai transformar de forma radical. O “magnífico dia de Verão, cheio de sol e vento, e Lisboa resplandecia.” está patente nas bastas vinhetas largas e generosas que dão a ver os cenários sob o céu claro de Lisboa, a forma como o azul irrompe por entre os prédios, entrecortado pelas cantenárias, os vermelhos dos interiores iluminados e quentes. De facto, as opções cromáticas são reduzidas a uma paleta expressiva, de cores vincadas, quase como se manchas planas representativas de várias forças – o céu azul, a noite escura, os prédios laranjas e ocres, os corpos baços – procurassem impor-se à vez.

Adaptação singela, que nos devolve uma Lisboa exacta mas sob uma luz algo surpreendente, de um tempo que, passado, não pode ser esquecido, e de uma ficção que, a seu modo, nos mostra muita verdade, Pereira prétend é um livro que não dispensa a leitura do original, mas o faz reluzir sob as suas próprias cores.

Nota final: agradecimentos a M. T., pelo empréstimo do livro.

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