12 de junho de 2015

Climate Changed. Philippe Squarzoni (Abrams)

O emprego de livros de banda desenhada com intuitos informativos ou mesmo pedagógicos não é uma novidade. Todavia, a esmagadora maioria dos projectos que se entrega a esses fins usualmente trilha caminhos didácticos e secos, no sentido em que partem de posições de saber ou mesmo de poder para depois veicular “lições” aos seus leitores. Uma das formas de corrigir esse posicionamento é aquele proposto por Squarzoni: o de, ao ir fabricando o seu projecto, procurar ele mesmo compreender a questão sobre a qual se propõe aprender. (Mais) 

O autor não tem respostas sobre a ideia das alterações climáticas em curso no planeta, suposto “tema” do livro. Tal como muitos dos seus leitores, também ele se sentia (ou sente) algo perdido face à rede de direcções possíveis de investigação. Aliando o seu trabalho usual – reportagens em banda desenhada – a esta questão premente, que tinha sido tocada, ao de leve, no seu ensaio sobre o capitalismo, Dol, Squarzoni dá início a um processo de leitura e entrevistas que vão coalescendo nessa tentativa de resposta. Citando as suas fontes, mostrando os livros que lê, as fontes de informação que consulta, começa por fazer descrições simples das relações entre a Terra e o Sol, sobre a temperatura e os gases existentes no planeta, contrastando com o de outros planetas do sistema solar, ou estudando o que se sabe da história a longo prazo, sobre os fenómenos naturais da fotossíntese à decomposição orgânica, e passando a processos industriais, do abate de florestas à exploração animal e uso de combustíveis. Além dessas informações, Squarzoni apresenta igualmente uma sequências de entrevistas editadas, a personalidades que o ajudam a navegar nestas confusas águas. Jean Jouzel, climatologista do Laboratório para as Ciências Climáticas e o Ambiente (LSCE), Hervé Le Treut, director do Laboratório de Meteorologia Dinâmica do Instituto Pierre Simon Laplace, Stéphane Hallegatte, climatólogo que trabalha no World Bank Sustainable Development Network, e outras personalidades entre economistas, especialista de desenvolvimento, um físico nuclear, etc. Esse painel, já para não falar de um apoio fundamental do Painel intergovernamental sobre mudanças climáticas, ou IPCC, que reúne milhares de cientistas de todos os ramos, “voluntariando os seus esforços” para “criar uma perspectiva global clara sobre a mais recente informação científica e sócio-económica sobre ciência do clima”, é o solo que cria o sustento informativo do edifício que Squarzoni tenta criar, neste seu livro de mais de 450 pranchas.

É através dessa diversidade, tecida num fluido passeio pelas mais diversas facetas, que, aos poucos, nos aproximamos do verdadeiro “culpado”, se assim se pode dizer: todo o sistema sócio-económico montado pelo dito Primeiro Mundo, a sociedade de consumo, as formas rápidas de obsolescência de sistemas, e os modos de cumprir políticas ambientais, de trabalho, produção industrial, exploração agrícola e animal à escala global. Daí que não admire que Squarzoni dedique alguma parte do tempo a estudar as relações entre países, a certas “quotas” de emissões ou exploração, e até mesmo à maneira como a publicidade é construída, que nos força imagens distorcidas das responsabilidades e equilíbrios entre poderes, energias e interesses económicos específicos.

Dos livros anteriores de Squarzoni, alguns dos quais lemos aqui, parece-nos que Climate Changed (no seu título original francês, Saison brune) é o mais pessoal. Não por o autor se colocar no centro do foco móvel das suas pesquisas, que era já apanágio das suas reportagens em banda desenhada (é mesmo uma das facetas ou instrumentos da reportagem ou jornalismo em banda desenhada), nem por revelar aqui e ali um pouco mais da sua vida pessoal, mas por centrar o papel fundamental da dúvida e da indecisão na sua experiência. O livro começa com considerações de inícios de discursos, e os seus términos. Recorrentemente, como que “interrompendo” a narrativa principal, o autor regressa a memórias da infância ou adolescência, à casa de montanha onde passa uma temporada com a namorada, a pequenos episódios da sua vida. A reminiscências e problemas que se lhe atravessam, na vida pessoal e profissional, as contradições que perfazem a sua vida. Se usámos aspas para a ideia de interrupção, isso deve-se a de que elas não o são, uma vez que estas dúvidas e momentos em que se descentra a atenção para o eu constituem o próprio discurso que estamos a ler, no sentido em jamais retirarmos o autor das equações estudadas e, por conseguinte, não nos retirarmos a nós mesmos. Daí que o seu sub-título em inglês seja “A personal journey through the science”. Ou seja, o que começou como um processo de compreender certas expressões e o que elas acarretavam – começando por “alterações climáticas” - acaba por se tornar uma exploração do próprio comportamento, e do papel que um indivíduo determinado tem no dito “ciclo do carbono”.

Climate Changed não é, de maneira algum, um livro leve e “feel good”, em que se apresentem “15 ideias em que podes ajudar o ambiente!”, ou algo tolo dessa espécie. Bem pelo contrário, a leitura do livro leva a uma obrigatória depressão, resultado expectável na compreensão das nossas “pegadas”. São questões pertinentes, difíceis e abrangentes que vão ao osso da problemática, a qual vai dar sempre, sempre, ao mesmo denominador comum: as políticas económicas (e consequentemente industriais, materiais, e, necessária e propriamente políticas) do capital financeiro, sobretudo aquele ancorado na exploração de combustíveis fósseis.

O livro está cheio de contradições, mas essas contradições fazem parte precisamente da nossa vida contemporânea, de 1º Mundo pós-industrial e burguês. Ao escrevermos este texto num computador, e colocá-lo num blog, podemos viver a fantasia de que o digital não tem responsabilidade nestes gastos, mas o conhecimento das tecnologias que permitem esse facto – desde o controlo da electricidade ao consumo de electrónica, a questão da cassiterita ou do volframite africanos, etc. - corrigirá esta ilusão e revelará, no fundo, se não a “cumplicidade” ou “responsabilidade”, pelo menos a “implicação”. Não nos podemos separar confortavelmente desse processo, se fazemos parte desta sociedade.

O livro está dividido como que em partes, mas estas não correspondem propriamente a concentrações temáticas ou inflexões das pesquisas. Simplesmente o autor aumenta os momentos de pausa e afastamento da matéria que decorre, de maneira a poder respirar o ritmo e densidade das informações e do grau de implicação que vai sendo aventado. O autor trabalha, contudo, as suas características conhecidas: há, por um lado, linhas de desenvolvimento que se mantém na mais estrita das representações realistas, devolvendo, por assim dizer, as hipotéticas experiências que o autor teve, mas por outro uma profunda pesquisa de representações alegóricas, metafóricas, misturando de estratégias meramente (nunca o são) infográficas até sequências quase alucinadas para transmitir uma ideia – como a assunção de Pais Natais como representantes da sociedade contemporânea de consumo e o seu sumário assassinato pelo próprio autor e a namorada, transformados em super-heróicos ninjas eco-guerreiros. No entanto, esta estranha a hiperbólica acção tem lugar por várias razões, parece-nos. Não é apenas um paradoxal e irónico emprego de típicas estratégias de comunicação e ficção mais apropriados ao escopo de atenção da esmagadora maioria do público, e como um contraponto à percepção de que as entrevistas, com as suas “talking heads” é “seca”. Trata-se mesmo de demonstrar como a ideologia do espectáculo e desse tipo de mecanismos ficcionais é cúmplice do mesmo substrato social que preside ao consumo, o qual por sua vez é o denominador comum da situação analisada pelas suas várias dimensões ao longo do livro.

Este tema é, como se imagina, extremamente complexo, uma vez que envolve toda uma série de esferas distintas, elas mesmas já em si complexas. Não se trata, afinal, apenas de uma questão científica, mas de uma questão que envolve variadíssimas disciplinas científicas, as quais têm de trabalhar em concerto. Não se trata somente de uma questão relativa à política local, mas antes à coordenação internacional e até mesmo supra-nacional de toda uma série de organismos. Não se trata de uma questão somente ideológica, se bem que essa faceta tem o seu papel óbvio, mas uma questão interpelante a nível ontológico. E que acarreta em si uma pergunta relativamente simples de colocar, mas impossível de responder cabal e finalmente: somos nós, enquanto seres humanos, parte ou não da natureza? Repare-se que não perguntamos se somos parte da “biosfera” ou se temos algum papel no “ciclo” da água, matéria, transformação de energia e espaço, etc., que já acarretaria em si uma resposta (positiva). A utilização do termo “natureza”, desde logo um termo que remete ao inato, àquilo que emerge, é também uma noção que pode ser lida com alguma distância do ser huamno contemporâneo, que se vê fora e afastado daquela outra esfera. Já colocarmos a questão nos termos do “bio” ou mesmo do “zoe” (a vida orgânica, por oposição à vivida pelos seres humanos), transformaria profundamente as condições da pergunta. O autor não procura ancorar as suas respostas filosóficas em discursos já existentes, mas nutre, sem dúvida alguma, uma exploração profundamente filosófica na abordagem do “assunto”, mesmo que de formas simples.

A certa altura, o autor tem dúvidas sobre se deve ou não participar numa conferência ou numa exposição longe da sua terra, uma vez que isso implica viajar de avião. As viagens aéreas são vistas como um contributo pesado para as emissões de CO2. Mas o autor pensa que, mesmo que não vá, o avião descolará à mesma, e a emissão não muda com ele ou sem ele. O debate interno a que se entrega (ou será mesmo que se abandona?) é o fiel do tipo de questões complexas a que nos deveríamos encontrar, uma vez que não têm uma resposta simples. Por um lado, um simples e banal cinismo de, “bom, já que se emite o mesmo, não sou eu quem contribui para isso” não é satisfatório. Mas ao mesmo tempo, por outro, parece que o acto isolado de recusar a viajar de avião se reveste de alguns princípios românticos que também pouca ou nenhuma eficácia terão contra a própria estrutura do tecido sócio-económico que leva a essas mesmas emissões. Como resolver essa questão? Esperar respostas simples e cabais é, desde logo, uma esperança algo ingénua, e talvez mesmo perigosa, pois o mais importante é começar a iniciar uma profunda reflexão, baseada em factos, compreensões latas, contextualizações globais, debate e discussão com vários planos da sociedade, e só então começar a pensar na direcção das respostas. É Climate Changed uma boa resposta a essas questões? De forma alguma, é um excelente passo para começar a colocá-las.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na net.

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