5 de outubro de 2016

Colecção Sandman. Neil Gaiman et al. (Levoir)

Nota de intenções: estando envolvido na tradução de vários volumes desta colecção, existe uma relação profissional entre nós e a editora.
Quando a edição de Sandman, pela Devir, se viu interrompida por problemas de cariz legal e internacional, que não era imputável à editora, tecemos algumas considerações gerais sobre a série. A elas remetemos, pois apesar da distância de dez anos, algumas dessas notas são ainda pertinentes. É verdade que a leitura desta série, no início dos anos 1990, se fez numa paisagem mediática e de produção de banda desenhada profundamente distinta daquela que é possível nos nossos dias, já para não falar da própria recepção pessoal, que tem de ser diferente por razões tão várias quanto óbvias. (Mais)

A influência da série é inegável, e seria um rol imenso a sua descendência. É natural que, numa paisagem mais alargada de referências à história da banda desenhada, não é Sandman a estrear certas práticas (por exemplo, a de explorar a “vida real” de personagens fictícias, ou a de colocar autores reais em vivências ficcionais/alternativas, ou a de pensar a própria escrita pela ficção), se tomarmos em conta a obra de um Masereel, um Oesterheld, uma Kominsky, um Pratt, Forest e Tardi ou um Baudoin, mas mais do que de “banda desenhada matura”, deveríamos falar da “abertura do mainstream a temas mais maduros”, o que é uma diferença substancial. Mas ao mesmo tempo, verificar-se-ia um outro lado da equação, para bem ou para mal, que foi o da crescente aceitabilidade do género de fantasia (adjectivável como “alta”, “urbana”, “negra”, etc.) por públicos cada vez mais alargados e com uma substancial recepção mediática fora dos canais especializados. Talvez seja hoje complicado apercebermo-nos, no seio das torrentes criadas por Harry Potter, O senhor dos Anéis (em filme), Game of Thrones, etc. que esse tipo de histórias estavam relegadas a “nichos” e não ao prime-time, e, sem querer criar mono-causas ou hiperbolizar importâncias de valor, Sandman esteve na origem desse movimento (se bem que nem todos esses produtos se aparentem à saga de banda desenhada no que diz respeito à sofisticação da escrita, à subtileza de emoções e estrutura, à validade intergeracional).

Ao longo dos seus dez volumes, os leitores atravessarão histórias da mais diversa natureza. Se no absoluto início poderemos ter a sensação de estar num território relativamente familiar, misturando a fantasia negra com o horror, com algumas veleidades de super-heróis, e num estilo visual algo atabalhoado, à medida que se avança compreender-se-á que a direcção se vai alterando para se tornar numa espécie de reflexão meta-textual sobre a própria condição da imaginação, da criatividade, dos sonhos e do acto artístico. Não apenas as suas possibilidades, mas o seu preço. Gaiman não deita a água do banho fora com o bebé, isto é, não abandona totalmente as convenções genéricas (pense-se como é possível identificar histórias individuais como de terror, policial, de navegação, drama psicológico, romance de amor, e, claro, “conto de fadas” ou “tradicionais”) ou até as ideias-feitas sobre determinados territórios literários e de banda desenhada, mas explora-os nas suas implicações mecânicas e éticas. Basta pensar nas vezes em que se cita a noção de que “era tudo um sonho” para, em vez de retirar importância ao que foi relatado por essa razão, se reforça o seu valor e função actancial em toda a trama.

Se Alan Moore havia iniciado a ideia da “desconstrução” do género, Gaiman aumenta o grau de metalepsia, das distorções internas, da capacidade de auto-reflexão, de pensamento crítico, mas sempre no intuito de reforçar as fronteiras e a importância da ficção. Ele não é um autor que deseja rasgar o poder da fantasia para revelar o quão vazio é esse escapismo, ao mesmo tempo que o mundo real se mantém vivo “lá fora”. Bem pelo contrário, reforça a potência dessa mesma fantasia e ficção como forma de compreensão desse tal real, aliando-se dessa forma a autores tão distintos como Shirley Jackson, Terry Pratchett, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Kurt Vonnegut ou China Miéville.

A escrita de Gaiman, nesta série (a nosso ver, menos concentrada do que nos seus livros anteriores, mais alternativos, mas mais burilada que nos romances, mais leves), atravessa os mais diversos humores, e é possível encontrar os sentimentos mais comoventes no seio da mais terrível e odiosa das tempestades, sentirmos a mais forte simpatia por um vilão ao cometer o seu crime, e rirmo-nos momentaneamente durante a mais prolongada das tragédias.

Se testemunhamos o modo como o protagonista, Morfeu, se vai alterando no seu âmago e desabrocha para emoções que ele não suspeitava poder sentir, na verdade não exercerá jamais a capacidade de se tornar simpático para com os leitores. Ele é, apesar de tudo, a personagem mais arisca nesse sentido. Todavia, a procissão de personagens inteligentes, vivas e completas que vão atravessando todas as histórias compensa esse estranho equilíbrio. E a leitura atenta e seguida dos volumes, ou até mesmo a sua re-leitura informada, demonstrará como há uma elegância de reflexos, pistas, simetrias, expectativas e revelações que torna toda a saga numa jóia una e coesa, de várias facetas, e que é responsabilidade do leitor descobri-las (roubamos aqui uma metáfora que o próprio Sandman emprega sobre a sua pessoa).

Não deixa de ser um cliché afirmar que Sandman nos apresenta toda uma mitologia, mas o mais importante é recordarmo-nos que, tal qual as mitologias na sua acepção mais antiga e verdadeira, são histórias de entidades que, apesar de poderosas, se movem por vontades tão passionais, falhas e patéticas quanto os seres humanos que regem (e isto é verdade nas Metamorfoses e no Génesis, nos Vedas e no Edda). E é isso o que se mantém em Sandman. Mais importante do que elogiar o seu contributo para um novo imaginário – um efeito de superfície que, sempre que imitado por outros autores, usualmente falhou -, a valência de Gaiman está em revelar o que de mais humano nos move, comove e incomoda. E ao mesmo tempo que nos redime enquanto humanos.

Para mais, a palavra “mythos” remete para a ideia de histórias, que se contam (se “tecem”!, como as Erínias ou as Euménides tão bem explicam e personificam na última verdadeira história, As Benevolentes), e que esta série também ilustra e ilumina. São tantas as “histórias sobre histórias” em Sandman, e ela própria não o deixa de ser na sua estrutura maior. Seria bem possível colher dezenas de afirmações, ditas pelas personagens, principais ou outras, autores eles-mesmos ou menores, que poderiam passar por uma espécie de “confissão de arte” da própria obra. Não é impossível pensar na possibilidade de empregar as histórias (os episódios, os contos, os “arcos”, toda a saga) como pontos de partida para o estudo do desenvolvimento da própria ideia de narrativa, fosse de um ponto de vista narratológico, criativo ou de ontologia literária.

Em termos visuais, talvez a série não prime pela coerência ou a constância, ou sequer, em alguns volumes, pela beleza. Teremos as nossas preferências, mas em termos gerais Sandman não é tanto memorável pela sua prestação visual e estrutural – que se mantem na generalidade pala “competência suficiente”, e apenas com excepções se torna mais feliz (com Jill Thompson, Marc Hempel, Bryan Talbot, Jon J. Muth e George Pratt) – do que pela sua completude literária.

A edição da Levoir contará com onze volumes em torno da saga principal, correspondendo aos dez trade paperback originais, apenas desdobrando o volume 9, The Kindly Ones/As Benevolentes, em dois, por questões de sustentabilidade material. De fora, por enquanto, ficarão os spins-offs da Morte, Dream Hunter, Endless Nights e Overture, que estendem o universo de referências mas não reforçam a narrativa central da saga. De capas brochadas e suplementadas com as imagens que Dave McKean foi criando para as capas dos comic books e as várias edições em volumes, esta será uma oportunidade para muitos leitores relerem esta significativa série ou lerem, pela primeira vez, uma obra que fez história e merece ser re-avaliada constantemente. Como soe fazer aos clássicos.

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