18 de dezembro de 2016

Dez anos para o fim do mundo. Caeto (Companhia das Letras)

Depois do grande gesto autobiográfico de Memória de Elefante, é possível que Caeto se sentisse tentado a dar continuidade a essa mesma pesquisa, e expressão de si, a um grau mais afastado do âmago da primeira aventura. Se ali havia uma concentração maior na figura do pai, da morte deste e a relação conturbada ao longo de anos, Dez anos para o fim do mundo espraia-se em várias direcções, tentando que elas se tornem agregadas num gesto comum. Neste livro, então, Caeto revisita a sua infância e adolescência, as mudanças de casa, de escolas e de ambiente económico, as eleições de 1990 e as implicações que isso tinha na sua paisagem social, as primeiras experiências sexuais, com drogas e de criação de quadrinhos, e depois o seu casamento, a lua-de-mel, o nascimento do primeiro filho, a mudança de casa e a separação da mulher, assim como a fabricação do próprio Memória.
Exposto desta forma, parecerá talvez que haja uma arrumação cronológica, mas isso não é verdade. Todos estes episódios visitam-se de forma desordenada, com saltos prolépticos e analépticos, criando antes uma trama temática ou pelo menos de questões recorrentes que e vão alimentando entre si. Como se a preocupação em construir uma imagem de si não pudesse organizar-se de forma linear, mas antes seguisse as respirações livres das marés da memória. Em muitos aspectos, Dez anos tem um tom elegíaco, mesmo quando os episódios são de uma felicidade extrema. Uma vez que o autor atravessou várias sessões de terapia para combater uma depressão, advinda pelo confronto emocional e intelectual que estava a nutrir pela criação de Memória de Elefante, obrigando-o a rever momentos dolorosos do passado e da relação com o pai, essas sessões acabam por funcionar como uma espécie de, não tanto “moldura narrativa”, mas pelo menos de uma estrutura que subjaz à junção destes troços. É até o seu fim, dessas sessões, que acaba por funcionar como uma espécie de pré-fecho do volume. (Mais) 

Não deixa de poder ler-se este livro como uma espécie de ajuste de contas, mas desengane-se o leitor que pensa ser esse ajuste contra os outros (os pais, os amigos, a mulher, os sogros, etc., mesmo que Caeto não esconda o conflito com todas essas pessoas e as agravações que ele julga criadas na relação com essas pessoas). Na verdade, parece ser antes uma espécie de esforço catártico contra si próprio: uma forma de apontar e solidificar em palavras e imagens noções de si mesmo para que o próprio autor se consciencialize delas. É ele uma boa pessoa? Ou uma má pessoa? No fundo, é o que sempre acontece nestes gestos: revela ser uma pessoa.

Todavia, não deixa de ser algo desestruturada a apresentação de todo estes materiais. A leitura acaba por ser por sacudidelas, em cada nova parte surge de rompão, sem linhas subtis que as façam deslizar umas para as outras, e se que haja movimentos de retorno temático que depois “puxassem” esses episódios para uma maior coerência. É como se o autor trabalhasse antes por (des)troços recuperados dessa memória alargada e fosse criando cada parte sem um grande núcleo central agregador que encaixasse tudo num só corpo vivo. A leitura é fragmentária, mas não há propriamente uma elegância na coordenação desses fragmentos. Essa relativa fraqueza é agravada ainda pela abordagem do desenho, que é ainda mais esquemático e sumário do que no caso anterior. Se os episódios mais recuados são feitos com linhas de grande contraste, quase talhadas, sólidas, há muitos outros momentos em que é claríssimo o aproveitamento de registos fotográficos, possivelmente mesmo manipuladas pelo desenho, o que traz à tona uma certa qualidade empedernida que destoa do resto, da urgência até, destas recuperações.

A catarse, como se sabe, é obrigatória, impulsiva, uma torrente, mas nem sempre significa uma satisfação partilhável com o leitor. Gesto necessário, todavia, quando terminado, far-nos-á imaginar o que reserva o futuro, não termine o mundo de Caeto.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume em pdf, da qual foram retiradas as imagens com marca de água.

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