31 de outubro de 2014

Cidade suspensa. Penim Loureiro (Polvo)

Até certo ponto, Cidade suspensa tem sido “vendida” como uma espécie de grande regresso, de um retorno significativo de um autor que andava afastado das lides há cerca de trinta anos. Concomitantemente, o livro deveria ser visto talvez como uma espécie de magnum opus que foi sendo criada a lume brando, ou pelo menos com um ímpeto que acumulava uma vontade de expressão acalentada durante esse tempo, e que traria logo de imediato uma patina de valor acrescentado. As mais das vezes isso serve para criar um discurso hiperbolizado igualmente, e carente de um olhar analítico, e por isso crítico. O que importa é ler a obra, e colocar essas questões também elas, de certa forma, suspensas. (Mais) 

Talvez na impossibilidade de fazer jus à complexa trama do livro, que apresenta uma geometria entre um grupo de amigos de contornos cambiantes, e facetas que se alteram ao longo de décadas (a acção em si passa-se balizada pelos anos de 1962 e 2006), qualquer sinopse seria um exercício de incompletude. Se bem que, como veremos, a tessitura de Cidade suspensa seja construída por fragmentos, é essa mesma natureza que lhe permite espraiar-se tão alargadamente no tempo, tal como a atravessar um espaço que vai desde a cidade de Lisboa ao Saara tunisino, Berlim e Luanda, mas ainda deixando fiapos de consequências noutros locais e tempos. E a razão da capa encontrar-se-á neste perfil, já que nos apresenta uma imagem compósita com todos os ingredientes da história: os reais (ou diegéticos) e os imaginários, os experienciados pelas personagens e aqueles que vivem apenas na superfície do texto. A própria “cidade” do título não corresponde a nenhuma daquelas atravessadas pelo protagonista ou os seus amigos, sendo antes um construto mental que metaforiza uma espécie de “queda” da personagem principal, ao mesmo tempo que traduz literalmente um sonho e, talvez, sirva de charneira na mudança de uma sua consciência.

Se bem que possamos insistir existir uma intriga, até mesmo uma “intriga internacional”, com alguns contornos a que se poderiam chamar “empolgantes” e de acção, a verdade é que Cidade suspensa flui de um modo lento, com uma viscosidade assegurando o seu certo percurso e a aderência, por assim dizer, a todos os elementos pelos quais atravessa. Nada do que vai sendo ofertado é mostrado ao acaso, como se se obrigasse o leitor a dar atenção aos mais ínfimos detalhes, e estes viessem mais tarde a fazer parte de um painel final. A existência de uma constante metáfora, também traduzida visualmente, de um painel de azulejos furtados não é de forma alguma alheia a essa ideia. De facto, ao início, uma atenção particular para com pequenos pormenores que fazem a paisagem social dos tempos a que se refere pode parecer somente uma forma interessante de criar ambientes, de retratar um Portugal passado, que alguns de nós experienciaram. Esses pormenores surgem ora traduzidos nas imagens ora nas legendas, num contrastivo e cumulativo trabalho de relação entre texto e imagem que aumenta a textura do livro. Mas numa segunda interpretação veremos que todos esses elementos são estruturais e sustentam a edificação da narrativa. Eles não são de forma alguma decorativos, mas constitutivos das personagens e da tal geometria complexa que os agrega e afasta, conforme as circunstâncias das acções desenvolvidas.

No que diz respeito à natureza fragmentária do livro, importa notar como as vinhetas surgem menos como momentos dinâmicos articulados entre si do que imagens isoladas, mimando a fotografia. Quase sempre as personagens aparecem centradas, olhando para o foco do leitor, como se posassem. Muitas vezes, encontram-se isoladas, sem outro movimento de transeuntes, cidadãos, trânsito: tudo serve a personagem em si, assumindo a centralidade. Nalguns casos essa mimese fotográfica é total, quando emprega uma paleta reduzida (sépia, ou ocres, ou vermelhos, ou cinzentos), molduras condizentes, a ausência de texto, mas todas elas são delineadas por uma linha nervosa, manual que inscreve a acção numa espécie de rememoração titubeante. A integração de cenas que corresponderão a sonhos, fantasias ou perspectivas impossíveis (quer dizer, que não corresponderiam àquela associada a nenhuma das personagens) apenas complica a diversidade dos “momentos”, aumenta a textura do texto, mas ao mesmo tempo nos demonstra como, do ponto de vista narrativo, terão o mesmo peso e consequência na apreciação final do seu significado global.
O tom inexorável das legendas – não há qualquer balão de diálogo, e estes tampouco surgem citado entre aspas, com a excepção da cena final, tornando-os portanto particularmente significativos na economia da narrativa e no seu impacto, inclusive emocional - , em que breves textos descritivos se seguem a uma data completa, e o sublinhar dos nomes e de certas palavras ou expressões, incute ainda mais esse tom fragmentário, diarístico, ao discurso que o atomiza. Um exercício que poderá comprovar isso é ler o texto em voz alta, sem acesso às imagens, e verificar-se-á que “funciona”. As imagens não são estritamente necessárias, e é preciso então entendê-las como formando uma complementaridade especial. Curiosamente, se até um determinado ponto essas informações apenas se parecem acumular desapaixonadamente, sem fito comum e nítido, vão ainda assim lentamente convergindo numa tensão narrativa.

Não é inocente que tenhamos empregue aquela expressão, “intriga internacional”, entre aspas. A citação do título português de North by Northwest, de Hitchcock, pretende precisamente associar Cidade suspensa a algumas das linhas do realizador ou do género do policial, do noir, mesmo que “lento” como o é aqui. Sendo o fio vermelho mais gritante o pormenor da mala de Raúl, cujos conteúdos jamais saberemos, esta é mesmo uma citação directa daquele mecanismo narrativo a que Hitchcock chamou de “MacGuffin” e que tantas vezes seria empregue em filmes (a mala em Pulp Fiction). Aliás, o narrador é claro sobre a sua função narrativa (menos do o significado diegético, que é deixado à interpretação dos leitores) quando diz ser “antes de mais, uma pista, um indício, feito de solidão e mágoa, deixada para encaminhar os jogadores na direcção da teia”. Não se podia ser mais claro. Aquilo que parecia ter nascido como uma narrativa mundana, reminiscente, da amizade longa de um par de amigos, vai ganhando contornos em torno de conspirações políticas, tráficos de produtos ilegais e de influências (a dimensão da arquitectura – área profissional do autor – surge aqui, parece-nos, não apenas como oportunidade de concretização de fantasias mas igualmente como plataforma para uma irónica e subtil demonstração dos entraves políticos, culturais e financeiros no nosso país) que ganhará uma contundência final, até algo anti-climática, que não se fazia suspeitar.

Além disso, quando dissemos que se trata de um noir “lento”, esta adjectivação não deve ser entendida como pejorativa, como uma valorização negativa. Se tentarmos identificar alguns dos ingredientes textuais que usualmente criam um noir, diríamos que, em Cidade suspensa, não há perseguições de automóveis, não há troca de tiros, não há conluios sexuais com femmes fatales. Ou haverá? Os automóveis estão presentes permanentemente, seja um Peugeot (?) afundado nas areias do deserto, uma 4L estacionada nas ruas de Lisboa, o Cadillac (?) dos anos 1950 que atravessa toda a história como uma espécie de âncora localizada, e que tomba nos sonhos. Dos tiros, desferem-se um par deles em momentos decisivos, no deserto e no final da história, mesmo que falhe o alvo. E Joana/Prec, mesmo que jamais se vislumbre um enleio sexual directo e lascivo, a sua presença, um certo erotismo no seu olhar e posições, colocam-na ocupando esse papel, mesmo que ausente.

Para além destes ingredientes de géneros reconhecíveis de modos irreconhecíveis e subtis, existe também alguma dimensão semi-autobiográfica, ou autoficcional, ainda que levíssima. Independentemente de notas paratextuais, que devem ser tomadas com cuidado na recepção do texto propriamente dito, não nos parece que ele possa ser lido à luz desse género, e muito menos da forma como ele tem sido experimentado e construído brilhantemente nos últimos anos. Afinal, o foco aqui não é a vida de Penim Loureiro no mais pleno “pacto autobiográfico”. É da prerrogativa do autor munir-se de argumentos – sendo o da “experiência pessoal” um dos mais repetidos – para arrastar o texto para um território determinado, mas é o da leitura crítica interrogar o texto, em busca dessas mesmas inscrições. E a nosso ver, essa em particular é problemática e nada clara em Cidade suspensa. Seja como for, numa fotografia final, o “eu” que narra, que até ali jamais havia sido nomeado ou identificado de alguma forma, surge na fotografia, por inferência, já que o nome “Penim” aparece associado a uma personagem que não víramos antes. E um perfil, mais tarde, coincide com o do autor empírico. Caberá ao leitor fazer uma associação então entre o narrador e o autor do próprio livro, ainda que nada mais nos permita falar de autobiografia propriamente dita.

Regressando à questão inicial, está fora de questão fazer aqui um historial, com factos e ponderação, sobre a (acabada de baptizar) “Geração 1980”, a que o autor pertencerá. De facto, nessa época, com experiências falhadas de uma emergência moderna (Visão) e com um espaço quase minúsculo na Tintin para autores portugueses (duas páginas no caderno a preto-e-branco – mas sendo uma das suas histórias, de seis páginas, uma das que mais impressionou este vosso leitor, na sua infância), um irregular espaço na Se7e, entre outros títulos, a vida em fanzines (“clássicos”, já que as opções de impressão e circulação não eram de todo as mesmas dos nossos dias) era a única garantida, mas que pautaria igualmente uma recepção cada vez mais diminuta. A forma como se tem anunciado este “regresso” tem sido um tanto ou quanto hiperbolizada, a nosso ver, mas essa é também a estratégia da publicidade.

As estratégias de Penim Loureiro têm aqui um sabor relativamente nostálgico, já que em larga medida há uma forte influência do Loustal daquela época. Menos na figuração, como é evidente, mas clara na vinhetas-não-dinâmicas, no uso de legendas corridas associadas a cada uma, nalgumas opções cromáticas e até, se quisermos, nalguns temas e paisagens recorrentes. A figuração, essa, é menos estilizada do que o autor francês, e procura uma espécie de naturalismo pouco refinado, espontâneo, cru, como que saído de um bloco de desenho de esboços feitos ao vivo, no momento, antes que as sombras se dissipassem, sempre contribuindo para aquele tom diarístico aventado acima. As linhas são finíssimas aqui, e enclausuradas num filamento grosso e negro ali, incutindo às figuras uma espécie de hieratização plastificada. Em todas estas características, Loureiro unir-se-á a um grupo relativamente alargado e transgeracional que tanto abarcaria Pedro Morais e os irmãos Colombo (da mesma geração) como Filipe Abranches, António Jorge Gonçalves e Diniz Conefrey (da geração imediatamente a seguir), se bem que estes dariam continuidade a experiências visuais que os tornariam cada vez mais expressivos, idiossincráticos e até experimentais. Mas haverá outras sombras de influência, claro, que não importa tanto identificar – a queda onírica do Penim-personagem na cidade suspensa lembra por demais a icónica queda original de John Difool – e afinidades criativas a cartografar – uma leitura paralela entre Cidade suspensa e Ana, de Nuno Artur Silva e AJ Gonçalves, decerto que revelaria um qualquer imaginário comum de uma hipotética Lisboa passada pelos filtros de Moebius, Cadelo e Caza, entre outros - como a compreender que se há suspensão, sê-lo-á precisamente numa teia sólida.

Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro. 

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