9 de janeiro de 2016

Amigos do peito. Cláudio Thebas e Violeta Lópiz (Bruaá)

Numa correria da escola até casa, uma personagem visita vários dos cantos da cidade onde vive, perscrutando espaços de naturezas específicas, que convidam a actividades díspares, sempre na companhia de um seu amigo próximo. Esse passeio, que podemos imaginar repetido todos os dias, é também palco de uma reflexão sobre a amizade, ou melhor, a possível definição de um amigo, alguém que conhecemos por uma razão qualquer que nos leva a colocá-los num lugar que podemos sempre revisitar. (Mais) 
Poder-se-ia dizer que este é o encontro de um poema do brasileiro Cláudio Thebas com os desenhos da espanhola Violeta Lópiz, mas isso daria a entender que existiria um gau suficiente para compreendê-los como ainda separados. Mas os versos, apresentados em quadras ou quadras divididas, acabam por servir de ritmo perene dos passos da criança que atravessa as paisagens urbanas que Lópiz constrói a cada duas páginas, spreads completos que ocupam todo o espaço disponível do livro. O que os versos confessam pode não ter raízes directas no espaço atravessado pelo nosso olhar, mas é no seu conjunto que cria um mapa de passeios hipotéticos e que guardam as suas variações no virtual. Daí que as guardas, repetindo o tema da capa completa, mas numa versão negativa/nocturna, mostrem duplamente os percursos e as pertenças.

Em muitos aspectos, Amigos do peito é uma espécie de encontro entre a dérive baudelairiana ou benjaminiana, nas quais o acto do flâneur se vem associar a memórias pessoais, e que se estende para com os outros. Lópiz cria paisagens ocupadas por miradouros, edifícios contrastantes, parques públicos, ruas, praças e esquinas, jogando sempre de forma diferente com a distribuição possível entre as duas páginas. Simetrias, contrastes quase absolutos, complementaridades, desequilíbrios, e mesmo repetições com diferenças subtis, cada virar de página não apenas faz continuar o passeio e os pensamentos como trazem uma nova ambientação, um novo hausto ao ritmo.

A retórica visual do livro é feliz, jogando precisamente com o equilíbrio entre a simplicidade do aparato da representação – grandes panoramas urbanos nos quais quase parece não haver hierarquias de importância, desenhadas a linhas grossas de marcadores de feltro de inúmeras cores, e fazendo emergir padrões, texturas e gradações por acumulação (dadas as distâncias, há cantos que recordam Sol LeWitt) – e a distância das “acções”, levando, pelo menos num momento inicial, à dificuldade na identificação do ou da protagonista do “eu” que narra, logo à dissolução ou possibilidade de atribuição a todas aquelas visíveis. Quer dizer, não há propriamente uma ênfase dos elementos visuais entre si (em questões de formato, cores, outras características estruturais ou figurativas), e estes só ganham poder diferenciador através do movimento (que no interior de cada spread pode estar em concorrência com outros), da posição nessa composição, da sua repetição entre as unidades narrativas e a eventual ou imaginada relação directa com a faixa do texto.

Na verdade, esta descrição não é totalmente rigorosa, já que existe um elemento singular de diferenciação entre o protagonista e todas as outras personagens. Elemento minúsculo, simples, minimal, mas absoluta e drasticamente diferenciador, o que revela a importância cultural que lhe damos, proximamente do universal: os olhos.

É um livro, portanto, cuja construção do sentido é ligeiramente protelada, permitindo aos leitores, à medida que adivinham, possam compreender a universalidade da relação estudada e, quem sabe, à comparação com as suas próprias experiências. O que é mais intrigante é que é precisamente essa distância e indiscernibilidade inicial que torna Amigos do peito num gesto eticamente mais envolvente, mais íntimo.  

Claro está que, ou no momento da descoberta ou em retrospectiva, as hierarquias visuais estão em pleno funcionamento: afinal, a distribuição de acções no centro da composição, em posições isoladas ou destacadas (num topo de um monte, no centro do branco, em observação profunda onde todas as outras personagens se movem distraídas ou atarefadas), e a sua repetição contribuem para essa maior importância, mas a natureza visual de todo o projecto leva a que se possam fazer leituras paralelas, a que se desenvolvam acções secundárias que nos prendem os olhos e fazem explorar “para além” da trama central. 

Outras leves trouvailles visuais confirmam a forma como Lópiz pensa a ilustração: uma paisagem invertida por o protagonista estar de cabeça para baixo, uma árvore que abana ao vento, o qual é actor noutras acções ao longo do livro, assim como uma palmeira, as pequenas acções paralelas das outras personagens, e o gato, aumentam o grau de autonomia da paisagem visual, sem nunca porém romper o seu elo intrínseco com o pensamento que corre na mente do leitor e do protagonista.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas da internet. 

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