23 de fevereiro de 2014

Iron: Or, the War After. Shane-Michael Vidaurri (Archaia)

Na cada vez mais diversa economia de géneros contemporânea, sobretudo na banda desenhada norte-americana, é por vezes uma acção complexa compreender até que medida um qualquer gesto aparentemente consensual e vulgar pode esconder desenvolvimentos inusitados e surpreendentes, ou até que ponto é que algo que visualmente possa parecer sofisticado na verdade apenas pressupõe um efeito superficial de um gesto mais banal. Estamos em crer que Iron: Or, The War After pertencerá ao segundo grupo.

O livro lança-nos de imediato no interior de uma confluência de géneros, por um lado um género narrativo, o da histórias de guerra, espionagem e traição, e os preços “humanos” a pagar nesse conflito, por outro um de género-estilo, uma vez que temos animais antropomorfizados no centro das acções. Mas se não cremos na equação separável de uma forma e de um conteúdo, este é um daqueles casos em que a conjunção não funciona, a um grau tal que mostra a distância entre uma e outro. (Mais) 

A narrativa tem um início in media res, mas sem jamais retornar a um hipotético “princípio” nem apresentando uma clara e definida reconstrução do contexto. Ainda assim, as informações que flutuam entre as personagens permitem ao leitor aperceber-se de que estamos num momento após um grande conflito, que terá dividido uma nação, mas onde apesar de vencedores e vencidos, estes últimos procuram ainda assim criar uma espécie de rede de resistência. Ou mesmo Resistência, já que os contornos políticos e organizados dessa referência tornam-se bastante claros, assim como as implicações de envolver os amigos, familiares, crianças, “inocentes”, e tudo o que se lhe segue: a noção de justiça versus a legalidade do regime, os limites das acções, a distribuição das responsabilidades, etc.

De certa forma, na primeira parte (que corresponderia ao primeiro capítulo e primeiro comic book de quatro), seguimos um protagonista elusivo, Hardin, um coelho, que aparentemente roubou documentos importantes ao governo central, implicando desde logo outras personagens na busca dos detentores do poder político e militar. Aos poucos apercebemo-nos de que a trama é ligeiramente mais complexa, mas também no final nos apercebemos que esses documentos eram um claro McGuffin para nivelar o evento central: rebentar com um comboio e, assim, com uma ponte. No entanto, apesar desse evento, não é ele que constitui a matéria de análise de Iron: Or, The War After. Como o próprio título indica, a “guerra depois da guerra” é lutada no interior de cada personagem, de forma a que cada um procura perceber o que significam os conceitos de patriota e traidor, covarde e corajoso, e se elas se podem atribuir essas mesmas descrições, e até que ponto é que elas são importantes nas relações, dependendo, de poder militar e político, familiares ou de amizade.

Shane-Michael Vidaurri cria imagens em aguarelas, sempre num constrito intervalo de tons cinzentos, azuis e os ocasionais apontamentos a negro e branco (e uma judiciosa participação de um vermelho carregado, num “finch” [pintarroxo?, tentilhão?], que serve de “pontuação” a cada capítulo ou secção). Estas imagens, não fosse a representação das personagens teromórficas, recordariam alguns daqueles autores maiores do pictorialismo do mainstream dos anos 1980 e 1990 tais como Kent Williams, Jon J. Muth, Scott Hampton e George Pratt (o que não quer dizer que estes autores não tenham feito trabalhos de representação animal, mas são mais conhecidos pelo tratamento da figura humana). No entanto, tendo em conta a sua formação específica em ilustração, e o tema do livro, talvez não seja impossível entender afinidades estilísticas, mesmo de detalhes - uma certa forma de criar texturas dos fundos, do chão nevado ou dos céus carregados e tenebrosos -, com certos nomes da ilustração do princípio do século XX. Ainda que a figuração de Vidaurri seja bastante simplificada, por vezes minimal, corroborado pelas escolhas estruturas da paginação e vinhetas, as expansões “líquidas” lembrarão tanto Edmund Dulac (quando trabalhou a cores) como Rackham, e acima de todos (em termos de proximidade estilística, não de hierarquia entre estes nomes) John Bauer.

No entanto, a expressão das personagens de Vidaurri, em contraste com estes outros autores, é bastante limitada, até por o autor escolher representá-las sempre em planos médios ou americanos que levam sempre a uma distância que nos impede de lhes perscrutar os rostos e, assim, as possibilidades de matizar as suas emoções e reacções (ainda que haja outras estratégias, como apontamos no próximo parágrafo) Consequentemente, não conseguimos projectar pensamentos nessas mesmas personagens, e elas esgotam-se portanto em meras funções de acção, e não “crescem” enquanto personagens. Poderíamos dizer quase que, não tendo expressões, elas não se constituem como personalidades. Personagens são-no, na medida em que cumprem as funções actanciais que lhes são dadas.

A escolha teromórfica levanta outras questões, debatidas largamente noutro tipo de trabalhos, desde títulos infanto-juvenis do mais alto calibre, como em Calvo ou Macherot ou Barks a usos desviantes mas cruciais no sofisticação intelectual e ética da banda desenhada, como o caso-chave de Maus. Vidaurri mostra comportamentos físicos que estão associadas a cada animal empregue, desde orelhas que tombam cabisbaixas ou amedrontadas nos coelhos e raposas, aos focinhos irritados dos caninos, às garras distendidas, mas não há propriamente uma economia de forças e acções que corresponda à do mundo real: logo, uma “garça” pode vencer um “tigre” nesta narrativa, ou um “coelho” proteger um “lobo”. Aliás, várias vezes as personagens referem-se entre si pelos nomes dos animais (“corvo”, “coelho”), mas nada das suas naturezas naturais parece emergir no comportamento, necessariamente, na narrativa. Apenas a título de exemplo, a série Mouse Guard, de David Petersen (os autores trocam galhardetes entre si, inclusive sob a forma de pin-ups mútuos das personagens) explora de forma vincada essas diferenças biológicas reais para o seu universo antropomorfizado.

Temática e diegeticamente, Iron não é de modo algum uma narrativa pós-moderna. Bem pelo contrário, e até por o autor citar, como fontes visuais e textuais Andrew Wyeth, Erich Maria Remarque, Kenneth Grahame e E. H. Shephard, notar-se-á a continuidade de linhas românticas, atentas a questões de “valor”, “honra”, num enquadramento que mostra a guerra não nos seus planos mais violentos e traumáticos, mas nos “males necessários” e consequências que se transformam de imediato em “justificações” para outras acções. Além do mais, seria perfeitamente possível fazer leituras intertextuais entre Iron e muitos dos famosos livros daqueles autores (e as paisagens Regionalistas e melancólicas de Wyeth), começando com Vento nos Salgueiros, e uma visão idílica do countryside, as escapadelas aventurosas das suas personagens mas sem que caia em representações traumáticas da violência em questão, e uma exploração pelas emoções entre as personagens. Aliás, à uma rã nesta narrativa, que parece um contraste em termos de acção e vontade de Mr. Toad…

Aliás, em termos políticos, não deixa de seguir algumas linhas utópicas algo simplistas, jogando lados demasiado extremos para poder espelhar a complexa rede da nossa realidade, mas sem criar sequer uma estrutura ficcional que pudesse servir de hipérbole ou simplificação dessa mesma realidade. Trata-se antes, parece-nos, de algo que deseja ser algo que não consegue almejar. Sendo algo mais complexo que as fantasias infantis de Beatrix Potter ou as adolescentes de Mouse Guard, não atinge o nível de sofisticação porém que parece prometer, perdendo-se nos meandros da sua própria estrutura narrativa e numa gestão algo confusa das personagens.

Vidaurri tem noções sólidas de composição, sendo particularmente felizes as páginas em que uma determinada paisagem, contínua na vertical, como “fundo”, é interrompida por vinhetas de acções ou personagens, ou pelo contrário, quando opta por criar construções paralelas entre imagens que representam acções e outras que mostram um detalhe da paisagem (recordando, ainda que de formas bem distintas, as “interrupções” e/ou ambientes de Mike Mignola). No entanto, se essa beleza é assegurada, e torna o autor seguramente um valor no que diz respeito à técnica, nada disso está garantido na condução narrativa pretendida. Pois o problema não está em ser pouco narrativo, pois podia nem sequer seguir essa via: está no desejo de querer tecer uma narrativa mas não a conseguir fazer navegar da melhor forma, por ter elementos demasiado dispersos ou desconjuntados, desde as personagens, às acções, à causalidade ou a uma explicação que una os acontecimentos.

Com efeito, por mais belas que sejam as páginas individuais do livro, Iron é uma daquelas obras que poderá servir de demonstração de que as técnicas de ilustração não são as mesmas da banda desenhada. Ou melhor, se estes dois territórios têm muitos pontos em comum e decerto que tensões idênticas e ainda mais momentos de encontro feliz, a verdade é que, sem que tenhamos que cair em essencialismos, existem diferenças estruturais. Ou pelo menos de uso. Em todos os momentos de maior dinamismo, como quando os dois coelhos jovens são atirados borda fora do comboio, ou este explode, ou alguém dispara, ou um carro atravessa o plano visual, o autor escolhe uma focalização que impõe não só alguma distâncias dos objectos centrais da acção, como escolhe uma perspectiva ortogonal (horizonte paralelo à moldura, plano picado do zénite) assim como lhes pode acrescentar linhas ou formas que pretendem denotar movimento (linhas de movimento) altamente estilizadas, tornando a imagem de imediato uma “construção gráfica” clara, e não procurando outras escolhas que pudessem criar a ilusão de movimento, realidade diegética, etc. Uma vez que já abordámos a questão da pouca expressividade dos rostos das personagens, apenas nos resta acrescentá-la à lista de escolhas gráficas que, tornando o autor um excelente ilustrador, não o torna forçosamente um óptimo autor de banda desenhada.

Mesmo assim, precisamente pela beleza e as suas escolhas pouco usuais, Iron: Or, The War After, é um livro que levanta questões, sobretudo formais e de processo, bastante frutíferas.
Nota final: agradecimentos a I.P. pelo empréstimo do livro.

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