16 de fevereiro de 2016

Os doze de Inglaterra. Eduardo Teixeira Coelho (Gradiva)

O seguinte texto deve ser lido de duas formas complementares. Não sendo nossa função fazer um site de notícias ou comentários sobre certames e efemérides, com algumas excepções, mas sim a de apresentar textos sobre leituras efectuadas de livros ou projectos, a abordagem ao novo Os doze de Inglaterra, de Eduardo Teixeira Coelho, é informado, porém, pelo trabalho desenvolvido com vista ao seu lançamento, acompanhado de exposição e uma apresentação, na Bedeteca da Amadora, no próximo dia 18, às 21h30. Assim, fazendo sobretudo uma leitura deste livro que temos a certeza de vir a tornar-se significativo por várias ordens, será acompanhado de algumas notas em torno de assuntos em torno desse encontro. (Mais) 

Esta edição reveste-se de alguma importância, por vários factores. Os mais conhecidos, pois explícitos no prefácio de José Ruy, prende-se com o acesso, pela primeira vez, aos desenhos completos de ETC nas vinhetas, “limpas” do seu tratamento truncado pelos textos de Raul Correia, director da revista, na versão original. Por outro lado, porém, há uma manipulação do texto de Raul Correia à revelia desse mesmo trabalho – que leva ao estranho apagamento do seu nome na capa, como se se secundarizasse em absoluto a matéria verbal -, e uma substituição do trabalho de legendagem. Onde n’O Mosquito as letras eram tipografadas, serifadas e num bloco justificado de ambos os lados, na versão livresca surge-nos a letra manuscrita de José Ruy (tratada digitalmente, transformada em tipo), maiúscula, e apenas identada à esquerda. Serão mudanças mínimas, talvez, mas acabam por alterar fundamentalmente a materialidade original da recepção da obra. O mesmo poderia ser dito do tratamento homogéneo da cor, aqui um cinzento com um provável gradiente de cor (castanho?, verde?), bem distinto das impressões cambiantes a uma cor de número para número da revista dos anos 1950 (que Dias de Deus descreveu, mordaz mas rigoroso, como “azul deslavado, cor de alface ou de casca de cebola”). E o formato, de “revistinha” a “álbum”. Logo, menos do que uma reedição, mesmo em livro, de um “clássico” da banda desenhada portuguesa da década de 1940 (é ainda herdeira desses princípios), este livro é uma sua primeira edição sob todo um conjunto de princípios contemporâneos: de foco na excelência artística prístina dos desenhos, sem dúvida, mas também em termos de compreensão “literária” e de recepção crítica e material da banda desenhada.


Contemporaneamente, uma das linhas mais estimulantes do pensamento crítico da banda desenhada é informada por um encontro transdisciplinar entre a análise formal e uma perspectiva advinda dos estudos culturais, com contornos sociais. Isto é aquilo a que, com Jan Baetens, se pode chamar de “semiótica cultural” cuja pergunta básica será “O que é que uma determinada comunidade considera importante o suficiente para transmitir diacrónica e sincronicamente?” À luz dessa pergunta, seria tentador responder que Os doze de Inglaterra cumpririam esse papel de objecto de interesse, e que este acto da Gradiva cumpriria o de transmissão.


É, portanto, esta edição, eventualmente, um contributo para um tratamento mais digno e cuidado da memória da nossa própria história da banda desenhada. Claro que isso não é feito de modo isolado à la longue (não nos esqueçamos da fundamental colecção Antologia da BD Portuguesa, dos anos 1980, pela Editorial Futura, ou anteriormente, a colecção Enciclopédia O Mosquito), mas é-o contemporaneamente de forma sustentada. Mas a edição num volume de capa cartonada, cuidada, leva a uma circulação diferente e encaixada, digamos assim, na “nova” concepção da banda desenhada enquanto objecto passível de compreensão literária. Para mal ou para bem, a política editorial imbuída na ideia do “romance gráfico” veio estabelecer novos contextos, e Os doze de Inglaterra, agora, poderão ser absorvidos numa história nesse sentido, considerando-a como um proto-romance gráfico. Deveria ser óbvio de que esta absorção acarreta alguns perigos de rigor histórico, inclusive o de reescrever a memória, imputando uma certa importância e peso que não se verificou no seu tempo real, mas essa negociação e reescrita é própria de uma arte tão nova ainda, e cujo edifício conceptual ainda não se consolidou. No entanto, é uma pena que não se tenham incluído melhores instrumentos críticos, com um outro tipo de aparato, que tornassem clara a contextualização original da obra e a que agora surge. Existem imagens comparativas, e um texto explicativo de Ruy, mas uma mais musculada introdução garantiria uma maior felicidade editorial (ainda assim, poderemos apontar que a repetição dos cabeçalhos duplos – das quais o nome de Raul Correia, o único na verdade visível no trabalho original, passe a assinatura do artista, é apagado - das páginas remete a essa existência hebdomadária).

Publicada nas páginas de O Mosquito nos anos de 1950 e 1951, já na sua versão mais diminuta (dos 22 x 16 cm. da época, passamos ao livro de 31 x 22 cm.), na qual ETC era então o “motor” principal em termos de glória visual, a saga começaria com duas páginas por número, duas vezes por semana (saindo às Quartas e Sábados). Mas de quando em vez surgiriam algumas interrupções, ora saindo somente uma página por número, ora alternado números, ora mesmo saltando uns quantos, antes de regressar. Seja como for, tendo em conta (ou imaginando, por comparação a outros trabalhos) o formato original dos desenhos e o seu lavrar, tratava-se de um ritmo particularmente intenso, dado o detalhado do desenho. Perdido no meio de outros trabalhos mais modernos, tais como Buck Ryan, de D. Freeman e J. Monk, ou o primeiro Garth, de S. Dowling, o trabalho de ETC apenas se coadunava com, e até mesmo superando-os, os restantes trabalhos também da mesma estratégia de vinhetas com legendas por baixo, tais quais as séries infantis de origem inglesa (possivelmente G. M. Payne ou outros autores da Comic Cuts), os contos ilustrados, ou de autores menores portugueses como Monteiro Neves. Antes de regressar à questão do estilo e falta de modernidade dos Doze, porém, uma palavra sobre o trabalho textual.

De acordo com as informações dadas por José Ruy, ETC teria consultado um opúsculo de Campos Júnior. Sabemos todavia que as palavras das legendas, é dito explicitamente na edição original, são de Raul Correia. Não tendo nós conseguido confirmar a existência, de forma clara, de alguma informação bibliográfica sobre esse opúsculo, consultámos o romance A ala dos namorados, daquele escritor, publicado em 1905. Esse título integra alguns dos nomes destes famosos cavaleiros que teriam pertencido a esse ramo envolvido na Batalha de Aljubarrota, e há, já quase no final do romance, uma breve menção ao episódio da justa para defender a honra das damas inglesas: “Fora uma aventura de cavalaria andante, que a imaginação do povo já tinha envolvido no luar prodigioso das lendas”. A experiência é apenas recontada após os factos, mas não são parte integrante do romance, e muito menos os episódios relativos ao Magriço. Será esse putativo opúsculo a versão de Campos Júnior do que o próprio chamara de “o último romance vivido da cavalaria andante”? Não podendo assegurar qual a fonte literária desta obra, estamos em crer porém que a adaptação para banda desenhada terá sido cumprida de facto pelo próprio ETC, vertendo, digamos assim, o texto de Campos Júnior para as vinhetas assinaladas, e depois sendo Correia a escrever as palavras. Quase se poderia comparar este processo ao conhecido “método Marvel”, se bem que as fontes textuais sejam mais complexas.

O resultado, portanto, não deixa de ter um “sabor” antigo. Não nos esqueçamos que por esta altura, quer a banda desenhada americana quer a europeia seguia já caminhos estilísticos bem distintos, em termos estruturais e dinâmicos (algumas das quais presentes nas páginas dos rivais O Papagaio e O Diabrete ao longo da década de 1940). ETC encontrava-se assim numa linha algo datada, associada a uma abordagem de defesa pedagógica da banda desenhada, incutindo uma importância literária às legendas, que quase poderiam ser lidas de forma independente às imagens (mesmo em trabalhos posteriores, ETC nunca saberia onde pôr os balões, era um dispositivo algo avesso à sua abordagem ilustrativa). Bem vistas as coisas, se não lermos os textos, não temos acesso à história pelas imagens somente. Elas, as vinhetas, enquanto unidades narrativas, constituem “intervalos” demasiado afastados uns dos outros, e concatenam as cenas de uma forma mais icónica, simbólica e pictural do que dinâmica (diferente, na verdade, de trabalhos posteriores do autor, cheias de acção e torvelinhos, sobretudo nas cenas de combate – em Os doze, estas são perras e às vezes não se entende a ordem dos gestos – o que se deve à sua natureza edificante pela leitura). São bastas as vezes em que a relações entre texto e imagem são pleonásticas, mas outras em que a coordenação entre a cena congelada na imagem e as palavras ditas, sobretudo se em diálogo, não parece corresponder a uma união possível. Se a leitura semanal de tais intervalos poderia funcionar, em doses fortalecidas mas afastadas, a sua leitura corrente sofre de um claríssimo ritmo manco, sobretudo se à luz de toda a banda desenhada “livresca” anterior, contemporânea e sequente a esta obra (quer dizer, não é apenas uma questão de desenvolvimentos ulteriores e estarmos a ler uma obra com expectativas lavradas mais tarde, mas no interior de uma compreensão lata da história da banda desenhada).
Essa qualidade pictural, porém, é onde residem as consabidas e muito celebradas qualidades do autor. Os rostos humanos que representa parecem ser desenhados ao vivo, pessoas de carne e osso. Não há grandes melodramatismos nas expressões destas personagens, mas um ar suficientemente naturalista para os ancorar em experiências que temos na nossa convivência humana para ressoar como verdadeiras.

É natural que o rigor classicista da perspectiva visual, a aturada pesquisa e uso de pormenores das armas, cavalos e barcos (que levaria a verdadeiros trabalhos enciclopédicos nesses campos, mais tarde,), etc., a sua finíssima ideia de composição de cada quadro, e os movimentos fluidos das suas personagens, o tornam um “clássico”. Há um menor trabalho de contrastes neste livro, como no início da década de 1940, mas antes uma outra pesquisa que privilegia a linha, o uso de tramas para os planos e sombras, onde o desenho se apresenta em massas sólidas. Outros melhores conhecedores da sua obra têm feito a história precisa do seu percurso e elegância, remetendo a eles os leitores deste espaço, de Geraldes Lino a Jorge Magalhães, passando pelo fundamental ETCoelho. A arte e a vida (Edições Época de Ouro, 1998), de António Dias de Deus e Leonardo De Sá.

ETC é conhecido por ter experimentado todo um rol de géneros também eles “clássicos” da banda desenhada infanto-juvenil de aventuras: western, gestas medievais, histórias dos Descobrimentos, aventuras na selva africana, e, claro, a sua saga de vikings com Jean Ollivier Ragnar, entre tantas outras criadas nesse mesmo contexto editorial francês, na revista Vaillant/Pif Gadget, etc. Os doze de Inglaterra encontra-se confortável e afincadamente nesse território, a um só tempo de cariz educativo, laudatório e de entretenimento. Ou seja, a tipificada união entre preocupações estéticas e éticas do utile et dolce horaciano, não fosse a figura do Magriço uma figura perfeita para a transmissão de ideais patrióticos, religiosos, cavalheirescos, que depois informaria uma ideia ideal do papel dos portugueses. Não haverá decerto melhor frase do que aquela em que, descrevendo a sedução do nobre português à dama inglesa que lhe coubera, se fala do modo como “imprimia aos seus galanteadores madrigais uma expressão de portuguesa ternura, que enleava a gentil dama”.~

A narrativa dos “Doze de Inglaterra” pode ser entendida como um “mitema”, isto é, uma estrutura narrativa, uma história, que surgirá na literatura portuguesa com várias vestes ao longo da sua história. O relato mais antigo de que se conhece e também a sua mais famosa versão é aquela contada pelo marinheiro Fernão Veloso, num nível hipodiegético (isto é, uma história dentro da história) de Os Lusíadas, de Camões (onde terá funções narrativas, simbólicas e políticas muito específicas – repare-se na Dedicatória, como o poeta joga os Pares de Carlos Magno pelos “nossos” Doze). Não é completamente clara a fonte de Camões, e apenas na década de 1960 se terá detectado uma cópia sobrevivente de uma adenda a uma Crónica, em Coimbra, que dará conta das putativas justas em Inglaterra. É quase certo que não haja qualquer ancoramento em factos históricos, mesmo que se envolvam personagens históricas. Acima de todas está, naturalmente, D. Álvaro Gonçalves Coutinho, conhecido como o “Magriço” (algumas gerações saberão a importância que esse termo terá no futebol nacional), personagem comprovadamente histórica e o protótipo nas nossas letras do cavaleiro andante, o que tem um particular valor na banda desenhada. Sendo confuso o novelo entre mitos e factos históricos, parece ser certo que o programa de Camões se prende com uma reabilitação, movida por interesses pessoais e familiares, de Coutinho, que seria na altura figura non grata na corte. Logo, não sendo a lenda originada pelo mor-poeta quinhentista, é n’Os Lusíadas que encontraremos sem dúvida a grande fundição do mito que sobreviveria até hoje.

Outras versões se verificariam, entre as quais as de Teófilo Braga, precisamente o alvo da dissertação de mestrado do Professor Rogério Miguel Puga, o convidado para a apresentação deste projecto na Bedeteca da Amadora. O carácter medievalista da história era típico da cultural popular da época, um pouco em comparação aos “géneros populares” que ainda hoje circulam no cinema, literatura, banda desenhada. No século XVI, não eram apenas esses episódios em Os Lusíadas que cumpriam esse papel baseado na dita “matéria da Bretanha”, isto é, de uma forma ou outra relacionado com os temas de cavaleiros na Inglaterra (ou Bretanha, entenda-se isso de maneira mais mítica), o Rei Artur, o Santo Graal, Camelot, etc. ou o “romance de cavalaria”. O “gosto cavaleiresco no quinhentismo literário ibérico”, como escreveu Ettore Finazzi-Agrò, seria pautado por muitos títulos, como a Crónica do Imperador Clarimundo, Triunfos de Sagramor ou Memorial das Proezas da Segunda Távola Redonda (possível fonte de Camões), Palmeirim de Inglaterra, mas também Orlando Furioso, ou o anterior, e profundamente “lusitano”, Amadis de Gaula, favorito de Cervantes.

O que importa, sobretudo, é que a história dos Doze fazia parte dos “mitos” correntes na altura em que a versão de Coelho e Correia viria a lume, até por estar associada de forma viva ao programa escolar do mesmo público da revista. Acima de tudo está, porém, de Camões a Braga, de Campos Júnior a ETC, o papel que este “mito” teve na construção da identidade ou, mais, na glorificação nacional, que passa por uma heroicização das características vistas como inerentes aos portugueses (logo à entrada da sua tese de mestrado publicada, Puga fala de "símbolos sinedóquicos de auto-estereótipos nacionais"), alimentando assim, de formas distintas e historicamente contextualizadas, as ideologias dominantes de cada época. Ao que este projecto de banda desenhada, senão toda a publicação, não é de forma alguma alheia. Enfim, O Mosquito, O Diabrete, seu principal rival e, depois, o Cavaleiro Andante, eram publicações que vinham entrosar na perfeição na ideologia didáctica e nacional-gloriosa do seu tempo.

A narrativa da banda desenhada, apesar do título, centra-se sobretudo em “O Magriço”. Afinal de contas, das 112 pranchas da narrativa, apenas 17 não contam com a presença física do cavaleiro, e apenas 5 focam cenas em que não estaria presente ou perto. A saga centra-se então no encontro do cavaleiro, no seu percurso por terra até terras britânicas, e os seus encontros com várias personagens, de salteadores a criaturas fantásticas e, claro está, a brevíssimos actos de bravura em nome de damas em perigo. O seu escudeiro é alvo das partes mais negativas, de maneira a impedir que alguma mácula caia sobre o herói. Socialmente, Doze confirma a estrutura social normativa, de atenção para com os heróis nobres, ou os vilões muitas vezes também nobres, sendo a vida quotidiana da plebe “invisível”. Nada de extraordinário.

Os episódios vão-se sucedendo, numa fiada que é ditada pela necessidade da viagem linear de Magriço mas também pela progressão narrativa. Há uma sucessão de episódios em que cada nova aventura apena se dá porque Magriço e o seu escudeiro nela tropeçam… A economia dramática não permite então nem desarranjos temporais nem momentos de introspecção nem tampouco gestões de elementos prospectivos e de prolepse para aumentar a tensão, etc. Tudo é linear, o que corresponde à organização dos eventos narrativos das gestas medievais e medievalistas, se excluirmos aqueles momentos em que uma personagem introduz um qualquer nível hipodiegético, permitindo uma “oclusão” no tempo e espaço da narrativa, uma interrupção na acção. Mesmo assim, ETC introduz uma cena de leve surrealismo, com brevíssimos apontamentos mais estilizados e “abonecados” (como havia feito em trabalhos anteriores, tais qual “A moira e o dragão”) quando de um breve pesadelo de Coutinho, de cariz à vez tenebroso e erótico, no castelo do senhor de Berry, de três páginas, que faria imaginar uma possibilidade de maior sofisticação estrutural, tivesse havido oportunidade para tal dada pela intriga (é a âncora do naturalismo que impediria maiores deambulações…). O cotejamento deste texto com o da fonte apontada de Campos Júnior seria utilíssimo para compreender a lavra desta estrutura.

As comparações com Hal Foster são inevitáveis, não tivesse Eduardo Teixeira Coelho encontrado no autor norte-americano, introduzido nas páginas das publicações portuguesas em 1946, poucos anos após o início da sua mais famosa série. Mas outras fontes terá havido, e o que importa são as lições aprendidas e tornadas assinaturas próprias. Doze é apontado como o início do auge do autor português, mas estamos ainda longe de um total desenvolvimento a todos os níveis, apesar dele ter já uma longa carreira de mais de dez anos preenchidíssimos. Chamar os Doze de “obra-prima” do autor não é mais do que uma pobre estratégia comercial e deslocada de um qualquer contexto mais cuidado. São por demais as personagens isoladas nas imagens, sem cenário, ou em que se dá um tratamento subalterno e mais fraco das personagens em segundo plano (espacial ou dramático). Há aqui e ali ainda problemas de coerência figural, proporção e elegância, que se torna notável precisamente num contexto que se pretende de rigor (quando se tratam de estilos mais caligráficos, esboçados, estilizados, não se perseguem essas noções). Ainda assim, é notável como Coelho não cria “modelos estruturais” a partir do qual faria variações estilizadas. Cada rosto é modelado a partir de uma pessoa, seguramente, ou pelo menos baseado no seu conhecimento da anatomia a expressões vivas.

A composição da página é forçosamente primitiva, confinada a uma pequena prancha de 4 vinhetas regulares, fora excepções que “fundem” duas vinhetas numa única horizontal, de ocupação apropriada, e uma ou outra splash page em momentos dramaticamente significativos. E mesmo as cenas que convidariam a uma aplicação mais cuidada dos planos visuais nem sempre são tão bem conseguidas como em décadas posteriores. A falta de quadricromia não é recompensada por um trabalho mais decidido em termos de linha e contrastes. O ritmo de produção – quatro páginas por semana, no seu ponto maximal, mas que como vimos não foi constante - poderá ter aqui uma influência fundamental, não o negamos. Mas referimo-nos à arte em si não invalida o conjunto. Enfim, é o início do cume, não é o cume em si. Se se comparar com L’harpe d’or, por exemplo, o episódio inaugural da longuíssima série Ragnar, já nos aproximamos mais de algumas das prestações de Prince Valiant (mesmo que não apeteça ler o texto enfadonho), inclusive na distribuição das vinhetas na prancha, maior do que poderia em Doze, claro está.

Daí se coloca a questão. Poderá ser este gesto um início hipotético de uma “recuperação da memória” mais recompensador, certeiro e sustentado? Ou apenas um gesto isolado, sem grande contextualização ou herdeiros? Reeditar (pois já existiram edições em álbum) Os guerreiros do lago verde, Falcão Negro, ou O caminho do Oriente com contornos críticos e visualmente dignos é desejável? Colocar acessível, mesmo pela primeira vez, muito do material “estrangeiro”, ou mesmo as quase mil páginas de Ragnar é viável? Mesmo que as respostas fossem negativas, e não o podem ser, seria imprescindível se queremos uma memória viva e um diálogo acertado.

Nota final: agradecimentos à Bedeteca da Amadora, pelo acesso a algum do seu material de acervo, inclusive a arte original, tendo sido um imenso privilégio, e a José Ruy, biblioteca viva e conversador nato.

4 comentários:

André Azevedo disse...

Pedro,
Discordo que esta edição seja “…um contributo para um tratamento mais digno e cuidado da memória da nossa própria história da banda desenhada.”

Bem pelo contrário, apesar da boa vontade dos seus intervenientes.

Aqui reescreveu-se literalmente a história ao alterar o texto original de Raul Correia - nome incompreensivelmente omitido quase por completo nesta edição - por este ser considerado “excessivo” e “redundante”.

O trabalho de José Ruy poderia ter sido canalizado para tornar visualmente mais legível o texto de Correia - julgo que seria tudo uma questão de composição gráfica - e não condensá-lo numa versão “mais leve” para o leitor.

Se é acertada a opção por tornar homogénea a cor das páginas, o tom deveria ser bem mais claro para não ofuscar os excelentes desenhos do E. T. Coelho., sendo este no entanto o resultado em muitas vinhetas, dando ao conjunto um visual empastado, quer pelo tal cinza/castanho escolhido, quer pela impressão carregada em muitas páginas.

Obviamente é sempre de louvar uma edição que preserva a memória da BD e neste caso de forma inédita ao recuperar na íntegra os desenhos originalmente mutilados de Coelho. Mas esta edição é sobretudo uma reinterpretação d'Os Doze de Inglaterra para, eventualmente, fazer parte do Plano Nacional de Leitura, até pela opção, completamente errada a meu ver, de seguir o acordo ortográfico em vigor.

André Azevedo

Pedro Moura disse...

Olá, André. Obrigado pelas tuas palavras.
Como imaginas, não sendo eu o rei da síntese, já me estava a alargar em demasia no meu texto. Tens toda a razão, e acho que não fui, se calhar, tão contundente quanto deveria ser, e como o é (e o Domingos Isabelinho, que já havia alertado para esta questão, de forma acertada). Claro está que não tive oportunidade cotejar vinheta por vinheta o texto, para me poder pronunciar mais, mas vejo que é algo a escavar com mais atenção. Obrigado por tornares isso obrigatório. Quanto aos desenhos, menos mais, etc.
Sobre o acordo, difícil de discutir. Por meu lado, não o sigo, mas compreendo que as editoras se vêem obrigadas a seguir essa questão (ainda que nem todas, como nem todos os jornais, escritores, etc.).
Continua?
Abraço.

António C. disse...

Pedro,
gostaria de adicionar mais algumas observações à já sua longa e acertadíssima análise da presente edição. Sendo apreciador de boas reedições de materiais gráficos de qualidade não posso deixar de fazer comparações com algumas iniciativas do género feitas nos últimos anos, nomeadamente no mercado americano e francês. É sempre de louvar e encorajar o interesse de editoras portuguesas pela nossa herança gráfica, mas creio que aqui se perdeu uma boa oportunidade de lançar, talvez, uma série de qualidade de clássicos devidamente enquadrados e estudados. Foi com alguma decepção que via a fraca contextualização da obra, que poderia ter sido enriquecida com muitos outros materiais extra, quiçá um estudo biográfico. Questiono igualmente a capa, pouco apelativa graficamente, a escolha de tipografia para caixas de texto (forçada e muito uniforme) bem como as opções no papel da edição e reprodução da cor preta, já referido pelo André Azevedo (mas aqui é uma questão de preferência pessoal..). Lamento dizer, mas esta edição desmotivou-me e gostaria de dizer o contrário...

Pedro Moura disse...

Caro António C.,
Obrigado pelo comentário. Desculpe também por ser curto, mas diria o seguinte: espero que estas ideias dos leitores sejam discutidas de forma pública e se dêem a notar, para solucionar duas coisas: 1. mostrar que haveria um interesse vivo, mesmo que de um público restrito, em termos acesso a obras históricas e (para nós) obscuras; 2. que sejam empregues instrumentos de cada vez melhor qualidade quer do ponto de vista material quer do ponto de vista contextual. É insistir, neste caso, que a Gradiva não desista de mais projectos, mas o melhore no futuro.
Obrigado,
Pedro