18 de agosto de 2015

O tempo do gigante. Carmen Chica e Manuel Marisol (Orfeu Negro)

Se a natureza do tempo é incompreensível para os seres humanos, por estarmos nele imbuídos ou por ele sermos constituídos, tal não significa que esse seja um enigma o qual devamos desistir perseguir. E não há melhor momento de nos começarmos a interrogar sobre ele do que no momento em que passamos a existir, que é sempre, a cada momento afinal. Os livros ditos infantis, mormente os ilustrados, os livros de histórias com ou por imagens, são um instrumento incontornável nessa aprendizagem permanente, e se colocamos aquela ressalva quanto ao seu público-alvo é porque, de quando a quando, haverá livros que poderão ou deverão mesmo ser lidos pelos adultos não tanto com olhos de “nostalgia” ou “maravilha ingénua”, mas genuína entrega. Este é um desses objectos. (Mais)

Recordar-se-ão alguns leitores de que Com o tempo, de I. M. Martins e M. Matoso, procurava articular o entendimento do tempo e a natureza da sua passagem com a experiência mais quotidiana da observação do mundo à nossa volta: interiores, citadinos, contemporâneos, cheios de objectos e relações com os organismos que habitam esse espaço diverso. O tempo do gigante tem como propósito trilhar um mesmo caminho, mas fá-lo desviar-se por paragens bem diferentes. Em vez da acumulação de exemplos, há aqui pelo contrário uma concentração na própria duração do tempo, o qual, quanto mais é observado de tempo, mais lento escorre à frente dos nossos olhos, ou todos os sentidos.

Como promete o livro, as páginas viram-se à medida do tempo do protagonista, um gigante. Desta forma, temos a um só tempo uma passagem rápida – a cada viragem podemos mudar radicalmente de tempo meteorológico, apontando à passagem das estações – e uma passagem lenta – as percepções do próprio gigante, com quem a voz desincarnada da narração parece coincidir ainda que não representar. O seu percurso fica-se em torno de um espaço confinado às montanhas e florestas de pinheiros que habita. Quem sabe, da perspectiva dos humanos, ele nem sequer seja visível, não por não se notar na sua figura, mas por a sua lentidão ser a da natureza alterando-se, da cor das folhas nas árvores à forma como o terreno se dilui e incha. Os animais notam-no, por vezes até se assustam com ele, mas muitas vezes tratam-no como se fosse mais um dos acidentes de terreno. O texto parece seguir padrões repetitivos, de dúvidas, de pequenas excitações logo corrigidas por se compreender melhor que “não se passa nada”.  Pois narrativamente neste livro não se passa de facto nada a não ser a própria passagem desse tempo por estes espaços e estas criaturas. Não há conflitos neste livro, ainda que haja uma súbita e profunda transformação, ecoada nas guardas do livro, e que são o coração da surpresa da oculta acção do livro.

Visualmente, este livro é magnífico. O seu tamanho, não sendo desmesurado (à la A gigante pequena coisa ou Kramer’s Ergot), é suficientemente grande para mimar a escala da criatura peluda que habita a floresta montanhosa. Todos os desenhos são criados por áreas de cor, apicada de modo quase uniforme e criando texturas e distâncias pela sua diferenciação, sem qualquer trabalho de base ou posterior de linhas e fechamentos a preto. Cada “objecto” apresenta-se assim numa cadência de tons que nos permite criar a ideia de textura e tridimensionalidade: os castanhos da montanha, os verdes da folhagem arborícola ou rasteira, os laranjas e vermelhos do gigante. O ilustrador, Manuel Marsol, usa aqui e ali papéis texturados para compreendermos melhor as escarpas das montanhas, o solo coberto de neve fresca, as tábuas das casas abandonadas, os rochedos colhidos pelo gigante, a paisagem toda iluminada pela neblina que espraia a luz lunar. Ou aplica intervenções pontuais ou espalhadas de linhas e pontos, para representar os pelos da criatura, o padrão das bétulas, o movimento das águas, a queda da neve e o voo das agulhas dos pinheiros, o voo da lava, o pó e terra espalhados pelo vendaval. E, o mais belo dos pormenores, as pinceladas grossas de tinta branca e diluída para assinalar as nuvens que atravessam os céus, de resto claros e azuis.

Um livro cuja recompensa não está em lê-lo até ao fim, e cuja surpresa não está na sua completação, mas antes na sua revisitação constante, e descobrir que, onde não se passa nada, se pode sempre passar tanto.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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