3 de outubro de 2016

Bulldogma. Wagner Willian (Veneta)

Com mais de 300 páginas, é tentador encontrar em Bulldogma um objecto descritível como “romance gráfico”, no sentido que se lhe atribui uma importância, a um só tempo, de tamanho, gravidade e sofisticação narrativa, diferenciado-a de outras prestações no mesmo território criativo. Não queremos de forma alguma negar a presença de todas essas características no livro, mas antes especificar, desde logo, que talvez estejamos menos em presença de um “romance” do que de um densíssima, mas livre, novela centrada na vida interior da protagonista, Deisy Mantovani, ilustradora (e grafiteira secreta) que se encontra numa encruzilhada profissional, mas igualmente nos destroços da sua vida amorosa, e no início da habitação de um novo apartamento e de projectos criativos. Todas essas linhas concorrem para criar um substrato da experiência que criam as condições do que testemunharemos da sua vida, quer aquela diária do mundo da vigília, quer aquela que é alimentada por ela nas esferas da fantasia diurna, os medos nocturnos e os sonhos a qualquer hora. (Mais) 
Desta maneira, ser-nos-ia permissível descrever Bulldogma como todo um fluxo de consciência. Estamos perante um caso próximo de focalização interna, em que o mundo diegético que se nos forma à frente dos olhos, na superfície do papel, parte da consciência da própria Deisy, mas em larga medida como se tivéssemos acesso mesmo a imagens e relampejos contrafactuais que não são de forma alguma controlados pela vontade e logicidade e razão da protagonista. Temos acesso a toda uma camada de acontecimentos que, apenas mais tarde, vamos perceber serem contrafactuais. Mas eles estão lá para complicar a própria leitura das aventuras “reais” da jovem mulher. Descrever, aliás, os eventos que compõem a trama de Bulldogma incorreria na impressão de estarmos perante um rol de episódios triviais, o que não é mentira, mas impediria de percebermos como o autor explora precisamente essas trivialidades através de métodos “mágicos”, quer pelas formas estruturais-visuais que apresenta, elevando uma mais-valia a cada um deles, quer através dessas tais interrupções.

Não seguimos, contudo, apenas Deisy. Na esfera do seu bairro, existem outras personagens, que apesar de jamais ganharem uma importância em termos actanciais ou que contribuam de forma decisiva para a história – o vizinho sofredor, um homem que se parece com o protagonista do filme Her, de Spike Jonze, os caçadores britânicos de raposas -, abrem brechas nessa linha concentrada em Deisy. Naturalmente que podemos vê-los como mises en abyme do que sucede à protagonista, reflexos distorcidos, complementos temáticos, desvios de um padrão, ou outras configurações que permitiriam a naturalidade desses arranjos, mas há uma parte significativa dessas relações que se mantém irresoluta.

Willian é, seguramente, um autor conhecedor das práticas contemporâneas da banda desenhada, com as suas preocupações de pós-géneros literários, de contaminações de várias disciplinas gráficas e artísticas, passando pelas formas multilineares permitidas pelas novas tecnologias e que influenciam as formas de distribuição dos diálogos em múltiplas ocasiões, da inevitável densidade intertextual (a ela voltaremos) que se verifica em vários circuitos, e à de elevação da banda desenhada a uma linguagem livre (mas não desprovida) das suas características clássicas. E Bulldogma é um caso maior de uma conquista nessa direcção.

Por exemplo, seria curioso fazer uma leitura comparada deste livro com The Sculptor de Scott McCloud. A obra do autor norte-americano, como se sabe, tira partido de uma forma quase sistemática e constante de toda as capacidades expressivas e estruturais da banda desenhada para criar “significado”. É perfeitamente possível ler de uma forma constante a utilização do formato das vinhetas, os ângulos de perspectiva, a composição de página, a comicana, etc. e compreender a significância de todo e qualquer gesto. Mas como havíamos visto na leitura desse livro, o seu emprego é tão gritante e em desespero da causa (de forma literal) que rompe a pertinência estética do gesto, torna-o um exercício árido, pesado e importuno. Por seu lado, não queremos dizer que Wagner Willian não tira partido de todo o instrumentário estrutural e expressivo possível à banda desenhada, mas fá-lo com uma abordagem mais próxima de um processo estocástico e de descoberta gestual, artística, próxima ao desenho. Bem pelo contrário, se atentarmos à composição de páginas, muito variada, à exploração de relação entre matéria verbal e de imagem em termos de ancoramento e de tempo do discurso, aos vários níveis de realidade (diegética, naturalmente)/fantasia, à navegação dúbia entre as focalizações das várias personagens, veremos que o controle de Willian não é de forma alguma displicente, ao acaso. Todavia, há marcas de feitura física, manual, gestual, que apontam para algumas possibilidades expressivas que nascem de uma abordagem mais livre. Começando pelos próprios traços da dita graphiation, o conceito de Philippe Marion que dá conta do labor artístico do desenho. Wagner Willian, para criar densidades e sombras e volume nos seus desenhos, cria nuvens de cinzento, possivelmente de modo digital, mas imitando efeitos de vaporização da tinta, como ocorrerá no pochoir ou stencil ou mesmo o grafitti, uma disciplina bastas vezes citada ao longo da intriga. A nível da representação, a forma como se fazem flutuações entre registos, episódios que poderiam ser descritos como oníricos, fantasiosos, extra-textuais (as “falsas” capas que vão surgindo sistematicamente como uma espécie de meta-comentário sobre a trama narrativa), etc., também criam uma camada de significação extra, que não apenas acresce à responsabilidade interpretativa do leitor, como até a complica.

Com efeito, não será sem algum esforço, e provavelmente de forma irresoluta no final, que os leitores conseguirão “encaixar” todos os acontecimentos testemunhados ou experienciados na leitura uns nos outros numa linha fechada, causal e ontologicamente clara. Haverá certamente troços que, como se costuma dizer em inglês, se “explain away”, isto é, se eliminam através da explicação. Quando Deisy fantasia com vários parceiros na cama (inclusive o artista Ai Weiwei), isso demonstra-se de facto como uma fantasia momentânea. Quando se vinga do escritor Mauro, matando-o à la Charles “Death Wish” Bronson (logo após uma conversa com um cameo de Marcelo D'Salete), percebemos pertencer à esfera da fantasia alimentada à força de jogos vídeo. E haverá um punhado de “sonhos” que poderão ser interpretados como tal, mesmo que não sejam enquadrados por cenas de adormecimento ou despertares. Mas toda a trama, digamos, “realista” de Bulldogma é entrecortada por cenas que não pertencem a essa esfera, e em retrospectiva, haverá mesmo objectos em presença dessa linha que poderão não ser interpretáveis como realistas. Perguntar “esta parte acontece mesmo?”, ou “que relação tem este episódio/cena com o resto da história?”, ou até um “afinal o que aconteceu no fim?” poderão revelar-se perguntas vexatórias para aqueles leitores que desejariam uma resolução linear e simplista dos eventos narrativos e até da construção anímica da protagonista.

Mas é isso o que permite ler este volume munido de várias estratégias bem distintas entre si mas sem que com isso se criem contradições que o minem. Esta imagem surge quando Deisy resolve explorar o interior de um buraco que reparadores deixaram no canto superior da sua sala de estar. Uma mancha de humidade que se alastrava tornou-se um buraco inexplicável e que, em vez de dar acesso ao andar superior, se abria para um espaço sempre maior. A própria Deisey entra nele e descobrimos ser o interior de uma caverna interminável e obscura... Depois ela regressa à sala, e não mais regressaremos a essa estranha dimensão. Mas a imagem em si, como poderão ver, poderá ser lida de uma maneira alargada, havendo nas formas das formações rochosas, as partes iluminadas e os vazios algo que é reminiscente de uma meia-caveira. Propositado? Acaso? Que relação entre essas possibilidades todas? É esse tipo de abertura entre o narrativo, o onírico, o estrutural e o visual que é explorado constantemente no livro.

Até certo ponto, Bulldogma poderia ser inscrito num grupo temático a que havíamos feito menção quando da leitura de Shoplifter. A eleição de uma protagonista feminina “em busca de si mesma”, através de pequenas aventuras domésticas, profissionais e amorosas, pejadas de referências às mais diversas culturas populares contemporâneas, implicariam isso, mas estamos em crer que há uma maior gravidade no livro brasileiro. Os momentos dos “passeios” (oníricos? De memória? Projectados? Fora do programa narrativo, através de estratégias metalépticas?) remetem a algum ambiente que Aidan Koch explorara em várias das suas obras, mas encontram-se aqui subsumidos a esta maior estrutura narrativa, se bem que a nudez de Deisy, a sua insistência em mergulhar em águas, as plantas em seu torno, permitissem uma leitura psicanalítica e feminista (possivelmente com resultados previsíveis, mas ainda assim merecedores da nossa atenção).

Efectivamente, há uma questão importante que é a do intertexto em Bulldogma. O autor torna de forma explícita os seus exercícios de citação, como quando, por exemplo, mostrando um poster de um filme num quarto ou num bar ou permitindo “escutar” uma composição musical que atravessa o livro nos premeia com notas de rodapé informativas. Mas não apenas nisso que cria essas redes. Elas surgem em relação a toda e qualquer forma criativa e muitas vezes fazem parte até do discurso das personagens. Há um momento, por exemplo, em que Deisy se refere a Playground, de Berliac, que se torna uma espécie de modelo para ela mesma no projecto de banda desenhada a que se entrega (sendo claro, pelo menos até certo ponto, que não deixa de ser um reflexo metatextual ao próprio livro de Wagner Willian que estamos a ler, mesmo que existam distâncias biográficas distintas, mas pouco importantes para a nossa leitura). É mesmo difícil evitar criar redes de citações mais ou menos indirectas... a implicação de que Deisy criará a sua própria “novela gráfica” recorda alguns dos argumentos em torno do caso Judith Forest; as citações de filmes e outros produtos de sub-culturas cria um fenómeno idêntico à de muitas referências da banda desenhada alternativa dos anos 1990; a indecisão, ou bem pelo contrário a abertura, sexual de Deisy remete à literatura confessional de autoras tais como Bechdel, Gloeckner ou Bell, cada qual a seu modo...

Essas referências tanto podem servir para aumentar uma textura cultural da qual Bulldogma se eleva ou na qual medra, como se podem tornar formas de criar uma rede de diálogos interpretativos, com implicações não apenas na trama narrativa como no seu juízo político e social. A título de exemplo, a forma como vamos lendo os axiomas grafitados nas paredes das ruas pelas quais a protagonista de move vai ganhando importância, à medida que as articulamos com as acções ou o que aprendemos sobre a vida dela. A nossa capacidade de leitura de pormenores também pode ganhar uma função de adensamento dessas referências (uma lata na prateleira de um supermercado, a corruptela sobre uma marca, um balão referencial para denotar um termo onomatopeico, um brinquedo sobre a secretária), que criam não apenas essa sensação de realidade partilhável, como de estrutura cultural à qual a vivência de Deisy responder. Veja-se também a contínua forma como o trabalho profissional de Deisy, enquanto ilustradora inscrita numa agência, trabalhando para marcas comerciais, depois para um autor literário conhecido, etc., pode ser lido como um comentário sobre a situação financeira, política, ética, em que todos os autores trabalham, inclusive as do próprio autor. Não sendo uma obra autobiográfica, e sendo até possível que uma leitura dessa natureza pudesse ser abusiva para com Willian, não deixa de transparecer essa possibilidade, mesmo que remota.

Porém, não é essa a direcção que tornaria a leitura de Bulldogma mais forte, mais relevante nem estimulante. Essa deve ser aquela que desliza de forma, a um só tempo, descomprometida e comprometida com a superfície do livro. Descomprometida porque Bulldogma pede que seja lido de uma assentada, tal qual a vida se vive, num fluxo ininterrupto e onde os seus vários componentes não são vistos como incompatíveis por questões de estilo, modo ou humor, mas pura e simplesmente parte intrínseca da vida. Comprometida pois é preciso ter-se em atenção como as aparentes formas livres com que o autor tece os episódios e as páginas, mesmo sendo fruto de abordagens descontraídas, são fortalecedoras desses significados mais ocultos mas “sem segredo” (isto é, sem um enigma último que possa ser decifrado, mas tão-somente vivido). A teórica da narratologia Marie-Laure Ryan considera o seguinte: “A narrativa não é apenas uma intriga reduzida a um arame capturável por sumários, mas a expansão desse arame numa experiência imaginativa total num mundo espácio-temporal ao qual reagimos intelectual, emocional e por vezes esteticamente”. Se procurarmos esse arame somente, é possível que se instalasse uma insatisfação, mas que se nutriria pela distração e ignorância. Pode até ser discutível se a camada emocional de Bulldogma não é um tanto ou quanto menos desenvolvida, já que não se trata aqui de uma concentração nessa dimensão humana. Mas já esfera da intensidade intelectual e estética, não poderá haver dúvida de que este livro de Wagner Willian atinge um plano superior.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. O autor tem um blog em que desdobra muitas informações e referências, aqui.

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