15 de julho de 2014

Something terrible. Dean Trippe (auto-edição)

Dean Trippe é um dos co-fundadores de um dos sites mais revisitados de quem segue algumas das mais interessantes discussões em torno do design de super-heróis, Project: Rooftop, de uma forma equilibradamente inteligente e fanática, sem a secura da primeira abordagem e sem a leitura acrítica da segunda. Enquanto ilustrador, Trippe parece devedor de uma linguagem simples e “limpa”, reminiscente de um encontro entre a banda desenhada mainstream de super-heróis dos anos 1950 (Carmine Infantino e Curt Swann acima de tudo?) e o streamlining da banda desenhada infantil da mesma época (como os das companhias Harvey ou Archie). Nesse sentido, é uma equação que teria dado os seus primeiros passos de recuperação com Bruce Timm e é uma família que incluirá por autores como Cameron Stewart, Darwyn Cooke, entre outros. Mas Something terrible é something different. (Mais) 

Em primeiro lugar, trata-se de uma publicação disponível em formato pdf, que se pode comprar e fazer o download no site do autor [ligeiramente maior do que o conteúdo grátis] e é aparentemente a sua primeira banda desenhada total. Com apenas 14 pranchas, quase todas numa grelha de quatro vinhetas regulares e duas splash-pages, é uma obra que se lê muito rapidamente, mas ela exige que se entenda o esforço tremendo que a originou. De certa forma, ela é uma narrativa de “origem secreta” assim como de “transformação”. O autor foi vítima de repetidos abusos sexuais quando era criança, e isso levou-a a cair num ciclo de temores internos e fantasmas que o faziam imaginar que ele mesmo se poderia vir a tornar um predador. Apesar de – tudo isto explorado brevemente na história – ter encontrado uma companheira e ter tido um filho, essa “sombra” manteve-se, assinalando não apenas um perigo mas um obstáculo na sua vida. Esta pequena obra, de certa forma, revisita o conforto e imaginário que foram sendo nutridos numa dieta contínua de toda uma série de personagens da cultura popular, infantil e adolescente mas que sobrevivem na idade adulta, e mostra o modo como essas mesmas personagens podem servir de mecanismo de sobrevivência e reconstrução psicológica, com vista à recuperação de um trauma. Mesmo que este em si não desapareça, o que é impossível, e não estejamos a falar de uma “cura” do trauma – o que, seja como for, já envolveria um trabalho psicanalítico em relação à própria pessoa, e não ao constructo textual que é a obra e o seu autor (o autor como “função” do texto, atenção) – Something terrible mostra como se pode conquistar de novo um espaço de segurança. Arte terapia, levando a um estado quase literal como a obra de arte, neste caso a banda desenhada, pode de facto exorcizar fantasmas (tal como ocorreu em relação a Debbie Dreschler, Dave Cooper, Craig Thompson, David B., Art Spiegelman, Alisa Torres, e outros autores).

Num segmento inicial, o autor não utiliza qualquer texto verbal com a excepção das frases ameaçadoras do seu violador. E as próximas frases que surgem são “somente” citações dos filmes e séries de televisão que, ainda assim, vão afirmando e fundando precisamente os seus fantasmas.

Desde logo entendemos que a presença das personagens fantásticas estão presentes em várias formas visuais – banda desenhada, livros, televisão, até mesmo roupas -, inclusive o desenho de Dean enquanto criança, surgindo como uma forma alternativa de comunicação e expressão, que se torna um caminho alternativo para a sua salvação. Esta dicotomia entre texto verbal e visual é uma constante em alguns outros títulos de banda desenhada que navegam pelas terríveis águas da autobiografia do trauma, como nos casos de Daddy's Girl, de Debbie Dreschler, Encore Ça, de Julie Delporte, Pourquoi j'ai tué Pierre de Alfred e Olivier Ka, L'ascencion du haut mal, de David B., ou até mesmo obras que aparentemente de ficção são baseadas em factos reais (Dan and Larry, de Dave Cooper).

Uma vez que o autor utiliza pouco texto verbal, ele opta por uma construção elíptica, em que em vez de termos sequências de uma acção, temos antes cenas ao longo da sua vida (o que McCloud chamaria de transições “cena a cena”, precisamente), com mais ou menos longos períodos separando cada vinheta, mas cuja representabilidade, assim como os jogos a que o autor se permite com as posições dos corpos, as expressões faciais e algumas metáforas visuais e citações intertextuais, apenas tornam mais concentradas no seu significado. O Batman aparece sempre como uma espécie de totem protector, uma personagem que o protagonista segue, idolatra e transforma à sua maneira para cartografar as suas emoções, medos e forma de dialogar com o mundo. O autor é exposto pela primeira vez ao Cavaleiros das Trevas na sua versão cinematográfica de Tim Burton, de 1989, e depois segue-se a banda desenhada, as fantasias de Halloween, os desenhos animados de Paul Dini e Bruce Timm, e as t-shirts... Mas este jogo de entrada no visual ganha ainda mais força quando vemos finalmente o uso que o autor faz dela: criando uma banda desenhada (dentro da banda desenhada que a conta), o autor projecta-se no passado, possivelmente no momento imediato após o abuso, e coloca-o em contacto com Batman (que chega ao seu universo numa Tardis, do Doctor Who). 

Com a sua companhia, o pequeno Dean é apresentado a uma verdadeira galeria de personagens de toda uma mole da cultura popular moderna (da banda desenhada, animação, cinema, televisão), e que surgem não tanto como fantasias de escape, mas formas de protecção, projecção e modelos. Mesmo que sejam todas fantasiosas, fantásticas e algumas até algo ridículas, a verdade é que provam a necessidade e a força que a fantasia têm na construção da vida dita real. O contraste entre as cores vivas e a paleta subsumida a pretos, azuis e cinzentos do resto da obra também quer mostrar o "maior grau de vida" ali presente, na fantasia. É a sua intensidade que ilumina a da própria vida, por assim dizer. 

Na página de agradecimentos, Trippe inclui o nome de Bill Finger, realmente tentando trazer alguma justiça para a história da banda desenhada, e da criação de Batman em particular, mas mais curioso é falar de Grant Morrison, não apenas como autor do que ele entender ser algumas das melhores histórias de super-heróis dos tempos recentes, mas sobretudo por “consertar os brinquedos”, o que é uma forma muito justa de entender o trabalho do escritor escocês, quase por oposição ao que Moore começara, e depois seria continuado por tantos outros escritores. Por estas citações, Trippe parece também querer devolver ao próprio meio da banda desenhada um poder que possivelmente terá desaparecido nos últimos anos. Além disso, Trippe agradece Morrison “por me fazer crer que os super-heróis podiam salvar-me a sério se eu acreditasse neles”, o que remete possivelmente para toda a argumentação de Supergods.

Se for esse o caso, então trata-se mesmo de um daqueles casos em que não adianta dizer que uma crença está “errada” ou é “ilusória”, mas devemos antes concentrar-nos na forma como ela funcionou positivamente para Trippe.
Nota final: agradecimentos a Nicolas Verstappen, por nos colocar no caminho deste pequeno livro e algumas discussões em torno do tema. 

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