11 de junho de 2016

Le piano oriental. Zeina Abirached (Casterman)

Este livro coloca na linha da frente várias relações bicéfalas entre objectos ou realidades que parecem distintas, mas cujo entrosamento faz aceder a uma força maior, ou até mesmo a uma nova natureza. O bilinguismo. A relação entre a música ocidental e a “oriental”. O próprio instrumento do piano. A banda desenhada. E a história pessoal e familiar da autora. 

Zeina Abirached é sobretudo conhecida pelos seus livros autobiográficos publicados na Cambourakis, destacando-se Mourir partir revenir. Le jeu des hirondelles (que será lançado em português brevemente integrada na nova colecção Novelas Gráficas da Levoir) e Je me souviens. Beyrouth, tendo tido nós oportunidade de citar o trabalho dela em várias ocasiões, ainda que jamais falado dos livros directamente. Nascida no Líbano, e de expressão francófona, a autora tem procurado, como Edmond Baudoin, Marjane Satrapi, Étienne Davodeau, Marco Mendes, Francisco Sousa Lobo, topedro, entre outros autores, a ir lavrando a cada novo livro uma pequena pedra de um muro tão coeso como de construção livre. Le piano oriental, apesar de à primeira vista não o parecer, não apenas dá continuidade a essa construção como lhe aumenta o escopo. (Mais)

Aparentemente, este livro versa a vida de um libanês chamado Abdallah Kamanja, que nos anos 1960, apesar de trabalhar como copista de uma companhia comercial, nutria um sonho profundo: o de manipular um piano ocidental de tal forma que permitisse interpretar quartos de tons, isto é, características sonoras que não estão presentes na escala cromática ocidental mas fazem parte de muitas tradições musicais “orientais” (se bem que a história das relações musicais seja mais complexa do que isso). Temos aqui, portanto, uma primeira relação que parece ser de oposição, mas é na verdade de complementaridade, aquela entre as duas tradições musicais em diálogo. O piano, recordemo-nos, é ele mesmo um instrumento que pode ser visto enquanto híbrido, uma vez que combina características de instrumento de cordas e de percussão; o piano inventado por Cristofori permite que a intensidade da pressão nas teclas exerça uma alteração no som produzido, trazendo uma diferença de natureza sobre o cravo, a espineta, etc. Kamanja resolve o seu desejo através de soluções mecânicas, utilizando os pedais para permitir criar esses quartos de tom.

Seguimos, portanto, a vida pessoal de Kamanja, o seu emprego, a forma como conheceu a mulher, a relação com o melhor amigo, com quem viaja a Viena para apresentar o seu instrumento com vista à sua comercialização, os seus contactos com muitos dos músicos que fariam as delícias dos públicos dos anos 1960 e 1970, inclusive para além das supostas fronteiras do “mundo árabe”, como as divas Om Khartoum e Sabah. Porém, esta biografia não é apresentada de modo linear, mas antes em fases que despedem linhas que se tecem em muitas outras. Em primeiro lugar, em termos visuais, como veremos, Abirached procura tecer várias camadas na da “realidade”, passando pela materialidade musical à dos sonhos, desejos e projecções das personagens. Mas há uma outra dimensão mais destacada.

Alternadamente, Abirached volta a falar da sua própria experiência de vida. E é aí que o bilinguismo surge como um outro tema em Le piano oriental. A autora demonstra como procedeu a sua aquisição da linguagem, sendo o francês a língua principal, mas mosqueada de expressões do arábico levantino. Há todo um projecto de identidade que é verificado pelo encontro particular dessa linguagem, que por sua vez serve de questionamento de qualquer absolutização de identidades “puras”, sobretudo aquelas que se pautam por ideias de cultura ou civilização que não tomam em conta as porosidades culturais que, de resto, o piano de Abdallah quer criar.

Tal como Baudoin foi criando uma rede de memórias pessoais paulatinamente maior ao aceder às histórias relativas aos seus familiares, e David B. o cumprira imediatamente com L’ascension du haut mal, como que criando uma “autobiografia alargada”, também Abirached procura fazer o mesmo neste volume. É que descobrimos, por informações extratextuais, que não apenas a figura de Abdallah corresponde a uma figura histórica, a de Abdallah Chahine, como ficamos a saber que ele era o avô da autora. De certa forma, portanto, a exploração da tessitura da vida do avô, a sua invenção e ideia de “travessia cultural” preparava já aquilo que seria cumprido pela neta de outra forma, no mundo da banda desenhada.

Não se torna, então, nada inesperado, que esta história de vários encontros entre opostos complementares encontre a sua linguagem mais apropriada a banda desenhada, a qual pode ser entendida (ainda que seja algo redutor, funciona enquanto descrição sumária) como o encontro entre as imagens e a escrita.

Abirached é muitas vezes comparada, de forma quase directa, com Satrapi. Não é de todo surpreendente que se coloquem duas mulheres, de origens do Médio Oriente, de expressão francesa, a trabalhar a banda desenhada autobiográfica em que a vida pessoal se entrosa com questões de representação social e luta política esgrimida pelo conflito bélico e palcos internacionais numa mesma frase. Para mais com uma abordagem de estilização extremada a preto-e-branco. Dito isto, porém, existem diferenças de monta, que nem sequer passam por questões identitárias, uma vez que não são ambas árabes nem muçulmanas - Satrapi é iraniana, Abirached, se não estamos em erro, é cristã -, derrotando a errónea confusão entre esses termos. De um ponto de vista estritamente estético, Abirached é uma autora mais desenvolta, a qual não apenas procura uma maior densidade em termos de marcas gráficas nas suas páginas, criando intricadas tramas padronizadas e detalhadas, como é alguém que procura criar composições de prancha não apenas mais diversas e visualmente espectaculares (no sentido de sentido do espectáculo) como profundamente aliadas a metáforas visuais que sustenta e se procuram integrar da forma mais elegante possível ao tema que está a explorar. No caso de Le piano oriental, por exemplo, vejam-se as metáforas que ela faz desenvolver ao longo de páginas em torno do jogo mikado, do tricot, do bilinguismo ou partituras duplas, já para não falar da forma como certos pontos recorrentes – o pio do canário, o toque no chapéu tarboosh, o surgimento de palavras escritas em arábico e, claro, as notas flutuantes do piano.

Adicionalmente, ao passo que Satrapi quer claramente explorar as dimensões políticas afectas à sua autobiografia (citando Marx directamente, explicitamente citando aspectos de transformação social, colocando-se de um lado do conflito, sublinhando os contornos feministas da luta da mulher iraniana não-alinhada coma Revolução Islâmica, etc.), Abirached está mais interessada em focar as emoções mais íntimas, os episódios familiares, preocupações mais quotidianas. O que não retira a possibilidade de leituras políticas, claro está, mas a torna menos contundente que Satrapi nessa óptica.

A autora também manobra um ponto interessante de equilíbrio entre as suas limitações e as suas forças. A figuração de Zeina Abirached é mínima, trabalhando sobretudo a partir de módulos geométricos cujos princípios de variação são reconhecíveis. Por isso a autora disfarça essa valência numa estilização tão extremada, levando a que haja um uso fortíssimo de objectos padronizados e desenhados de modos simples. Quando desenha vistas panorâmicas e gerais, quase parece estarmos a olhar um cenário desenhado segundo os princípios do Isotype idealizado por Otto Neurath com Gerd Arntz. É nas figuras maiores que a autora explora as tais simplificações expressivas, que ainda assim dão espaço a alguma inventabilidade gráfica.

Uma das medidas de expansão das tais metáforas visuais no plano da materialidade do livro encontra-se no momento, central e intenso, quando Abdallah cumpre a sua demonstração de como o mecanismo do piano funciona em Viena, aos Hoffman, que comercializariam o seu instrumento. Temos um spread em que vemos o teclado e as mãos do inventor, o qual se abre do meio para fora, revelando um spread maior equivalente a quatro páginas [ver esta imagem, com a autora]. Existem outros exemplos, recentes, de autores que tiram partido desta técnica, sobretudo na banda desenhada mainstream norte-americana de super-heróis, para poderem ter um espaço de espectacularidade visual, ou de intensidade da acção. Abirached, por seu lado, não deixando de dar espaço a uma imagem elegante de deleite geral dos Hoffman enquanto escutam Abdallah Chahine a tocar, faz igualmente que se torne esse o espaço para tornar explícita a forma de funcionamento, aproximando-a talvez daquilo que Fresnault-Deruelle chamou de “imagens enciclopédicas”. Se bem que a autora não trabalhe pautas musicais verdadeiras – isto é, utilizando documentos reais que mostrassem a notação cromática com a correcta distribuição das notas -, ela cria um esquema simétrico que tenta mimar a dualidade prometida pelo instrumento, isto é, os momentos em que a escala usual ocidental e, quando se pressiona o pedal, se conseguem fazer soar divisões menores.

O piano acabou por não se tornar um sucesso comercial, mas não deixou de fazer história (existindo gravações), quer no Líbano querem histórias mais diversas do próprio instrumento ou até das possibilidades musicais a que dava acesso, cumpridas pelos pianos electrónicos. Todavia, isso quase serve de metáfora ao próprio projecto da autora libanesa. São divisões menores de grandes territórios criativos a que a autora dá acesso, mas é nessa menoridade que ao mesmo tempo reforçamos diálogos maiores. Isso, em si, é uma conquista.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na internet, com uma excepção, mal fotografada.

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