24 de junho de 2016

L'Usine. Yang Yu-Chi (Slowork Publishing)

Este livro com pouco mais de 20 pranchas é, apesar da sua natureza aparente, uma espécie de diatribe contra uma natureza do mundo dos negócios globais e a forma como esse capitalismo móvel deixa apenas um rasto de destruição pela sua passagem a todos os níveis. Natureza aparente, dizemos, pois poderá parecer uma pequena fábula para crianças, disfarçada que está. (Mais) 

Tendo em consideração como a “China” – numa sua acepção mágica, generalista e falsa – é muitas vezes vista como o inimigo das nações ocidentais, no contexto da geografia económica, sendo a China um local preferencial da deslocalização das empresas industriais, não deixa de ser surpreendente termos a oportunidade de lermos uma versão “do outro lado”. O autor Yu-chi, de Taiwan, constrói aqui uma mescla de banda desenhada documental, autobiográfica e de fantasia. Com efeito, uma das primeiras dimensões a sublinhar neste livro é que se aparenta com um número de outros trabalhos que, empregando estratégias ficcionais ou até fantasiosas, não deixam porém de tecer comentários de um realismo social e político absolutamente claro. Recordemos, por exemplo, o projecto da Buraco 4, ou de muitos dos autores que reunimos na SemConsenso. A criação de um discurso que desmonta as políticas económicas neo-liberais e lesivas das economias e culturais locais pode tomar a forma de um ensaio, como nos casos de Squarzoni, é certo, mas também se pode estruturar em torno de uma experiência mais individual, quase autobiográfica e mostrando pinguins antropomórficos.

Ao lermos esta história, acompanhamos sobretudo a vida de uma pinguim fêmea que trabalha numa fábrica de montagem de bonecas do tipo da Barbie, da Mattel. Trabalhando na linha de montagem, não tem dinheiro suficiente para comprar esse mesmo produto, e as cenas concentram-se no dia a dia. O olhar da narrativa perscruta a vida quotidiana da trabalhadora, mas igualmente o ambiente em seu torno, e as transformações sociais e ambientais causadas pela fábrica em que trabalhará ao longe de anos... Há, porém, momentos de ternura e sobrevivência, como a forma que a protagonista acaba por montar uma boneca, totalmente feita de partes defeituosas, paulatinamente, para oferecer à filha, a qual terá oportunidades diferentes. Mas um outro momento de crise está no momento em que a fábrica, como se estivéssemos num filme de Miyazaki, se levanta e atravessa a ilha para outros lados. O desaparecimento súbito da fábrica, depois de anos a fio naquele local, representa um abandono total dos seus antigos trabalhadores, que perdem o direito às suas pensões e direitos, dado a que única preocupação da empresa é a do lucro... Além disso, há aspectos que demonstram uma igualmente lenta mas segura destruição do ambiente.

Todos estes episódios, aprendemos com o epílogo, são fruto da observação do autor da sua própria vida, uma vez que a mãe trabalhava numa fábrica em Taiwan que mais tarde passaria para o continente chinês. É dessa maneira que entendemos essa tal dimensão biográfica e realista em relação à vivência económica da sociedade taiwanesa, transformando a fábula numa instância de arte política. Esta, ao contrário do mais imediato impulso, não tem necessariamente que se estruturar através de princípios pedagógicos ou panfletários. Não há qualquer razão para acreditar que existe um divórcio entre a expressão política e a experimentação (aqui explorando territórios familiares de géneros infantis, porém).

Se utilizámos o título em francês, é por ser ele que está em grande destaque na capa. Mas também o estão os ideogramas tradicionais chineses, que se leriam foneticamente “gong chang”, juntando os ideogramas para “trabalhador” (aquele que parece um I maiúsculo) e para “fábrica”. É com atrevimento, não sabendo chinês, que apenas interpretamos a separação entre o ser humano que trabalharia no lugar e esse mesmo lugar, como sublinhando precisamente a natureza das relações que são exploradas (palavra nada inocente) no livro.

Em termos formais, não estamos perante uma natureza demasiado estranha, bem pelo contrário, parece que Yang Yu-chi é um autor bastante familiarizado com a banda desenhada ocidental, empregando composições sóbrias e controladas. O seu desenho é muito realista, detalhado e atento à expressividade das emoções, que consegue instilar nas suas personagens em forma de pinguins. Quando surgem personagens humanas, representam “estrangeiros” (não necessariamente euro-americanos brancos), mas sem olhos, o que diz muito da cegueira não apenas dos próprios empresários como dos clientes sedentos pelos produtos baratos (para eles mesmos, não para os seus produtores-proletários) em relação à vida que é aqui exposta.
Este livro, pelo menos em parte, poderá ajudar-nos a deixar-nos dessas cegueiras.

Nota final: agradecimentos a Pepedelrey, por nos colocar na senda deste livro.  

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