2 de fevereiro de 2016

Norak e outros títulos. J.-M. Bertoyas (Kobé/auto-edição)

O texto presente não se focará somente em Norak, le fils de Parzan, o último número da série de fanzines Kobé do autor francês Bertoyas, mas antes é um comentário sobre a obra deste autor. Relativamente obscuro fora dos circuitos da edição independente francófona europeia, mas neles uma referência apolínea, temos tido a fortuna de trocar alguma correspondência que leva ao acesso às suas publicações caseiras. É com Norak, que na verdade não se distingue em termos de grau de trabalho das anteriores, que finalmente conseguimos tecer estas ideias soltas que se seguem. (Mais) 
 Apesar do autor ter um número de trabalhos publicados em casas editoriais tais como Les Requins Marteaux (Le Flon, cuja capa oculta com um ar de familiaridade o que esconde na páginas), Le Dernier Cri, e ter mesmo uma edição pela L'Association do seu Ducon, Bertoyas publica sobretudo no circuito do fanzinato. Apesar de se poderem esgrimir os termos “pequena editora” ou “micro-edição”, a verdade é que em termos de formatos, materialidade e circulação a esmagadora maioria dos objectos do autor de Lyon são de facto fanzines “clássicos”: podem ter capas a cores, ou em cartão, ou serigrafadas, mas o interior é a preto-e-branco, muitas vezes em fotocópias, e simples cadernos agrafados. A paginação muitas vezes sofre de uma ou outra imprecisão, os desenhos a esferográfica, lápis ou canetas deixam visíveis as titubeações, erros ortográficos abundam, a numeração é rabiscada, etc. E a própria estratégia de assinar com nomes diversos (Juan-Miguel, reza a capa do volume porno-pesadelo da Terre Noire; Bertoss, outro zine; Jean Michel Bourthan, assina o autor noutro volume, quiçá revelando o seu nome verdadeiro) leva a essa atomização da atenção, apesar das inúmeras participações em projectos, exposições, entrevistas e convites em encontros.

Além do mais, o tipo de trabalho desenvolvido pelo autor não é convidativo, de forma alguma, a algum tipo de “recuperação”, que lhe permitisse conquistar os espaços reservados na atenção pública. A sua banda desenhada não tem contornos “literários”, o seu estilo visual não apresenta elementos suficientemente tranquilos que pudessem ser co-optados, a sua obra não é concentrada. Bertoyas é um caso verdadeiro de “selvagem gráfico”, que pode recordar uma atitude à la Panter primitivo.

O autor não se coíbe de visitar territórios genéricos estabilizados, seja a ficção científica, a banda desenhada de aventuras, a historieta infantil, a pornografia desregrada, o policial, etc. Norak, por exemplo, para todos os efeitos, parece ser uma paródia das histórias de famílias de heróis brancos na África selvagem, precisamente como nos desenvolvimentos “domésticos”, sobretudo no cinema e banda desenhada, da personagem famosa de Burroughs. Mas o autor introduz os seus elementos correntes, desde cenas sexualmente explícitas a alucinações causadas pela ingestão de uma qualquer substância, diálogos onde se notam várias relações de poder imposto, e relações mal resolvidas… Bertoyas, portanto, agarra com força pelos cabelos os géneros mais comuns e fá-los atravessar um filtro destruidor que torna os seus contornos, divisões e fronteiras instáveis, ou como uma matéria que se derrete e vai misturar indelevelmente com outra ao lado, até tudo ficar numa massa quase informe e que nos prende. Podemos dizer que todo e qualquer número da Kobe, ou obra do autor, apresenta uma qualquer intriga, sem dúvida, mas tentar desenleá-la numa fiada coerente e passível de resumo é uma perigosa armadilha.

A grande distinção entre Bertoyas e uma hipotética escola punk ou New Wave da banda desenhada, que havia sido cultivada nos anos 1980 por Panter, mas igualmente Lynda Barry, o Groening primitivo, Mark Beyer, Mark Marek, encontra-se na abordagem gráfica mais delicada do autor francês, sendo muito difícil inscrevê-lo num campo relativamente determinado. Há uma parte que tem a ver com a apropriação, utilizando o autor muito trabalho de figuração, ou citação mesmo, de personagens advindas de vários quadrantes da banda desenhada infantil norte-americana, aquele estilo “borracha” ou bigfoot que agrega os desenhos animados Disney e Fleischer, ou a Harvey, por exemplo. Com efeito, Ducon cita sobremaneira o Bolinha e Luluzinha de Stanley e Tripp. Há uma linha suave, móvel de contorno grosso e preto que torna estas personagens todas em bonecos sólidos. Os olhos, as orelhas, os dedos e pormenores como os balões de fala, nuvens, pedras ou plantas parecem sair de toda aquela biblioteca típica e quase comutável dessa banda desenhada aburguesada, ainda que tenham sempre pequenos detalhes tremidos. Mas Bertoyas usa estas imagens de forma interrompida, emprega balões que não se lêem completamente (um pouco à la L. L. de Mars, mas mais parece-nos que cumprido de forma mais genuína, isto é, sem o fito de “criar estilo”), por estarem empilhados, virem de locais inesperados, dobrarem-se sobre si próprios… Há um excesso de montagem, por assim dizer. Como se brincasse com um arquivo e o deixasse cair e espalhar-se antes de o organizar.  

A concatenação de corpos, sobreposições, desarranjos espaciais e empilhamentos, de resto, é uma descrição perfeita também do seu modo de escrita e produção do fanzine. Existem histórias que parecem ter continuidade, personagens que juraríamos virem de títulos anteriores e histórias suspensas que parecem ser prometidas para ais tarde. Todavia, ou a produção segue um ritmo difícil de captar, ou há mesmo um desejo de atomizar essas ideias de modo incompleto, como se se tratasse de um universo criativo existente, mas logo desaparecido.

O autor também participou no longo e estranho projecto We All Go Down, de Pascal Matthey, em que cada número dessa publicação fica a cargo de um artista diferente, criando-se uma possível estrutura contínua de peças individuais, e em que cada prestação e feita de desenhos o mais carregados possíveis de vinhetas abstractas, ou quase afigurais, ou focadas enviesadamente sobre um objecto perdido, ou perdidas elas mesmas, as imagens, em sombras obsessivas de manchas. Mas esse projecto merecerá outra atenção.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo desconto substancial sobre as suas publicações, e o envio de outras.

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