16 de fevereiro de 2015

La bande dessinée en dissidence. Groupe ACME. (Presses Univesitaires de Liège)

O grupo ACME tem caminhado a passos largos para se vir a tornar numa referência incontornável dos estudos de banda desenhada, dada a forma como têm apresentado os seus trabalhos. Se os seus membros, em termos individuais, são já ensaístas e investigadores com trabalhos bastante significativos (como Christophe Dony, Gert Meesters, Erwin Dejasse, etc.), é a sua coordenação conjunta que leva a que os seus gestos editoriais ganhem uma importância maior, uma vez que apresentam os objectos de estudo sob perspectivas variadas e múltiplas, (quase) completas. Já havíamos falado sobre o volume dedicado à L'Association, esperamos vir a falar de um outro projecto futuro sobre Spirou, encontramo-los agora nesta obra mais lata, que importa ler com algum rigor (ao contrário das passagens mais superficiais dos últimos tempos). (Mais) 

Dizemo-lo “lata” pois o objecto, desta feita, não é uma editora, personagem ou autores específicos, mas um “território”. Este livro reúne algumas das comunicações havidas numa conferência em 2011 dedicadas às “figuras independentes da banda desenhada mundial”, apresentadas em francês e inglês, o que explica o título duplo das mesmas, do livro, e o facto de encontrarmos ensaios nessas línguas no volume (6 em francês, 4 em inglês). Para além dos investigadores-membros da ACME, houve participações de peso (Thierry Groensteen e Charles Hatfield à cabeça), entre outras comunicações, todas elas vogando em torno de palavras-chave, tais como “alternativo”, “independente”, “dissidente”, etc., em relação à produção de banda desenhada. De facto, essas palavras são muitas vezes empregues como taxonomias ou categorias que cartografam um determinado trabalho, uma referência que ajuda a compreender uma certa relação com o tecido económico, um posicionamento ideológico e estético, etc., mas as mais das vezes são termos também fluídos, vagos, ambivalentes demais e os quais ou levam a mal-entendidos ou a incompreensões no seu uso. Todos os ensaios aqui reunidos compreendem a dificuldade dessas distinções, e procuram ser exactos quanto ao seu uso, tomando em conta contextos geográficos específicos e outros factores.

Dever-se-á considerar este volume um contributo excelente para uma sociologia da literatura, tal como é aplicada a este território de criação. Uma sociologia matizada, que nos ajuda a compreender certos objectos de maneiras mais precisas e que convidam a análises mais cuidadas. De facto, há uma dicotomia que parece ter surgido há já largos anos, advindo da literatura, mas que rapidamente influenciaria outras áreas, tais como as do cinema, da música e da banda desenhada. Num livro como L'institution de la littérature, de Jacques Dubois, extremamente influente e citado por um número dos ensaístas, encontraremos os instrumentos para introduzir esse enquadramento geral. Essa primeira dicotomia trata-se daquela que cria os pólos, por um lado, da produção textual, isto é, todos aqueles factores que dizem respeito aos autores eles-mesmos (e que usualmente são estudados por análises igualmente textuais, como a crítica estética), por outro, todas aquelas condições do seu surgimento, da sua realidade, factores sócio-culturais, económicos, políticos. Sem querer criar qualquer tipo de analogia ou correspondência entre estes termos e os próximos, é ainda em Dubois, na esteira de Bourdieu, que encontraremos uma segunda dicotomia: a existência de como que duas esferas de produção literária, as quais delimitam os bens simbólicos delas advindos. Por um lado, teríamos a esfera mais restrita da criação literária “cultivada”, que se pauta por princípios estéticos, e uma esfera de produção mais massificada, a qual obedece a normas das leis económicas. No que diz respeito à banda desenhada, a transposição dessa espécie de dicotomia é, pensamos, clara. Ainda hoje se pautam muitas discussões quando se transpõem esses termos para uma realidade menos consolidada como a portuguesa. Todavia, conviria ter em conta que mesmo a comparação directa dos termos em França e os Estados Unidos levaria a algumas diferentes aplicações e considerações.

Já quanto à noção de dissensão, apresenta-se de uma forma pouco clara no início, e levaria a pensar, talvez, que se trataria de uma noção mais politizada. Mas é Groensteen que nos recorda que Menu, em Plates-Bandes, havia empregue, a propósito de editoras tais como L'Association, Fréon, Cornélius, Amok, etc., a palavra “dissidência” “por oposição a uma edição esclerosada” (168), dos ubíquos 48CC no espaço francófono. Mas, como se verá, o escopo de atenção, ainda que vogue em torno dessas editoras (ou da Fantagraphics, Drawn & Quarterly, etc.), é mais alargado.

Vejamos cada ensaio individualmente, não antes sem dizer que a ordem pela qual são apresentados é muito bem pensada, criando-se uma espécie de progressão dos instrumentos e das questões apresentadas, que se vão complementando mutuamente.

O capítulo de Erwin Dejasse procura demonstrar a continuidade das experiências de edição alternativa, associando a tendência dos anos 1990 (todas aquelas plataformas associadas à la Autarcic Comix) à Futuropolis e à Raw, assim como a movimentos literários. Também Tanguy Habrand está interessado na história da edição, logo, e bebendo dos instrumentos sociológicos de um Dubois, de um Bourdieu, de um Howard S. Becker, tenta compreender qual é o posicionamento da edição “independente” em França, num ambiente em que se cria uma dicotomia entre “a edição estabelecida e a edição selvagem”, analisando formatos de edição, mas sobretudo questões legais, económicas, estruturais, caminhos de profissionalização, apoios institucionais e integração num tecido maior cultural.

Charles Hatfield, por sua vez, produz um exercício muito curioso. Partindo de uma posição antropológica embebida, ele utiliza os exemplos de quatro comic books que comprou num mesmo dia para explicitar a forma como ele entende o termo “alternativo”, nos Estados Unidos, para dar conta de algo que tem mais a ver com “conteúdos” e “atitudes” do que com um posicionamento económico. Essas revistas eram Optic Nerve no. 12, de que falámos, Love & Rockets: New Stories no. 4, Treehouse of Terror no. 17 e o jornal pood no. 3. De um ponto de vista estritamente económico, todas elas são “independentes”, ainda que expressem a sua relação com a cultura popular e/ou erudita de formas drasticamente diferentes, e se procurem integrar no “mercado” de formas também ela distintas, levando Hatfield a afunilar o termo de alternativo para aquelas criações que “oferecem alternativas ao consenso acrítico [unthinking] que a cultura de massas supostamente encoraja” (73). A análise multidisciplinar de cada uma destas publicações é uma das provas pelas quais Hatfield é uma referência do campo.

Alguns dos ensaios apresentam casos de estudo muito específicos, concentrados, procurando que a explicitação atomizada permita uma visão de campo mais sólida. É o caso de Jean-Matthieu Méon, que discute o trabalho individual de Dan Nadel, quer no seu próprio selo, a PictureBox, tendo publicado através dele Frank Santoro, Brian Chippendale, C.F., entre muitos outros, inclusive autores internacionais como Takeshi Nemoto, e livros de arte (para simplificar), quer noutros projectos como a revista Ganzfeld ou os dois projectos-irmãos editoriais, Art Out of Time e Art in Time. Méon descreve cada um destes passos ou episódios na vida profissional de Nadel integrando-a no enquadramento profissional maior, no seu contexto nacional e económico e contrastando com outros projectos, como os da Fantagraphics ou da Drawn & Quarterly, numa abordagem gráfica-estética, para demonstrar a forma bem distinta de trabalhar deste editor. Quer demonstrando como a sua recontextualização da banda desenhada na cultura visual do século XX é muito alargada, que o seu olhar sobre géneros e períodos da banda desenhada é muito menos restringido que o dos seus colegas e, a lição principal, a que ele estabelece “a necessidade de poder pensar separadamente a independência económica e a criação alternativa” (85), levando a que se possa estipular uma “independência estrutural (quer dizer, o grau de dependência da estrutura em relação às lógicas económicas) e a independência formal (o grau de dependência estética em relação a códigos preexistentes ou de valorização da inovação)” (90). De certa forma, são essas as teclas principais que são assinaladas igualmente por Dony, Hatfield, Groensteen, Meesters, etc.

Christophe Dony, precisamente, elege o selo editorial Vertigo como exemplo de um híbrido entre o mainstream e o alternative nos EUA, para mostrar como essa plataforma avança uma “poética de demarcação e diferenciação em relação a essa dialéctica” (pg. 104, e que Dony sempre apresenta como heurística, aproximativa, e não uma “realidade”). Apresentando títulos que nascem dos géneros para os questionar através de mecanismos de “auto-reflexão [e] experimentalismo formal” (94), o investigador analisa o trajecto da Vertigo desde o seu início, a relação com a casa-mãe (a DC) e a forma como dialoga com os tais “pólos”: por um lado o mainstream, que regra geral considera a Vertigo demasiado complexa, madura, estranha, e o círculo dos alternativos, que a trata como um todo associado a um grau de escapismo genérico e manchado pelo mainstream. Apesar da boa vontade do autor, porém, a concentração em análises textuais das capas de apenas três antologias especiais desta editora (com First Taste, First Offenses e First Cuts) e a ausência da consideração textual dos títulos propriamente ditos (que de facto são mais devedores de fórmulas genéricas e plenamente integradas nas categoriais expectáveis mais do que totalmente dirigidas por vontades autorais), e apenas uma espécie de coda final sobre o “fim” da Vertigo (isto é, a saída de Karen Berger, a alteração da relação legal com os autores, e a re-integração de muitas das personagens “principais” no Universo DC post-New 52), leva a que grande parte do encómio do artigo encontre um significativo abalo.

O artigo de Rudi De Vries emprega uma teoria específica a um exemplo específico. A teoria específica é “a teoria de sistemas de selecção”, dos estudos organizacionais. De uma forma sumária, trata-se de entender como é que um determinado objecto (autor, obra, instituição, etc.) é integrado, ou não, num dado ambiente, no contexto. No caso da banda desenhada, como é que um dado autor é reconhecido e garante a sua sobrevivência crítica e económica? O exemplo é do percurso de Joost Swarte e a editora holandesa que ele próprio co-fundou, Oog & Blik. O percurso de Swarte é extremamente interessante e rico, se considerarmos que o seu papel não se deve somente à sua própria obra de banda desenhada, rapidamente adoptada internacionalmente (graças à projecção em França, numa primeira fase e, numa segunda, à primeira vida da revista Raw), mas também aos seus esforços editoriais (antologias, a editora, lançar autores holandeses internacionalmente), expositivos (fundou o melhor festival da Holanda, em Haarlem, a exposição em torno de Hergé que cunharia o termo “linha clara”, etc.). Não deixa de ser curioso que neste caso se está a falar de um autor que, tendo fundado uma linguagem e atitudes bem diferentes daquelas correntes no seu tempo e espaço, conquistaria depois um posicionamento que agora consideraríamos “institucional”. Mas na verdade, bastará pensar naquelas estéticas que quando surgiram eram vistas como “incongruentes, originais, transgressivas, anti-comerciais” (E. Dejasse, 37) e que, passado uma dezena de anos passaram praticamente a uma assimilação total para termos exemplos similares. É o que sucedeu com o estilo caligráfico de um Joann Sfar, ou uma estilização à la Blutch, Trondheim e Blain, às melancolias urbanas de um Clowes e Ware, etc. Dejasse, aliás, havia já acrescentado que se trata de um fenómeno idêntico àquele que ocorrera em relação a autores como Hergé, Caniff, Franquin e Kirby, cada qual a seu modo visto hoje como “pilar de referência”, mas num momento das suas carreiras como operando uma transgressão em relação às normas anteriores.

Gert Meesters também escolhe dois casos concretos, duas editoras de banda desenhada belgas de expressão flamenga, a Bries e a Oogachtend, para demonstrar, de uma forma muito cuidadosa (que envolve uma análise dos títulos, dos formatos, dos modelos económicos, e até da biografia dos editores, segundo aquilo que o investigador chama de “poéticas das pessoas”, pg. 138) que mesmo que dois selos possam seguir os mesmíssimos caminhos em termos estruturais e até de formas de escolhas editoriais, ele seguirão “lógicas” diferentes, ora “inspiradas” ora “do mercado” tornando-as, respectivamente, “editoras culturalmente independentes” e “editoras independentes de facto” [isto é, de um ponto de vista financeiro-económico, não de motivações ideológicas] (cf. 132-137). Ao ler este artigo, pensámos que uma abordagem semelhante no nosso país poderia surtir os seus efeitos, estudando-se, por hipótese, casos como a Chili Com Carne, a Polvo e a Kingpin Books (já para não falar de projectos que, entretanto, se evaporaram), apesar da diferença de longevidade das editoras e respectivas contextualizações históricas. Fica a nota.

Sylvain Lesage estuda o caso da auto-edição francesa nos anos 1970-80, focando não tanto a questão dos fanzines ou aquilo que seria entendido como edição alternativa num sentido mais imediato, mas bem pelo contrário todos aqueles “grandes” autores (ou pelo menos de um sucesso comercial considerável e uma circulação significativa) que, por uma ou outra razão, optaram por se lançarem na edição da sua própria obra. Fala-se assim de Claire Bretécher, de Philippe Druillet, de Jean Graton, de Fred, de Régis Franc, de René Goscinny (ora para Astérix ora para Iznogoud). Trata-se portanto de uma constelação muito específica, ao ponto de se angariar a expressão difusa de “mono-edição” (cunhada por Jean-Yves Mollier), e a qual, no fundo, “não é uma alternativa à edição industrial senão em aparência”, já que “a autonomia editorial conduz ao reforço das limitações dos géneros criadas no seio da edição industrial” (147), levando, por exemplo, à necessidade de aumentar a produção de um dado título. Porém, quase todas essas experiências foram sol de pouca dura, tendo todos regressado a estruturas maiores e mais comerciais. Simplificando a questão apresentada por Lesage, é curioso entender que o maior problema é precisamente aquele que mais mói a publicação em Portugal e em todo o mundo: a distribuição. A dificuldade não está em dar o grito do Ipiranga, nem em fazer (belos ou não, inovadores ou não) os livros propriamente ditos, mas em garantir que eles cheguem ao público.

Essa questão assenta que nem uma luva ao ensaio seguinte, de Benoît Berthou. Partindo de uma dimensão usualmente arreigada da maior parte dos estudos de banda desenhada (mas eles existem!), Berthou discorre sobre estratégias comerciais e de marketing específicas, estudando a Comptoir des Indépendants, que durante os anos 1990 foi a distribuidora de quase todas as editoras francesas e belgas francófonas alternativas (L'Association, Amok, Atrabile, La Cinquième Couche, Ego comme x, Les Requins Marteaux, Six pieds sous terre). A análise dessa estrutura de longa vida mas que também chegaria a um (previsível?) fim, e o seu catálogo, a Gazette, leva Berthou, no seio das suas considerações acutilantes, a concluir que a comercialização da banda desenhada ganharia substancialmente se circulasse como livros tout court, e não subsumida a um campo artístico específico (lojas da especialidade, no meio de brinquedos, t-shirts, etc.). Salvas as distâncias e compreendendo a necessidade de existirem casos de charneira ou totalmente exteriores a esse mecanismo, esta é uma posição que partilhamos: o mais interessante seria ver uma banda desenhada lida como “mais um livro”, e não tanto como um campo específico de “leitura febril” e “de fãs”. Dito isto mesmo contra este nosso próprio espaço, “especializado”.

Thierry Groensteen, finalmente, apresenta um texto relativamente curto e simples, já que se tratam “apenas” de algumas notas reminiscentes do seu trabalho de editor, em primeiro lugar na sua editora L'An2 e depois como director na colecção integrada na Actes Sud, depois da falência e absorção do seu projecto por aquela prestigiante casa literária. Porém, como se espera deste incansável actor – no pleno sentido da palavra - da banda desenhada francófona e não só, o seu curto texto é contundente, já que, “sendo a situação da edição móvel e evolutiva, a noção de editor alternativo obedece necessariamente a uma historicidade” (168). É também, em muitos aspectos, uma resposta ao livro de J.-C. Menu, Plates-Bandes, na medida em que o fundador da Association havia acusado muitas editoras comerciais de tomarem de assalto muitas das estratégias criadas por essas editoras alternativas, sobretudo a Casterman, a qual com a colecção Écritures tentava ocupar o mesmo espaço da dita banda desenhada “literária” que havia sido fundada pelos editores de L'ascension du haut mal, Livret de phamille, Persepolis, entre tantos outros. Mas, diz Groensteen, e com ele concordamos, se Menu tem razão até certo ponto de se irritar com essa “recuperação”, a verdade é que a abertura de agentes é inevitável e a “vanguarda” pelos editores menores para depois ser seguida pelos maiores é muito expectável (veja-se o que foi dito acima a propósito de estilos heterodoxos que depois se tornariam “escola”). Groensteen vai mais longe, porém, para assinalar a sua própria primazia em duas frentes. Em primeiro lugar, a de projectos patrimoniais da banda desenhada, com volumes que não apenas recuperavam a memória desta arte como a expandiam (com A.B. Frost, Cliff Sterett, Miné Okubo), antes de L'Association o fazer ela mesmo, e com um escopo francamente menos alargado (ainda que interessantíssimo e válido). Em segundo, na dimensão ensaística, bastando apontar para Principes des littératures dessinées, de Harry Morgan (2003), e Un object culturel nonidentifié, do próprio Groensteen (2006), para conquistar um espaço incontornável, contra a colecção ou série Éprouvette, cujo primeiro volume surgiria apenas em 2005. Groensteen, de certa forma, está a fazer um ajuste de contas, no sentido de “justiça”, apresentando o seu trabalho – economicamente ruinoso, como se viria a provar – como “uma alternativa à alternativa” (171).

A leitura deste volume, ainda que pareça muito concentrada em termos de tempo – a dita “cena alternativa” dos anos 1990 quer em França-Bélgica quer nos Estados Unidos -, cria na verdade um tecido contínuo entre as mais variadas experiências históricas, transdisciplinares e mais integradas na cultura como um todo. Dejasse demonstra claramente como as estruturas da edição alternativa se associam a mecanismos que existem desde o século XIX, e como a ligação ao passado, sobretudo através da criação da própria tradição em que os autores se desejam integrar, é um factor determinante do seu trabalho (se bem que Groensteen, correctamente, não deixa de associar muito desses “olhares para o passado”, como os da L'Association, a uma nostalgia muito própria; diferente de mais usual e massificada das nostalgias, é certo, mas nostalgia ainda assim).

Apesar das conquistas “estéticas”, “cultivadas”, etc., que aconteceram nas últimas três décadas – a emergência de uma banda desenhada “literária”, a de experiências, passe o pleonasmo, experimentais mas que asseguraram a realidade de um campo expandido, a multiplicação de vozes, a discutível maior circulação e exposição, etc. - em termos comerciais nem tudo é líquido. E num país como Portugal, as coisas são ainda mais cinzentas, senão mesmo deprimentes, já que não nos podemos comparar a mercados como o francês, o americano, o japonês, ou mesmo o espanhol, o brasileiro e o coreano. É ainda Groensteen que, de uma lucidez magnífica, escreve o seguinte: “contrariamente àquilo que um epifenómeno ilusório como o triunfo de Persepolis pode levar a fazer acreditar, o mercado não estava na verdade tão evoluído assim” (172). Transponha-se isso para o caso português, em que o sucesso de vendas de títulos tão importantes no avanço ou uma certa maturidade desta disciplina expressiva como Maus (em um só volume), Fun Home, Rugas, Blankets, Persepolis, Cachalote, O homem que caminha, O gato do rabi (para ficarmos por títulos internacionais), não é de forma alguma garantido, para demonstrar que o conservadorismo intrínseco dos círculos da banda desenhada não são conducentes a uma sua maior expansão crítica, comercial e até mesmo referencial. Parte dos problemas poderão ter a ver com canais de distribuição (escasssos), estratégias de divulgação e publicidade (ou a sua ausência, na maioria dos casos), integração cultural (inexistente), autonomia da edição (por vezes diluída), recepção crítica (risível), ou por serem vítimas de “invisibilidade” face a projectos de maior “ruído fanático”, mas o futuro o dirá, confirmando isso ou não, assim como novas experiências prometidas criarão inflexões, e apenas um estudo específico e sociológico o demonstraria.

Contudo, e para concluir, independentemente dessas continuidades e integrações, e dessas crises perenes, fará sentido em utilizar o termo “alternativo” (ou “dissidente”) para falar de obras, autores, e até mesmo de plataformas editoriais que procuram um caminho distinto daqueles que se integram desde logo em géneros pré-existentes, estruturas narrativas expectáveis, papéis sócio-culturais padronizados? Claro que sim. Talvez até mesmo com alguma urgência, face precisamente à expectável “recuperação” ou até mesmo “comodificação” de todo e qualquer bem cultural... No artigo de Habrand, cita-se um texto assinado pelo colectivo da La Cinquième Couche, parte da Autarcic Comix, no qual eles garantem que aqueles movimentos editoriais não pretendiam “fazer contra-cultura, mas exprimir a sua cultura com meios que escapam aos clichés, de se exprimir no seio da cultura, e não nas suas margens” (54). Nem mais.

Nota final: agradecimentos aos editores do livro, pela oferta do mesmo.  

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