20 de fevereiro de 2016

Zero. Ales Kot et al. (Image)

Como havíamos indicado de forma superficial a propósito de alguns títulos escritos por Nathan Edmondson, o jovem escritor Ales Kot parece ser uma antítese do posicionamento conservador dessoutro escritor dessa mesma indústria de entretenimento. Seria um erro fazer um juízo de valor global sobre toda a indústria em relação a todos e quaisquer assuntos de cariz político, dada a sua diversidade e história, mesmo que à partida, sendo parte da indústria cultural, possa parecer apenas ser capaz de sustentar as ideias já vigentes (as estratégias meramente comerciais são sintoma claro). Kot trabalha no interior desse mesmo campo, tendo escrito títulos para a Marvel e a DC, e agora perseguindo vários títulos na Image, que lhe permite reservar os direitos de autor, mas não abandonando uma noção de mainstream. Só que através das suas narrativas convolutas e estratificadas, amalgamando elementos genéricos e laivos ensaísticos, cria estruturas electrificantes e estimulantes que não servem a ideologia supostamente central da própria indústria para que a sua existência contribui. (Mais) 

Para todos os efeitos, Zero pode ser descrito como uma “novela de espiões”, mas qualquer leitor da série (que se encontra disponível em quatro trade paperbacks) sabe que essa descrição é o mesmo que descrever uma moradia apenas pelo tapete da entrada. E acrescentar que tem elementos de ficção científica seria dizer que a casa tinha janelas… A série tem uma personagem central, Edward Zero, um agente que trabalha desde a infância para uma agência secreta norte-americana chamada de “A Agência”. Os primeiros números da série apresentam-se sob a forma de missões individuais, numa típica forma de construção episódica com alguns elementos que vão sendo acumulados até percebermos que vamos afinal seguir algo mais complexo. À medida que a série avança, essa complexidade vai aumentando. Nos primeiros passos, parece estarmos a trilhar caminhos quase banais de casos e de situações de espiões, da forma mais genérica possível (o nome da “Agência”, numa abordagem beckettiana, parece confirmar essa ideia, já para não falar do nome do protagonista). Aos poucos, Zero coloca em questão as suas missões, o propósito da Agência, até entrarmos em choques ontológicos e até mesmo existenciais. Aumentando a escala das implicações, passamos das relações pessoais de Zero, até às suas origens e o modo como isso complica as relações profissionais, depois a missão da Agência, e um acesso a universos paralelos e à própria possibilidade de tudo ser uma ficção… O que começa em James Bond termina em P. K. Dick.

Introduzindo toda a narrativa na sua velhice, em que um novo rapaz é enviado para o matar, dando-lhe oportunidade de recontar a vida, em termos temporais, a narrativa apresenta sub-divisões, já que a vida de Zero é seguida em vários momentos: não apenas a idade adulta (a parte de leão da história), como a sua tenra infância – há mesmo um episódio antes do seu nascimento, cruel e brutal - e treino, e, depois, claro, a sua “reforma”, ameaçada, que emoldura toda a narrativa. No capítulo 3, “I am nothing”, Zero combate contra um agente mais velho, criando um perfeito eco ou objecto fractal da sua própria história, a um só tempo no passado textual (a abertura da série) e no futuro (em relação ao presente narrativo). Há outros momentos de desarranjo temporal, ou ecos e reflexões que complicam as facetas da história de uma maneira subtil. Na última fase da história, entramos não apenas em experiências científicas desreguladas de universos paralelos e substâncias alucinogénias, como descobrimos que toda a história é um projecto inacabado de William S. Burroughs, quando este estava em Tânger (mas é mais complicado do que qualquer descrição possa tentar, sem re-descrever todos os passos).

Alguns dos comics contêm, no final da parte dos episódios, informação extra-banda desenhada, mas não extratextual: sob a forma de relatórios, transcrições de diálogos, citações de canções, notícias de jornal, construções tipográficas, e mesmo informações históricas, duras, vai surgindo material que cria um espaço de extensão diegética, filosófica e que serve para sustentar parte da narrativa ou intensificar um dos seus elementos, de uma forma não-redundante.

Uma das características mais imediatas da série, na sua existência enquanto 18 comic books, foi a de ter sido desenhada por uma troupe de artistas diferentes em cada número. Ei-los, por ordem: Michael Walsh, Tradd Moore, Mateus Santolouco, Morgan Jeske, Will Tempest, Vanesa Del Rey, Matt Taylor, Jorge Coelho, Tonci Zonjic, Michael Gaydos, Ricardo Lopez Ortiz, Adam Gorham, Alberto Ponticelli, Marek Oleksicki, Ian Bertram, Stathis Tsemberlidis, Robert Sammelin e Tula Lotay. 

Esta informação não é suficiente ou sequer explicativa da forma como a estrutura narrativa de Zero é composta. Existem outros projectos idênticos nesta sua descrição geral: The Worm, de Alan Moore et al., vários projectos de Morrison, o Milagreiro de André Oliveira e colaboradores. Na verdade, existe uma estrutura central, criando laços sólidos (nervos, dir-se-ia, vibráteis) que atravessam todo o edifício, não deixando alguma vez que as várias linhas de desenvolvimento se desprendam de um núcleo coerente (um cérebro e a sua consciência febril). O uso de artistas diversos, porém, foi ajudando não apenas Kot a escrever de modos algo diferentes em cada número (por exemplo, os terceiro, oitavo e décimo-terceiro números são maioritariamente ocupados com cenas de acção, o quinto é ocupado com muito diálogo cerrado, o sexto tem uma planificação de vinhetas apertadas, um trabalho de composição enviesado e dinâmico) como a que emergissem de imediato intensidades diferentes na sua prestação (afinal de contas, a suavidade das figuras etéreas de Tula Lotay incute um ambiente mais livre, apropriado para o que passa por “final feliz”, do que as angulosas personagens de um Jorge Coelho, que as faz operar de forma mais decidida na acção cinematográfica; e os contornos negros das linhas claríssimas e estilizadas de Moore são bem distintos das figuras mais realistas de Oleksicki, mesmo que sejam as mesmas personagens, afinal de contas). Mesmo com o uso de um só colorista, Jordie Bellaire, e legendador, Clayton Cowles, estes não procuram uniformizar essas prestações diferentes, mas antes sublinhar as forças de cada um, ou acentuar aspectos que a história pede (cores térreas no episódio na faixa de Gaza, ocres no Brasil, outonais no de J. Coelho, composições monocromáticas no número de Del Rey…). Além disso Tom Muller é o designer de toda a publicação, tal como de outros trabalhos de Kot, trazendo um arranjo gráfico que torna cada número numa unidade completa e elegante. 

Os títulos de Kot são intensas abordagens de alguns temas operativos, desde a violência nas escolas à ideologia pervasiva da cultura popular, passando pelo racismo e a misoginia sistémicos de várias sociedades, o culto do dinheiro acima de quaisquer outros valores, e a forma como o indivíduo, na construção da sua identidade, vai sempre enredar-se com as outras pessoas. É possível ler Zero isoladamente. Mas estamos em crer que lê-lo no cadinho da sua outra produção (toda ela publicada pela Image), desde Wild Children a The Surface, passando pelos correntes Material e Wolf, criarão um quadro mais completo de escrita.
Poder-se-ia dizer que Zero é o título mais “normal” no interior da produção da Image. Esqueçamos, por aqui, as suas produções para trabalhos na Marvel, onde “brinca” com personagens pré-existentes, tentando colocá-las em situações relativamente inesperadas de acordo com o mainstream - Bucky/Winter Soldier numa espécie de ópera fc com contornos psicadélicos, Suicide Squad numa espécie de comentário pouco velado do intervencionismo militar onde seriam necessários outros instrumentos e a desumanização dos soldados/prisioneiros - o título da colecção em livro é Disciplinar e Punir!, quase esfregando na cara dos leitores a citação - mas sem nunca atingir nem os pontos altos que autores anteriores já haviam cumprido no interior do mainstream nem estando liberto no seu território apropriado. Isto é, Kot é mais interessante enquanto criador de matéria própria, do que criador com espartilhos “registados” (para isso temos de pensar em escritores como Moore, Brubaker, Snyder, Kirkman, Hickman, Bendis, etc.)

Se cada um desses trabalhos tem as suas próprias estratégias narrativas, escolhas visuais devido a diferentes equipas e, naturalmente, linhas distintas devido aos elementos de género, tipo de personagens, etc., ao mesmo tempo, e até certo ponto, poderemos dizer que os seus trabalhos têm sempre sido temas comuns: a existência de um mundo oculto, fantástico, terrível, sob o mundo “normal”, e que a transformação da percepção que permite aceder a esse outro plano tem tanto de libertador como de maldito. Além do mais, a ideia de entrosar na diegese, ou no próprio tecido do universo ficcional, contingências da vida real do(s) autor(es) ou o próprio processo de escrita, tem-se tornado incrementalmente uma das suas assinaturas. Em Zero, ainda que numa aparente “normalidade” inicial, isso aparecerá ainda transmutado em projecções ficcionais, como veremos. Em The Surface, por exemplo, surge na primeira pessoa. Se tudo é meta-textual, The Surface é-o explicitamente, Zero a partir de pressupostos genéricos, Change algo a meio. Como afirma a personagem-autor no último número do outro título, trata-se de criar “ficção como magia/ciência que permite mudanças no mundo/universo real/holográfico”. Parece-vos familiar?

Até certo ponto, pode-se sentir que Kot é um daqueles citadores nervosos que mal aprende palavras compridas e nomes difíceis os tem de empregar para trazer uma qualquer dimensão complexa e “edgy” ao seu trabalho, quando ele, do seu interior, não o faz emergir. Confessamos que rolamos os olhos ao ver que o superior imediato de Zero se chama Zizek, ou que se citam textualmente filósofos ou teorias de física contemporâneas de forma algo deslocada. Mas recordemo-nos como a leitura da Doom Patrol de Morrison parecia igualmente um exercício de cut-up por entre um curso de referencialidade. Mas é com aquele autor escocês que Kot parece mais dialogar, levando os pontos de partida de Morrison um pouco mais longe.

Em primeiro lugar, por parecer que Kot é mais bem lido do que Morrison, parece-nos, e até mesmo engajado (a palavra é apropriada) de forma mais radical. Ambos parecem crer que o uso da ficção popular, mesmo de fantasia, ou sobretudo de fantasia, pode-se tornar um óptimo instrumento de introduzir certos conceitos, ideias, e até mesmo buzzwords que, pela sua simples presença, poderão fazer expandir o quadro referencial dos seus leitores. E antes que se pense que a banda desenhada não é o local correcto disso acontecer, bastará pensar que se podermos aprender que foi Nobel o inventor da dinamite em Lucky Luke, porque não sermos confrontados com informações sobre as novas formas de opressão racial via a indústria das prisões nos Estados Unidos, ou que Judith Butler nos ajudará a repensar questões das nossas identidades sexuais, ou recuperar o materialismo marxista como solução do vampirismo do capitalismo global dos nossos dias? É verdade que existem obras (de banda desenhada) que, através da não-ficção, exploram esses mesmos temas de maneira mais sustentada, argumentada e até completa, mas estamos a falar aqui de mecanismos ficcionais, os quais permitem outro tipo de diálogo cognitivo. Kot acreditará ser este um bom veículo, mesmo que tenha de lidar com expectativas e conceitos que são restrições a uma liberdade formal total.

Wolf, por exemplo, que mistura o noir, a fantasia (envolve lobisomens, vampiros, demónios e criatura aparentadas com Cthulhu) e o ensaio social, tem entrado numa espiral de expansão que tem destruído o ciclo usual das 22 páginas mensais, aumentando cada fascículo drasticamente, o que levou na verdade à saída do artista principal da série. Em termos comerciais e até de expectativas (normais) dos leitores, isso é um problema, mas ao mesmo tempo é um sintoma da forma de produção de Kot que, neste caso, não se coaduna com as formas industriais em que trabalha, aparentando-se, em parte, com certas experiências alternativas. Não nos enganemos, todavia: Kot trabalha na indústria. E não podemos entrar naquelas fórmulas cínicas mas vazias de que estaria a “minar por dentro” essa realidade.

O que Kot faz é escrever o melhor que consegue, mantendo-se num rumo muito particular, e recuperando muitos dos ingredientes que fazem a história de muita da banda desenhada popular de géneros, para conseguir com eles criar um discurso sincrético de ideias e noções filosóficas, e estratégias textuais que tornam os textos máquinas pensantes. Na verdade, uma releitura atenta de Zero desvendará uma estrutura tríplice: o mundo dos espiões à la James Bond, o experimento científico e a existência ficcional do Burroughs de serviço. Poderíamos ir mais longe (ou mais alto) e recordar, claro está, da própria existência de todo este edifício enquanto produto ficcional de Kot et al., mas ça va de soi: é o leitor tem de se afastar apenas um passo para ver onde os reflexos dessa auto-consciência do livro, por assim dizer, se encontram espalhados na ficção que encerra.
Nota final : agradecimentos a N.F., pelo empréstimo da série.

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