26 de janeiro de 2015

The Dream-Quest of Unknown Kadath. I.N.J. Culbard (SelfMadeHero)

São variadíssimas, como se imagina, as adaptações de Lovecraft à banda desenhada. Ele é, aliás, um favorito mesmo de uma certa tendência da banda desenhada, mais dada ao choque e ao terror gore, se bem que também tenha conhecido desvios e raptos pelos underground comix ou outros géneros e/ou estilos que os transformam de alguma forma para longe do seu território literário, usualmente baptizado de “weird fiction”, mas tratando-se no fundo de uma variação muito particular de uma família mais alargada a que se pode dar o nome de ficção gótica. Um desses desvios de Lovecraft, por assim dizer, e que ainda hoje achamos uma das mais interessantes premissas possíveis neste universo de referências, é aquele proposto pelo autor catalão Max, na sua história curta “El encuentro entre Walt Disney y H.P. Lovecraft”. (Mais) 

Convenhamos, porém, que existindo versões de algum interesse, a esmagadora maioria delas são bastante medíocres. Num cômputo selvagem, tropeçamos em títulos como aqueles editados pela Millennium, Adventure Comics e a Caliber Press nos anos 1990, ou mesmo de autores com reconhecido prestígio, como Richard Corben e P. Craig Russell, que optaram antes pelas formas mais simplificadas do choque. Não sem alguma displicência da nossa parte, podemos dizer que essa veia produziu assim trabalhos perfeitamente negligenciáveis. Depois temos objectos laterais, mas não sem interesse, como Lovecraft, de Rodionoff, Giffen e Enrique Breccia (publicado entre nós pela Vitamina BD), que tentam re-organizar os elementos propostos pelo escritor norte-americano numa configuração mais concentrada, e até numa biografia ficcionada. Lovecraft teve mesmo direito a participar no universo dos super-heróis The Authority e Planetary, em Ruling the WorldMais recentemente, a Boom Studios lançou-se a um projecto de longa duração muito interessante em termos narrativos, precisamente nessa senda de criar “consistência” e “continuidade” nos ingredientes soltos dos contos, novelas e romances de Lovecraft. Comandado por Michael Alan Nelson, trata-se de um projecto que começou em 2007 com as várias séries de The Fall of Cthulhu e transitaria para Hexed, correntemente em publicação. Mas a adaptação de Lovecraft que ainda hoje se apresenta como aquela que mais resultou numa obra maior no interior da própria banda desenhada é, sem dúvida, a de Breccia pai, Alberto, no seu Los mitos de Cthulhu, publicado originalmente em 1973 e com apoio no argumento de Norbert Bucasglia. Nenhuma outra procura minar os elementos específicos disponíveis pela banda desenhada para se aproximar do mesmo tipo de informe e abjecto proposto pelas palavras de Lovecraft.

Mas o livro que nos traz a estas considerações é de uma natureza totalmente distinta. Conforme se compreenderá, trata-se de uma natureza “clara”. O autor britânico Ian N. J. Culbard tem-se dedicado de forma constante ao género do horror ou do fantástico, sobretudo em colaboração com argumentistas da craveira de Ian Edginton ou trabalhando sobre adaptações literárias. Criou ainda as séries The New Deadwardians e Deadbeats, mas no seio da Self Made Hero, e abordando Lovecraft ou autores relacionáveis, deu início a uma série de adaptações, primeiro com At the mountains of Madness, depois com The Shadow Out of Time, The Case of Charles Dexter Ward, entre outros contos mais curtos, e The King in Yellow, de Robert W. Chambers. Ora, neste campo, Culbard não está interessado de forma alguma em reescrever ou reinterpretar os escritos de Lovecraft, à la M.A. Nelson mas tampouco em moldar novas linguagens plásticas específicas à banda desenhada que procurem verter o princípio da “weirdness” e do desconforto pelo desconhecido nas imagens. Bem pelo contrário, poder-se-ia dizer que Culbard deseja providenciar uma adaptação, digamos, límpida, “straightforward”, em que se tenta o mínimo desvio e distorção da diegese e tom original, para além daquela inevitável garantida pela dimensão visual e compositiva.

Uma vez que o autor tem alguma experiência na indústria mainstream da animação, e revela grande simpatia e influência pela banda desenhada clássica franco-belga, não é de surpreender que haja vários elementos partilháveis no seu trabalho e na alargada família da “linha clara”, no que diz respeito sobretudo à legibilidade das pranchas, e onde todo e qualquer ingrediente concorre para a clara interpretação narrativa, e menos para um excesso de significado, pictórico, simbólico ou estético (como Alberto Breccia cumpre de modo exemplar na sua própria adaptação).

Dada a natureza desta novela em particular, que pertence ao que usualmente se chama do “Ciclo dos Sonhos” nos estudos literários específicos a Lovecraft, estruturando-lhe a obra, e em que toda a narrativa não tem lugar propriamente naquilo que passaria por “realidade partilhada” das personagens do mundo diegético, mas se trata acima de tudo de uma navegação onírica – mas não feérico, o que é fulcral para entender o tom da novela - no interior dos sonhos do protagonista, Randolph Carter, não é de admirar que haja um sentido contraste entre as opções narrativas deste livro em relação aos anteriores. A quantidade de sequências sem matéria verbal, ou somente interrompidas com uma onomatopeia que dá conta dos sons não-humanos das criaturas com que o protagonista se cruza, são constantes. Há momentos de uma incómoda acalmia e outra de rápida e dinâmica acção, à medida que Carter se depara com os monstros que lhe cortam o passo em direcção à “desconhecida Kadath”, assim como os potentados existentes na Lua, sejam os zoogs, os gugs, os night-gaunts ou, finalmente, Nyarlathotep. Apesar de existir um arco relativamente claro entre o início e o final da história ancorado solidamente na realidade, o propósito da novela não é de forma alguma dar a entender que “era tudo um sonho”, ou algo pateta assim. Bem pelo contrário, todas as terras atravessadas, pois The Dream-Quest, como o próprio título indica, é uma narrativa de viagem, todas as personagens com quem Carter comercia, todos os obstáculos e aliados, todos os preços e benesses, têm um peso particular, perfeitamente traduzido por Culbard.

As figuras debuxadas pelo artista são sintéticas, a composição simples e alargada (uma média de 4 a 6 vinhetas por prancha), as cores relativamente contidas a um espectro reduzido e, se não são propriamente planas, organizam as sombras e texturas em dois ou três tons. Porém, há um claro ritmo nos sucessivos intervalos de cor conforme os espaços atravessados por Carter, para assinalar mesmo essas passagens.

Kadath, por oposição a Mountains of Madness, de resto, é portanto menos focado narrativamente, abandonando-se a maiores fragmentos descritivos, onde a linguagem se esforça por se aproximar do indescritível e inenarrável (claro está que esse é um efeito da linguagem o de criar essas mesmas realidades indescritíveis e inenarráveis e depois a ideia de que ela, a linguagem, não a alcança). Sendo aquela que menos interacção apresenta entre personagens “reais”, todas aquelas dimensões sociais menos agradáveis aos nossos tempos usualmente debatidas em torno do autor – preconceitos étnicos, xenofobia e uma misantropia generalizada – encontram-se como que suspensas, transformando The Dream-Quest naquilo que em Lovecraft mais próximo, possivelmente, de “fantasia”. Aliás, uma outra adaptação existente, de Jason Thompson, sublinha essa natureza de forma clara, tornando-o quase num livro ilustrado para crianças, concatenando toda uma série de referências visuais não-previstas no original, ao passo que a abordagem de Culbard mantém todas aquelas qualidades algo etéreas, ambíguas, e até incómodas por isso, que confirmam a estatura literária de Lovecraft. Isto é, parece-nos que a abordagem de Culbard é aquela que mais próximo está do verdadeiro valor literário do escritor norte-americano: nem o transformando em um mero criador de eventos pornograficamente violentos de body-horror, nem exacerbando uma qualquer interpretação extra-literária sobre os escritos, mas tentando apresentá-los nos seus elementos próprios. Claro está, vertidos para esta as linguagem de banda desenhada clara em termos visuais, mas em que as estratégias narrativas (as composições variadas, o ritmo, a relação entre matéria verbal e visual, a paleta cromática, etc.) concorrem para essa corroboração.

Uma análise comparativa entre essa novela, jamais publicada em vida do autor e vista como “por polir” (e as partes do narrador, com a pesada e fantasiosa adjectivação de Lovecraft encontra-se aqui sublimada nas cenas visuais), e que de resto descreve uma navegação onírica do seu protagonista em busca de uma cidade de velhos deuses que jamais algum ser humano antes vira ou visitara, e os outros escritos, para compreender o “peso” das adaptações em banda desenhada, não seria uma matéria vã. E Culbard, com a continuidade desta sua veia, contribuirá de forma decisiva, a esse corpus.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na internet. 

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