1 de abril de 2016

Unflattening. Nick Sousanis (Harvard University Press)

O surgimento, recepção e impacto de Unflattening têm sido significativos, se bem que algo confusos. O que nós próprios cumpriremos não deixará de partilhar algumas das contradições que a obra parece suscitar. Se bem que a leitura deste livro tenha sido feita há algum tempo, a sua demora deve-se ao facto de esperarmos que se tornasse pública uma entrevista que fizemos ao autor, em colaboração com Hugo Almeida. A entrevista foi publicada no site The Comics Alternative, com quem temos vindo a colaborar e encontra-se disponível aqui. (Mais) 

O ponto que torna diferente Unflattening é o facto de se tratar do resultado da tese de dissertação de Nick Sousanis. Não e trata de um projecto artístico que seria depois complementado com um relatório ou defesa, não se trata de um complemento prático ou de exemplo analisado no corpo da tese, trata-se de facto do corpo que compõe toda a argumentação da dissertação. A banda desenhada é a tese, ou a tese é em banda desenhada. Criada, entregue, aceite e defendida como tal no final do percurso do doutoramento de Sousanis na Universidade de Colombia. Apresenta de forma pública e fragmentada no blog do autor, tornar-se-ia ainda mais surpreendente por ter sido convidado a publicá-la, com pequenos acertos (v. entrevista), pela editora da Harvard. Isto que dizer que, logo à partida, e exercendo algum poder de autoridade, este projecto estava “defendido” por duas instituições prestigiadas e prestigiantes da academia norte-americana.

Até certo ponto, e como é discutido por algumas pessoas, isto tratar-se-ia de “mais uma conquista” ou “mais um passo em frente” em termos da aceitabilidade ou respeitabilidade da banda desenhada enquanto uma forma viável de pensamento ou transmissão de conhecimento. Na verdade, e é esse que parece ser o âmago da pesquisa de Sousanis, Unflattening tem como propósito discutir e demonstrar a maneira como o emprego concorrencial e complementar de palavras e de imagens, e sobretudo da estruturação sequencial e espacial que é permitida pela banda desenhada, ilustração ou outros territórios contíguos, pode significar um salto qualitativo e poderoso em relação à aquisição do que está a ser transmitido. 

O imo da obra está em discutir e defender a utilização das imagens (mormente o desenho, e muitas das técnicas formais associadas à banda desenhada – sequencialização ou conjuntos articulados de imagens distintas, uma composição significativa da página, uma imagetização das palavras, uma integração do texto de forma pertinente na matéria visual, etc.) num discurso argumentativo, de pensamento. Há, então, de raiz, uma abertura à transdisciplinaridade, à convergência de saberes e fazeres para construir uma visão e acção complexa e facetada. Com esse fito, Sousanis bebe de diferentes fontes disciplinares. História da ciência, filosofia, literatura, sociologia, física, etc. são os blocos académicos que criam os arcobotantes deste edifício. Citações lavradas e desenvolvidas de Calvino, Kafka e do magnificente Flatland, de Edwin Abbott Abbott criam outras substâncias que musculam o projecto. E todo um manancial mais ou menos ancorado na história da cultura visual, sobretudo ocidental (do Homem de Vitrúvio à Alice no País das Maravilhas, de Rodin a Metropolis, e os super-heróis), mas não apenas.

Porém, é precisamente por essa mesma razão que o problema maior se começa a formar. Na contracapa, podemos ler o blurb de Scott McCloud, indicando como o livro se trata de uma “meditação delirante sobre tudo o que há debaixo do sol”. Porém, não poderemos ler esta frase menos como um elogio do que na verdade um aviso do perigo que se incorre em Unflattening?

O livro está dividido em oito capítulos, e é uma espécie de passeio pelas várias dimensões do que pretende chamar de Unflattening. Incorrendo no risco de simplificar demais, a ideia de base é que ao olharmos para uma banda desenhada (ou um desenho, ou outro mecanismo análogo e comparável no corpus eleito pelo autor) estamos a olhar para algo feito somente de superfície, sem dimensão, textura ou espessura. Enfim, algo “achatado” (flat). Ora, o que Sousanis pretende fazer – e é assim que a metáfora proporcionada por Flatland funciona – é que percebamos como é que se pode “desempacotar” dessa aparente superfície toda a profundidade que aí reside: em termos informativos, cognitivos, afectivos, argumentativos, e por aí fora.

De uma forma curiosa e algo original, o autor não emprega um mecanismo antropocêntrico para conduzir ou articular as suas ideias, como ocorre na esmagadora maioria dos textos de banda desenhada que terão uma qualquer dimensão pedagógica na linha da frente. Um narrador semi-participante, ou uma focalização associada a um protagonista que serve de filtro actancial, ou até mesmo uma voz que, “desincorporada” da narrativa (sob a forma de legendas, por exemplo) ainda assim assume esse mesmo “corpo” visível e separado. É possível que se possa argumentar que existe, ainda assim, aqui e ali, um uso fantasmático desse dispositivo, mas ele não é sustentado ao longo da obra toda. Todavia, o preço a pagar por essa escolha é que o esforço para manter uma coerência ao longo do livro é maior e nem sempre essa coerência é alcançada.

A banda desenhada pode de facto ser lida ou interpretada como tendo uma série de dimensões empilhadas. Não apenas no que diz respeito à sua estrutura entre representação, simbolização e diegese – em que existe o mundo diegético, os balões de fala (“buracos brancos”, como lhes chama Groensteen), as molduras, etc. – como as possíveis discrepâncias entre as “faixas” da imagem e do texto, o que simplifica desde logo as relações entre os elementos presentes na prancha/página, etc. Mas igualmente a outros níveis, em termos ontológicos, políticos, sociais, de recepção e “uso”, na sua acepção dos estudos culturais, etc. Sousanis deseja que se olhe para esses territórios e se compreenda que as dimensões visuais não existem apenas de forma subsumida, enquanto ilustrações ou confirmações de algo que já se havia exposto verbalmente, mas em que elas têm um papel preponderante, senão decisivo.

Sousanis utiliza um exemplo muito premente. Para todos aqueles com dois bons olhos, a visão binocular apresenta uma síntese de dois campos visuais distintos, criados pelo cérebro entre o que é captado pelos nossos olhos. Coloquemos o nosso polegar, de braço esticado, à frente de um objecto qualquer com o olho esquerdo fechado. Sem mexer o braço ou o dedo, se abrirmos o olho esquerdo e abrirmos o direito, haverá a sensação de ter havido algum movimento. Nenhum deles mostra a “verdadeira” relação entre olho, dedo e objecto, o que ocorre é antes uma síntese superior. A ideia, de acordo com Sousanis, e que vai sendo explorada com outros exemplos, metáforas e fontes, é que existem sempre várias perspectivas concorrenciais que devem ser combinadas para se conseguir aproximar de uma qualquer ideia superior em relação a um determinado objecto, ou até mesmo á relação ela-mesma com esse objecto.

Tudo isto é muito certo, mas parece-nos que poderá haver aqui um erro de categorização.  Em primeiro lugar, a ideia de que as imagens não são meros complementos subordinados a confirmarem a informação textual existente é algo que já foi bastas vezes discutido em áreas tais como a história da arte, do cinema, o estudo da ilustração e, claro, a própria teoria da banda desenhada. John Berger, por exemplo, discutiu o desenho como sendo algo não tanto enquanto mera representação de um objecto (o exemplo é uma árvore) mas de “uma árvore a ser olhada”, implicando toda uma experiência de observação acumulando-se nesse acto (“Drawn to that moment”). Ou seja, uma experiência.

E se pode ser verdade que a civilização ocidental é sobretudo verbocêntrica, muitas vezes em detrimento da ocularidade, há já décadas que isso não é assim tão explícito. Longe estão os anos da iconofobia, ou iconoclastia. E a desconfiança das imagens não é necessariamente um aspecto negativo, se tivermos em conta lições que se estendem e Althusser a Sontag, descobrindo nelas instrumentos de mais eficaz doutrinação ideológica do que aquela prevista num discurso verbal (se bem que este também possa ser estruturado nesse sentido). É claro que todas estas dimensões são complexas demais para expor num brevíssimo artigo de blog sobre um livro, a questão é que o livro também não entra em contacto com essas dimensões verdadeiramente histórias, sociais e filosóficas até. 

Se bem que poderá parecer contraditório, sendo este um espaço dedicado precisamente a livros cujas dimensões visuais e materiais estão no plano principal, não estamos em crer que as imagens possam conseguir fazer tudo o que as palavras podem, tal como acontece o contrário. Não querendo afirmar que não se pode argumentar por imagens, os matizes e complexidades do pensamento humano são mais bem conduzidos pela retórica permitida pela linguagem verbal do que por imagens, as quais possuem desde logo uma carga afectiva superior, mas por isso mesmo desviantes de uma suposta transmissibilidade de argumentos fixos. A básica lição da dupla articulação na linguagem deveria ser um ponto de partida para qualquer discussão sobe esta temática (mesmo que fosse para a colocar em questão!), e não sendo feita, faz titubear a sua continuidade.

Nada disto tem a ver com uma defesa de um suposto objectivismo absoluto e ulterior, mas tão-somente de que numa discussão verbal há uma maior possibilidade de fazer uma negociação entre as partes interessadas para chegarem a acordo da valorização e valência do que é dito. No caso das imagens, a margem de subjectividade e flutuação de significados é bem mais vasta. Por exemplo, e empregando algo que Sousanis usa, a utilização do Homem de Vitrúvio para dar conta de uma certa ideia de idealização humana pode ser entendida, à vez, como uma sofisticada citação de um pensamento com uma inscrição histórica e social muito precisa, um cliché esvaziado por abuso ao longo do tempo, ou uma imagem que se abre mais a questões de problematização social contemporânea do que assegurando o tal certo “valor ideal”.

Cada capítulo, cada página, cada frase até, suscitaria um desenvolvimento crítico que não pode ser explorado aqui. Há uma sensação, todavia, de que não se chega a desenvolver cabalmente uma dimensão antes de saltar para outra, incorrendo-se num risco de maior distracção e fascínio do que de burilar um propósito recto. Quando se cita um qualquer pensador num trabalho académico, a cadeia do mecanismo argumentativo que se faz é usualmente o seguinte: num lugar da argumentação que pede por uma nova faceta teórica, cita-se uma fonte. Depois, explica-se, por exemplo, o conceito arrolado, de forma a fazer compreender o leitor que se conhece bem esse mesmo conceito, e que ele é apropriado. Finalmente, aplica-se esse mesmo conceito no novo contexto, demonstrando a sua adaptabilidade. Como bónus, se for possível, demonstrar-se-á que essa nova aliança (conceito preexistente + novo objecto de estudo) redimensiona o próprio conceito, expande-o, torna-o mais claro, etc. Ora, Sousanis emprega ou cita filósofos como Herbert Marcuse ou Deleuze & Guattari, assim como escritores tais como Italo Calvino, mas muitas vezes parecem somente surgir como abrilhantadores, já que não se escavam as implicações dos pensamentos citados. O mesmo ocorre até em relação à teoria da banda desenhada citada aqui e ali, mas nem entrando em controvérsia nem as tornando particularmente excitantes.
Sejamos claros, Unflattening não deixa de ser um contributo para os discursos existentes em torno da teoria-pela-prática, uma forma de entender o que é que o desenho permite enquanto actividade cognitiva em acção, como é que essa prática molda o próprio acto de observação e, consequentemente, de compreensão. Michael Taussig, um antropólogo australiano que tem um magnífico pequeno livro sobre desenho, I Swear I Saw This: Drawings in Fieldwork Notebooks, Namely My Own, discute a relação do desenho com a dimensão do tempo, explicando como aqueles fluem e habitam o tempo de uma maneira especial, pela sua espacialização da imagem, a um só tempo congelando e fazendo fluir o tempo. Mas esta, parece-nos, é uma outra qualidade relativamente ausente de Unflattening, ou melhor, aflorada somente, mas depois não escavada até às suas maiores consequências teóricas.

Em todo o caso, a figuração relativamente pedestre, quase pedagógica, de Sousanis, aliada a composições que se pretendem livres e espectacularmente significativas, as mais das vezes são algo subservientes ao próprio propósito do significado. Não esperávamos, de maneira alguma, que se instituísse um princípio ficcional, como afirmámos acima, que depois ajudaria a “transmitir” as ideias-chave, mas a secura, digamos assim, do veículo, torna o ritmo e o tom da obra um tanto ou quanto menos eficiente do que imaginaria. E apesar dos argumentos empregues pelo autor, quer explicitamente no livro quer fora dele (como na entrevista), a verdade é que muitas das imagens acabam por funcionar de um modo metafórico, isto é, ilustrativo para com o que é “rezado” no texto. Vejam-se as “teias de aranha”, as ideias de “prisão”, a maneira como demonstra a conectividade e unidade das pranchas de banda desenhada teorizadas por Groensteen sob a forma de Buddha sentando-se frente a um mangue, etc.

É Unflattening uma conquista? Em termos de presença, abertura de discussão, impacto em círculos não-especializados, expositivos? Sem dúvida alguma. No que diz respeito, porém, a uma alteração do modo como podemos observar estas áreas criativas, a atitude para com o desenho enquanto instrumento de conhecimento, da banda desenhada enquanto espaço de pensamento… Depende. Se a referência ainda continuar a ser apenas a de McCloud (o que ocorre de uma maneira extremamente preocupante ainda hoje no mundo académico), é possível. Se se estiver enquadrado num contexto mais alargado, diversificado, matizado e complexo, é possível que o “desempacotamento” previsto tenha um alcance menor.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela entrevista e ajuda nos contactos, e à editora, pela oferta do volume; igualmente a Hugo Almeida, interlocutor na leitura deste livro. Muitas das ideias (as melhores) esgrimidas aqui foram por ele buriladas. 

2 comentários:

Hugo disse...

Oi Pedro! Acho porreira a referência que fazes à nossa discussão do livro, mas aquilo que te mostrei foram umas notas avulso que de maneira nenhuma estavam com o nível de aprofundamento do teu texto; por isso, as melhores ideias foram certamente tuas!
Quanto ao livro, continuo completamente convencido de que as imagens do livro e o uso que se faz delas não só não corroboram as ideias mais ou menos elaboradas no texto do livro, como as contradizem. Pela razão que apontas: as imagens são meramente ilustrativas do texto. Muito raramente apresentam dimensões adicionais, amplificam a interpretação do texto, etc. Por isso, não sei se concordo que esta publicação poderá iluminar as perspectivas mais populares sobre a banda desenhada, ou sobre a importância da imagem. Parece-me que poderá ser usado mesmo como exemplar das supostas limitações do meio por quem está menos por dentro da coisa ou tem uma agenda específica a defender (e este caso, reflecte não uma limitação do meio, claro, mas desta execução em particular).

Pedro Moura disse...

Bom, não vamos começar a trocar cromos. Ajudaste muito a pensar quase todas as questões. É óbvio que eu tento acreditar que os aspectos positivos desta obra são possíveis, sobretudo se aproximarem dois mundos que por vezes podem estar de costas voltadas, mas concordo que nalguns momentos pode até acabar por confirmar ideias que deveriam antes ser exploradas de outra maneira. No fundo, ocorre o mesmo que aconteceu (acontece!) em relação ao livro do Scott Mccloud: a maneira como ele descreve uma questão parece tão clara e tão exaustiva que não dá espaço a dissensões, e se as houver são vistas como negativistas, em vez de expansivas em relação ás mesmas questões. Por outras palavras, concorrem a tornarem-se autoridades incontornáveis e indesmentíveis, o que é sempre preocupante...
Pedro