30 de setembro de 2016

Matadouro de unicórnios. Juscelino Neco (Veneta)

Este novo projecto de Juscelino Neco partilha muitos elementos comuns com o seu anterior Parafusos,zumbis e monstros do espaço, na medida em que a acção se desenvolve em torno de princípios de abandono em episódios de uma grande violência física, mortandade e cinismo, mas de tal forma exagerado que não é propriamente o terror o efeito que se desenvolve no leitor. Todavia, estamos algo afastados da leveza e humor desse outro livro, encontrando-se em Matadouro de unicórnios um tom mais grave. Não nos enganemos, o cinismo está lá, e em grande medida todo o livro é uma espécie de gozo directo com várias modas e tendências de alguma cultura popular, mas ao mesmo tempo busca-se seriedade nesse tratamento. (Mais) 

A premissa em si não é particularmente original, com um escritor, Gonçalo, a tentar batalhar as suas crises de não conseguir avançar num novo projecto literário, ou mais, de encontrar nessa vida uma satisfação financeira e anímica. As circunstâncias obrigam-no, portanto, a procurar várias soluções, que se entrosam na sua vida pessoal, que também não está de grande saúde no que diz respeito aos amores, amizades e até outros circuitos. Parte dessas soluções está no apoio que dará a um escritor medíocre, fã de serial killers, a escrever a biografia de um assassino conhecido como “Maníaco do Shopping”, que se encontra preso, mas está disposto a contar a sua vida e acções para sua própria glória. Gonçalo, que praticamente adopta o processo do Actor's Studio, acredita que apenas uma experiência real de assassinar uma mulher o poderá “entrar na cabeça” do sujeito desse livro. E quando descobre que a acção em si é simples, não a largará mais, sempre na ideia de que é um processo de descoberta, pesquisa mas ao mesmo tempo de libertação do seu verdadeiro ser.

Neco parece aqui fazer pouco da admiração que muitos nutrem por estes seres desprezíveis e sem qualquer capacidade de redenção humana que são os assassinos em série, cujo móbil nada tem a ver com objectivos ulteriores, mas um prazer quase objectual na própria acção de aniquilação. Em vários graus representados pelas personagens – o assassino original, o seu fã e o escritor-que-imita – deparamo-nos com os matizes da pobreza espiritual de que o ser humano é capaz. Por isso o autor mostra não apenas a descoberta da acção de assassinar pela parte de Gonçalo, mas igualmente a suave mas costumeira “espiral” com que vai descobrindo as suas idiossincracias não apenas nos processos de matança como de disposição dos corpos de uma forma quase tranquila. Não deixa de haver a espectacularidade necessária – as nuvens ou chuva anárquica de sangue espirrando, que até atinge a própria capa do livro, a fixidez do rosto do protagonista no centro da sua loucura, os desarranjos sobre o tempo da própria trama da história (em que o autor aproveita para desenhar com uma linha menos estilizada, sem gradações de cinzentos e com um pontilhismo sumário), etc. - mas ela surge sempre subsumida a estruturas clássicas e bem-comportadas de composição de página.

Até a maneira como Juscelino Neco emprega os seus modos de legendagem, com uma letra sempre mecânica, sem serifas, traz uma qualidade de apatia ou homogeneidade a Matadouro de unicórnios, como se desejasse diluir a passionalidade imaginada num tom neutro. Apatia que, de resto, se nota igualmente noutras personagens, seja “o público geral” (representados de forma claríssima pelos compradores no final do livro) ou a mãe chocada. Ou seja, o livro acaba por ser uma forma de criticar toda uma série de comportamentos atávicos na sociedade humana, que elege assassinos em série em modelos heróicos (basta pensar as bastas vezes com que a ficção os trata como pessoas com inteligências superiores à media, cultos, educados, etc.) e se espoja em produtos sub-culturais ou middlebrow como se fosse a maior conquista de que fosse capazes intelectualmente. Não haverá melhor? Possivelmente. Mas Neco esfrega-nos na cara esse facto.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

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