10 de dezembro de 2015

O Dicionário do menino Andersen. Gonçalo M. Tavares e Madalena Matoso (Planeta Tangerina)

Nem sempre os dicionários têm simplesmente de funcionar como um espelho do estado da língua. Alguns actuam como prontuários e tomam mesmo decisões novas que depois ganham a força da lei. Esses podem por vezes “mijar fora do penico”. O Dicionário dito da Academia, por exemplo, define bengala como um “Objecto de madeira ou cana, em forma de haste terminada por um punho, que serve para apoiar a mão quando se anda”, deixando de lado todas e quaisquer bengalas feitas de outros materiais (que passam a ter de procurar outro nome), e centralizando a sua função na mão e não na marcha e todo o corpo (como que desviando todo o peso). Depois existem os dicionários especializados, das gírias, que nos ensinam a diferença entre um batoque e um bidé, os especializados profissionais, que nos identificam as alhetas e o molinete, e os etimológicos, que nos recuperam a palavra célico. (Mais).

Depois há ainda os dicionários que resolvem refundar a língua. Que nos jogam as palavras de todos os dias, mas as revelam como encerrando outros sentidos, quer esta palavra esteja no lugar de “significado” quer no de “direcção”. São dicionários, então, que servem de jogo de baralhar e de cartografia para uma viagem, mesmo que esta nem implique movimento do quarto ou da cadeira.

É quase natural que seja Gonçalo M. Tavares, um dos autores presentemente mais consagrados na literatura portuguesa, e para mais a dita “erudita”, e cujo estilo austero é reconhecido, em termos de vocabulário, sintaxe mas igualmente no plano da expressão emotiva, a explorar as palavras enquanto objectos passíveis de revelar facetas abscônditas. Não é território de Tavares a exploração de emoções melodramáticas e bacocas, nem tampouco o fausto barroco do vocabulário, mas uma espécie de precisão que, de tão minuciosa e específica, desaperta os contornos absurdos do que parecia sério, e a maior justeza do que parecia negligenciável. A premissa d'O Dicionário do menino Andersen é a decisão desta personagem, que enquadra os textos e as imagens, em “inventar” um “dicionário novo, um dicionário que entusiasmasse os seus amigos”.

Seguem-se então revelações tais como a de que os fatos-de-banho são roupas que ainda não cresceram, que um piano serve para dar som aos dedos, que a escova de dentes põe as palavras mais brancas, que um mosquito é um animal mal sintonizado, ou ainda que os candeeiros de rua e das mesas-de-cabeceira partilham a mesma filiação e se destinam à leitura de livros de formatos distintos. Mas não são apenas “objectos concretos” aqueles que surgem neste livro, já que as palavras, sendo elas mesmo concretas, também podem descrever outras coisas, como a poesia, ou os actos de rir, voar, diminuir.

Não é a primeira vez que Gonçalo M. Tavares coloca as suas palavras num meio que se partilha com as imagens. A série O Bairro, afinal, vive numa complexa mas indestrinçável relação com as imagens semi-abstractas, semi-figurativas, sempre flutuantes, de Rachel Caiano (cujo nome é, a nosso ver, demasiado subvalorizado na apreciação dos livros, na sua publicitação, etc.), colaboradora de outras andanças, igualmente. Aliás, O Dicionário havia sido já publicado aos poucos na revista Pais & Filhos, com algumas imagens de Caiano, ainda que com diferenças para com este livro: há cortes nas entradas, há entradas eclipsadas, e há desenhos novos.

Numa apresentação pública deste projecto, o escritor explicava como pensava nas palavras como objectos concretos, físicos, que pudesse agarrar e perscrutá-los nas facetas menos conhecidas (como nos recordou essa imagem de um dos contos de António Pocinho, “Tolok”). Não é de admirar, portanto, que Madalena Matoso, na sua pesquisa pela geometria das suas formas e reduzidas cores (vermelho e azul, algum preto, de quando em quando um castanho, parco uso de halftones e tramas) tenha chegado a um equilíbrio pela diversidade. Se existem imagens que procuram uma correspondência quase imediata (tartaruga, galo, óculos, toalha), outras há que se dispersam em padrões mais alargados do raio de acção das palavras retratadas (relâmpago, diminuir, poesia, janela, vento). Desta maneira, o Dicionário não se apresenta de forma alguma com uma sequência homogénea, seja nas palavras reinventadas, seja nos textos explicativos, seja nas imagens. Estas tampouco se reduzem a meros retratos, apesar do que foi dito atrás. Algumas são estáticas, mas outras movem-se, umas apresentam um esquema de acção, outras desdobram um gesto, estas mostram contrastes imediatos, aquelas relações inesperadas, aqui revela-e o interior da barriga, ali oculta-se o outro lado.

Em todo o caso, estes pequenos casamentos obrigam, como sempre, a ponderarmos as origens comuns, grafadas, do acto da escrita e do desenho. Apesar de tudo, este não é um livro para ler em voz alta, não é uma poesia oral, é um acto de escrita, tem esse peso e presença, e com elas irmanam-se às imagens do mesmo modo. É um livro para ler e ver, e descobrir o que os une, os separa e, acima de tudo, os mistura. A resposta é sempre a mesma, porém: interpretar.

Se há intuito ou fito na prosa (e poesia, e teatro, e) de Tavares, é um convite ao pensamento. Ainda que a rede metatextual e intertextual d'O Dicionário seja mais reduzida do que noutros casos, ainda assim será possível aos leitores mais crescidos encontrarem pontes para toda uma constelação de autores que tentaram derrotar os cursos habituais da linguagem: Flaubert, Ambrose Bierce e a Mad magazine. No que diz respeito aos mais pequenos, contudo, também pode ser um convite à acção de estenderem o acto do dicionário para a restante língua ou os objectos lá de casa. Por exemplo, se aprendemos que o fogão é o representante do Verão da cozinha, e o frigorífico o do Inverno, quem serão os representantes do Outono e da Primavera? E na sala de estar? No quarto, na casa-de-banho? Se um sofá é uma caverna de tesouros de pirata, porque não lançar missões de exploração e resgate? E se há tosse com palavras complicadas e para se a evitar mais vale utilizar palavras de uma só sílaba, não é bom alistá-las e descobrir se funciona? Sim? Vá. Pois.  

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