11 de novembro de 2016

Miracleman/Watchmen. Alan Moore et al. (Levoir/G. Floy)

A publicação destes dois livros no mesmo ano, por dois projectos diferentes (mas que sabemos estarem aliados por agentes comuns), vem repor uma das muitas falhas da banda desenhada disponível em Portugal em língua portuguesa na norma europeia. As relações de ambos os títulos partem da circunstância de ambas partilharem o mesmo escritor, Alan Moore, e de fazerem parte de um projecto que ele não tem abandonado, pois mais que o pareça nas suas afirmações explícitas: a da reinscrição do género dos super-heróis numa nova relação com a referencialidade real para, a partir disso, interrogar o género mas também a fantasia, a efectividade das utopias, a realidade política que nos assiste, etc. E à distância de mais de trinta anos, não pode haver dúvidas de que houve de facto uma transformação radical desse género provocado pelo trabalho do escritor inglês. (Mais) 

Já tanto foi escrito sobre Watchmen (menos sobre Miracleman, até pela sua acessibilidade mais restrita) que é impensável retomar aqui todos os factores que lhe fizeram a fortuna. Recordemos que não apenas é um monumento na cultura dos fãs como foi igualmente influente no desenvolvimento dos estudos de banda desenhada, ajudando Thierry Groensteen a fundar o conceito de “tressage” (“entraçamento”) e a Jan Baetens e Pascal Lefévre a contribuírem sobejamente Pour une lecture moderne de la bande dessinée. Bastará dizer que é, ainda hoje, um dos marcos maiores desse género, não apenas pela sua influência como pela sua estrutura total de storytelling. Se figurativamente o trabalho de Gibbons não possa ser visto como movedor de grandes paixões, ele está porém ao serviço, e para empregar a metáfora-chave do livro, deste mecanismo de relógio perfeito que o constitui. Miracleman, um projecto anterior e que em muitos aspectos serviu de palco de aprendizagem para Moore escrever uma narrativa de maior fôlego, a par com V for Vendetta, tem uma natureza mais distinta, mais clássica, mas cujo apodo de “desconstrutivista” não podia ser mais adequado. Estão lá as sementes de muitos dos conceitos que Moore depois exploraria mais profundamente em Watchmen, Swamp Thing, e, bem mais tarde, Supreme e The League of Extraordinary Gentlemen, já para não falar de trabalhos mais curtos (como as histórias do Captain Britain, do Super-homem, a série 1963, etc.). Se bem que cada um desses projectos tenha características diferentes entre si em termos estruturais ou de referencialidade (a seriedade de Swamp Thing versus a patetice de 1963, a revisitação de um “arquivo interno” com Supreme contra a plasticidade de um imaginário literário alargado em League, etc.), eles poderão ser cosidos entre si com uma linha vermelha contínua.

Uma das possíveis facetas desse fio, e sobretudo afectando estes dois volumes, será a da noção de “utopia” no seu sentido clássico político. O projecto utópico é sempre o de projectar uma mundividência diferente daquela que impera no mundo em que ela surge, necessariamente, mas não deixa de ser um espelho imediato dele mesmo. Logo à partida, portanto, é preciso ser-se atento às especificidades de cada um destes volumes, e não esquecer se integrar Miracleman no contexto britânico da Guerra das Malvinas, nas tensões sociais que desembocariam, por exemplo, nas greves de mineiros dos anos 1980, da crise económica do petróleo, etc., e depois Watchmen no tecido igualmente deprimente sócio-econónimo e político do seu tempo. Ao mesmo tempo não podemos deixar de perder de vista que não deixam de ser fantasias de homens com fatos coloridos colados ao corpo (ou sem fatos!) com capacidades extraordinárias, e que estão plenamente integrados numa cultura muito própria, a qual, se não estiver acessível enquanto “chave interpretativa”, dificilmente torna estes livros em objectos legíveis e apreciáveis por quem está fora dessa mesma cultura. Afinal de contas, pouco importa falar de “maturidade” e “sofisticação” em relação a estes livros sem a definição limitadora do seu género. Frans Masereel, Hector Oesterheld, Gébé, Pierre Christin e tantos outros não precisavam de super-heróis para debaterem as realidades políticas dos seus contextos na banda desenhada.

Todavia, ao mesmo tempo, não vale a pena deitar fora o bebé com a água do banho. Com efeito, Watchmen é um livro obrigatório de se conhecer e ler atentamente para uma aprendizagem da história da banda desenhada e da sua estruturação, em geral, mesmo que seja para depois efectuar um afastamento desse modelo. Miracleman é algo que interessará sobretudo a uma arqueologia específica aos super-heróis mas nessa óptica não é uma obra nada displicente. Bem pelo contrário, contém toda uma série de elementos-chave interessantes e inteligentes, os quais, agora à distância de tanta produção posterior que imitou os seus modelos – Marvels, Kingdom Come, Astro City, Stormwatch, Planetary, The Authority, Justice League of America por Grant Morrison, X-Force, Invincible, etc.) poderá parecer diluída, mas por isso importa revisitar ou reler (ou, o que é provável para muitos leitores, ler pela primeira vez) para descobrir como ponto de partida.

Respeitando os princípios do que constitui uma utopia, repare-se que ambas as obras mostram-nas em construção. Quer dizer, não se trata aqui, como ocorria em Thomas More ou em Jonathan Swift, de uma visita a um algures (na verdade, um nenhures) que surge como uma estrutura já existente, mas antes a introdução num mundo que nos é familiar de um factor de transformação radical, no seu sentido literal de “raiz”, alterando toda a tessitura que surgirá. As mudanças operadas nos mundos de Michael Moran, o homem que foi transformado no Marvelman/Miracleman, e no da equipa dos Watchmen, envolvem novas tecnologias, novos conhecimentos, onde cada fenómeno e evento se encontra interligado de forma profunda, imediata e duradoura (desde a abolição da moeda ao desenvolvimento de novos motos elétricos, o desaparecimento de armas nucleares à unificação dos governos mundiais, etc.). Por sua vez, são essas implicações materiais que depois terão consequências a níveis mais abstractos, seja na criação de novas categorias políticas, sociais e até psicológicas (que o contacto com as raças alienígenas em Miracleman espoleta) ou mesmo de ideologias e mentalidades (é possível ler-se Veidt como um proponente da filosofia que Fukuyama apresentara em O fim da história e o último homem, sobre a vitória do neoliberalismo, como aliás é estudado por Andrew Hoberek num livro dedicado ao volume de Moore e Gibbons).

Na verdade, quase se poderiam trabalhar – como é feito em um bom número de ensaios – estas três obras de Moore (Watchmen, Miracleman e V for Vendetta) como uma tríade matizada mas que burilam a mesma ideia de utopia. Em todas elas apresenta-se uma sociedade estabelecida – uns Estados Unidos a mãos com várias crises económicas e uma tensão nuclear que espelha a realidade, com pequenos ajustes pela presença de super-heróis; um Reino Unido muito realista e quase trivial e cujo processo é interrompido pela violenta erupção destas personagens; uma Inglaterra fascista e distópica que começa a ser desmantelada por uma personagem misteriosa – que acaba por ser transformada, mais ou menos por uma única personagem, ou uma mão-cheia delas. Em todas elas testemunhamos essa transformação, mas não o seu desenvolvimento e continuidade pós-utopia (em V for Vendetta essa interrupção é mais abrupta, ao passo que nestes dois livros surgem breves codas, mas deixando o desenvolvimento maior fora de cena). Em todas elas as próprias novas sociedades apresentadas não deixam de surgir como maçãs lustrosas mas onde já espreita o verme (com cuidado, compreender-se-á que, leitores com acesso aos pensamentos interiores dos protagonistas, entendemos que as suas “vitórias” não são nem completas nem eternas).

Bastará reparar como, aparentemente, em todas elas se instituem hegemonias (quase) totais em que não haverá oposição de poder idêntico: Miracleman é o ser mais poderoso no seu mundo diegético ou tornou-se aliado de todos os que se lhe poderiam opor (tendo eliminado o seu maior inimigo, que também se apresenta de um modo brutal, honesto e moralmente ambíguo, sendo este um dos muitos pontos brilhantes de Moore); em Watchmen, o Dr. Manhattan resolveu abandonar a Terra, deixando que Veidt instaure a sua visão, sendo os opositores mortos (Rorsach), impotentes (Night Owl) ou mulheres cujos interesses domésticos são mais fortes que o seu hipotético poder político (aqui residindo, pelo contrário, alguns dos menos conseguidos gestos do autor). As hegemonias, porém, precisamente pela sua falta de flexibilidade e adaptabilidade, estão votadas a serem transformadas de um modo igualmente violento. E pouco importa aqui abrirmos espaço à consideração de projectos posteriores, seja as rédeas de Miracleman nas mãos de Gaiman sejam os projectos envolvendo as marcas registadas dos Watchmen na DC. Não deixando de ser possível ler esses outros trabalhos à luz destes livros originais, não nos parece ser particularmente feliz ler os gestos originais à luz de desenvolvimentos posteriores, que não estavam previstos na sua própria criação.

Não estão desprovidos de problemas, cada um destes títulos. Como dissemos, o aspecto visual de Watchmen sofre um pouco com as figuras estáticas e por vezes melodramáticas de Gibbons, e se a variedade de Miracleman oscila entre a beleza e fluidez de Rick Veitch e John Totleben e a relativa falta de elegância de outros artistas (infelizmente todos subsumidos às novas cores digitais de acordo com as novas directrizes da Marvel, uma vez que seria impossível recuperar os fotolitos das separações de cores dos anos 1980), já a escrita de Moore ainda não se encontrava totalmente apurada – muitas das personagens têm padrões linguísticos idênticos e abandonam-se a enormes solilóquios. 

Mas há igualmente aspectos redentores senão mesmo magníficos, e que continuam sendo cenas memoráveis. Pessoalmente, a forma como Moore e os seus colaboradores exploram a questão da desvanecendo-se nas suas personagens são pequenas maravilhas da escrita. Moran apercebendo-se de que a sua nova natureza não é palco para a felicidade doméstica que esperava, e vê a sua humanidade a desaparecer paulatinamente, em episódios tão comoventes como dolorosos, e Dr. Manhattan alienando-se cada vez mais das preocupações humanas ao ponto da sua distância absoluta. Nesse aspecto, estas duas personagens são na verdade muito próximas uma das outra.

As edições portuguesas em si, porém, são excelentes, apresentando-se em dois volumosos tomos que guardam tudo em que importa mergulhar para apreciar cada uma delas, e em traduções fluidas. A edição de Miracleman é particularmente feliz uma vez que reúne toda a saga principal e mais uma série de complementos de uma forma que não fora jamais feita internacionalmente. Com estas adições, portanto, voltamos ao ponto de partida, não haverá desculpa para não poder conhecer estes importantes passos no desenvolvimento deste género particular, e numa das jóias da banda desenhada contemporânea.
Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, pela oferta dos livros.

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