20 de novembro de 2016

Rendez-vous em Phoenix. Tony Sandoval (Kingpin Books)

A travessia de fronteiras, em alguns casos, não é vista como possível em termos de liberdade total, mas é ela que poderá determinar a possibilidade de conquistar uma vontade que, sem o seu alcance, é esmagada na inércia. Os Estados Unidos são vistos ainda, não sem razão, como um campo mais aberto e preparado para sonhos que parecem inalcançáveis noutros contextos, sobretudo se disserem respeito a vontades que vão bem para além da mera sobrevivência e começam a ocupar áreas de criatividade artística, como a banda desenhada. Ora, pelo menos em parte, era esse o fito que o artista Sandoval tinha em querer emigrar para os Estados Unidos: a de que seria aí que o seu sonho em se tornar autor de banda desenhada profissional se poderia cumprir. Este livro inicia-se num momento em que está à espera do momento ideal para atravessar a fronteira e tentar então nesse outro país a sua sorte. (Mais) 

Mas a travessia não é fácil, e rapidamente voltamos atrás para compreender que os processos burocráticos, políticos e económicos que lhe permitiriam a emigração “normal” falharam, não lhe deixando senão a escolha de procurar soluções da travessia clandestinas. Acresce ao sonho o facto da sua namorada viver em Phoenix, tornando essa cidade do “outro lado” na primeira pequena Meca à qual a sua peregrinação deveria dar. O livro, curto, dá conta então de toda a viagem e dos seus dissabores e interacções.


Alguns críticos esgrimam a noção de que uma autobiografia apenas pode ser tão interessante quanto a vida a que diz respeito. Já havíamos debatido esta visão, que contrariávamos a partir de uma base estritamente estética, uma vez que podem haver relatos da mais completa trivialidade tratados com a mais profunda das compreensões humanas (autores como Harvey Pekar, Gabrielle Bell, Dominique Goblet, John Porcellino, David B., Baudoin, entre outros atingem os cumes dessa prática), ao passo que vidas às vezes mais “diferenciadas” podem esbarrar com uma apresentação tão pífia ou tão melodramática que acabam por surgir como meramente exercícios de estilo (e há casos de relatos de sobrevivência do cancro ou até mesmo sobre a relação como Holocausto que se reduzem a fórmulas esvaziadas). Ora, à partida, a experiência de vida a que Tony Sandoval faz menção neste livro não é “comum”, ou melhor dizendo, não será “comum” à comunidade dos seus leitores, sobretudo portugueses: a de atravessar a fronteira entre os Estados Unidos Mexicanos e os Estados Unidos da América, de forma clandestina. Todavia, como veremos, essa travessia, nas páginas da banda desenhada, é feita de uma forma algo chã que lhe retira parte do poder que poderia conquistar.

O surgimento deste livro no contexto presente torna-o pertinente de um modo especial. Naturalmente, o problema da emigração ilegal mexicana para os Estados Unidos é um tema vivo há décadas, sobretudo para as partes envolvidas, mas as recentes eleições norte-americanas, tão polarizadas e em que este tema era um dos pomos de discórdia, trouxe-o para um palco em carne viva. Já antes tínhamos dado conta de um livro que focava, em muitos aspectos, sobre as relações económicas e políticas entre os dois países e que levam a situações desesperantes, horríveis mesmo, a sul da fronteira (o saldo principal destas travessias contam-se em número de mortos). Viva la vida!, de Baudoin e Troub’s é um livro perfeitamente adulto, dando voz a várias pessoas, a fazendo abrir um espaço de expressão complexo que espelha igualmente a complexidade do assunto. Mas Rendez-vous é um livro que se atém a uma perspectiva única, pessoal, o que é compreensível, mas que jamais se interroga a si mesma ou procura contextualizações mais politizadas. Não há, digamos assim, uma dimensão ensaística no livro. Até mesmo o “final feliz” reduz-se a uma pequena piada, que ainda que possa ser vista como alívio face à experiência, acaba por tornar o projecto de Sandoval numa espécie de fuga para a frente política.  

Não nos podemos esquecer de igual modo que Sandoval está a dar conhecimento de um comportamento ilegal. Não falamos aqui da simpatia ou antipatia que haverá para com a acção em si, mas de um ponto de vista estritamente de legalidade. Sandoval dá conta de um acto que, aos olhos das autoridades do país no qual deseja entrar, é um crime, e as justificações que apresenta para a sua prossecução são, na melhor das hipóteses, comuns em termos de desejos pessoais mas, afinal de contas, algo débeis face às questões mais prementes e acesas associadas à massa de migração na qual se integra. Outras situações são mostradas e o autor compara-se a elas, sempre revelando que sabe não ser o moto dele mesmo tão “nobre” quanto os demais, mas o problema está em que a sua solidariedade nem sempre vem ao de cima, apesar dos pequenos gestos de forçada ajuda mútua.

O autor habituou-nos ao seu estilo “giro cabeçudo”, que a editora portuguesa tem dado a conhecer de forma sistemática e com grande qualidade, empregado em géneros afectos à fantasia, entre o delicodoce e o sombrio. Esta família estilística é um episódio curioso na história da ilustração e caricatura, remontando ao século XVIII italiano para criar formas de representação que, partindo do grotesco e também remetendo a experiências reais de anões no teatro, permitiam formas de criar fantasias de escala e relações de poder. Durante o final do século XIX e no início do século XX, com a alavancagem da nascente “ilustração infantil” (isto é, práticas visuais, estruturais e poéticas específicas para crianças, de uma forma diferenciada dos adultos que era inédita), introduzia-se a noção do “cute”, com autores como Rose O’Neill e Grace Dreyton na linha da frente, bebendo das proporções dos bebés para criarem as suas personagens e que seriam decisivas na banda desenhada vindoura e de forma permanente (basta pensar, hoje, na presença e sucesso de projectos de designer toys como os bonecos Pop! da Funko). Todavia, não nos podemos abstrair de que uma forma, quando é trabalhada para servir de instrumento aguçado de um propósito, ao ser empregue num contexto bem distinto, pode sublinhar usos irónicos, desviantes, surpreendentes ou então acaba por funcionar antes como um veículo algo falho.

Ora, é precisamente essa a ideia que sentimos em relação a Rendez-vous em Phoenix. Apesar do autor se manter, como é esperado, no campo do naturalismo (com a excepção de uma cena onírica-simbólica), e introduzir pequenas diferenças em termos de pormenor de linha e expressividade dos rostos, um trabalho de cor mais sóbrio, uma composição de página mais regular em relação aos volumes anteriores, não deixam estas opções de figuração por criar uma espécie de distância entre a gravidade do tema e o seu tratamento. O momento em que os mexicanos passados são assaltados, o brevíssimo cruzamento que fazem com negros americanos, e, enfim, todos os momentos mais dinâmicos, acabam por ganhar uma leveza e comicidade que parece desemparelhada com os propósitos de Sandoval.  Ou seja, de uma forma metafórica algo deselegante da nossa parte, se o autor atravessou uma fronteira em termos de conteúdo, mesmo que de modo ténue, em termos formais não a cumpriu.

Enquanto projecto, é possível que este seja um processo difícil para o autor, mas que poderá assinalar a transformação da sua vontade criativa, espelhando o que sucedeu com tantos autores antes dele. A de escaparem da força de atracção dos seus territórios mais habituais e que se constringem a géneros e fórmulas mais ou menos convencionadas para começarem a batalhar com contornos mais livres e pessoais, por vezes, quem sabe, até dolorosos. E como reza o cliché, o início de uma viagem está no primeiro passo, dado aqui. Atravessando uma fronteira.

Nota final: agradecimentos à editora e à organização dos Galardões BD Comic Com Portugal, pela possibilidade de acesso ao pdf do livro. 

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