15 de outubro de 2013

“Megg, Mogg & Owl”. Simon Hanselmann (VVEE).

De certa forma em continuidade com a nossa recepção de Artifice, do post sobre webcomics, e outras pequenas experiências, mas inflexionando-a para um território mais ou menos coerente ou onde encontramos afinidades entre os autores, esta banda desenhada teve também uma primeira vida online, no tumblr do autor, o qual tem acedido, porém, a várias experiências publicadas em papel. Não apenas na sua Austrália natal, como nos Estados Unidos, já para não falar de exposições e concertos um bocado por todo o mundo. Em suma, Hanselmann é um desses autores que participa num número enorme de fanzines, antologias, jornais, ou minicomics a solo para várias plataformas editoriais. Por um lado, a leitura do tumblr cobre toda a sua produção, mas a aquisição de cada objecto torna-se uma ginástica complexa que tem de atravessar moedas e câmbios, países e serviços de correio, etc. (Mais) 

O grosso da obra de Simon Hanselmann centra-se num trio de personagens: uma bruxa depressiva, Megg, o seu gato chanfrado e dado ao consumo de drogas pesadas Mogg e o companheiro de casa, um pássaro que no fundo gostava de levar uma vida burguesa e “normal”, Owl. Sem qualquer sorte, claro, pois todas as pequenas “aventuras” acabam sempre numa espécie de pesadelo catastrófico, ou simplesmente no ponto de partida, isto é, lado nenhum. Se a maior parte das histórias são apenas de uma página, existem casos de maiores “sagas”, entre as quais aquelas que foram publicadas sob a forma de um pequeníssimo livrinho, Arrête, c’est icî l’empire de la Mort (editado pela Space Face Books) e o jornal St. Owl’s Bay (pela Floating World), ou sequências mais alargadas, sendo aquelas que focam os episódios de depressão, sonhos/pesadelos e mesmo demência de Megg os mais acabados. Depois existem algumas personagens recorrentes, como o depravado Wolf Jones, ou a série de “páginas de crítica de banda desenhada”, a que dá o nome de “Truth Zone”, em que as personagens discorrem as suas opiniões sobre as mais recentes leituras, e que o autor havia criado para contribuir para o site de Frank Santoro. Há ainda “Deathers”, uma colaboração que fez com HTM Flowers, seu colega e patrício, e, além disso, tem ainda uma mão-cheia de outras histórias, soltas, sem estas personagens, e que vasculham a vida e acontecimentos de muitas personagens que não se compreende totalmente se têm ou não relação entre si, mas que fazem emergir uma imagem mais ou menos coesa de um retrato social do seu entorno.

Em termos visuais, é quase automático o movimento que fazemos de integração em tradições ou inscrição em linhas comuns. O primeiro nome que ocorrerão seriam os de Ben Jones ou CF, mas encontrará muitas outras afinidades com a malta da Kramer’s Ergot, Paper Rodeo, etc. No entanto, ao passo que Jones e Paper Rad seguem um aspecto visual mais ou menos coeso, com contornos sólidos, cores planas e berrantes, uma espécie de “grau zero” do cartoon de tiras humorísticas norte-americanas, Hanselmann domina as aguarelas, de forma tranquila mas exímia, providenciando variações cromáticas, de luz, de textura, de atmosfera, e mesmo de figuração dos cenários e paisagens. Se ele parece seguir as mesmas regras de figuração que aquelas referências, que por sua vez se aliam à citação sistemática de toda uma troupe de personagens e/ou estilos provindos de desenhos animados, marionetas, enfim, de um universo de personagens estilizadas infantis, Hanselmann de quando em vez demonstra em imagens maiores, vinhetas que ocupam mais espaço, planos aproximados ou até pinturas, a sua capacidade em criar um maior grau de pormenor e realismo, ainda que aplicado a este universo fantástico.

Hanselmann atravessa de facto todo um espectro de estratégias visuais. Desde desenhos a linha a lápis ou passados a tinta, até os colorir ora com aguarelas, ora com aguadas (parece-nos) ou outros caminhos que parecem levar a efeitos de serigrafia, impressão, por vezes apenas uma passagem crua, rápida, com riscos de lápis de cor, e utilizando papel das mais variadas qualidades, inclusive colorido. A própria figuração, por vezes, encontra flutuações internas. Mas a força maior, parece-nos, de todo o seu trabalho está na imagem social que se cria. Aparentemente, estas personagens nascem decalcadas de uma forma muito superficial de uma série de desenhos animados britânica com algum sucesso na Austrália, mas atravessará mais por um “fundo” na mente do autor do que uma vontade de “reescrever” essas personagens, ou criar paródias ou homenagens. É como se ele tivesse lançado mão a um objecto qualquer que lhe servisse de veículo para construir as histórias que desejava fazer.

Há mesmo momentos comovedores e incómodos ao mesmo tempo, como a história em que Mogg insiste em fazer um cunnilingus e anilingus a Megg, mas esta parece apenas constrangida se não mesmo violentada na sua total falta de vontade, ou o episódio em que Wolf Jones morre, ou quando ela se reencontra com a mãe, fatalmente envelhecida, ou descobrimos a terapeuta de Megg ser uma egocêntrica indiferente. Apesar do alargado contexto e do número de personagens, a verdade é que as histórias de Megg e Mogg parecem ser um reflexo (muito) distorcido de uma realidade social australiana: a vida em bairros pobres, onde o desemprego, o uso das drogas e um certo derrotismo mental estão instalados. Não se pense que estamos, porém, a falar de um retrato social trágico. Tudo isto são paradoxos embrulhados uns nos outros. Criaturas caricatas envolvidas em coisas sérias para com elas fazer humor, muitas vezes um humor bizarro, e até mesmo tolo. Ou então criar um espectáculo sinistro a partir de elementos aparentemente cómicos. Numa longa entrevista dada por Hanselmann (e acessível através do seu tumblr), e ao ir demonstrando como grande parte do trabalho pode ser visto como autobiográfico, ou pelo menos como bebe da sua experiência real, utiliza uma expressão fatídica e concisa: “horror social”. No entanto, se bem que muitas das histórias sejam, digamos, lineares e construídas em torno de acontecimentos, as relações e os diálogos das personagens, há também muito que nasce das circunstâncias visuais, quase como se estivéssemos a ver experimentalismos de transformações internas das formas e cores, recordando, a um só tempo, uma espécie de animação em papel, estruturas psicadélicas ou traduções das alucinações permitidas pelos canabinóides ou outros produtos passíveis de serem fumados em cachimbos de vidro, panóplia sempre presente nos cenários de Megg e Mogg.

Acima de tudo, recompensa a leitura por ordem cronológica. Se inicialmente parece estarmos a ler apenas algumas anedotas disparatadas e auto-suficientes, senão mesmo autotélicas, aos poucos as interacções entre as personagens vão-se tornando cada vez mais consequentes, complexas e toda a série ganha uma nova gravidade, elaborando-se com contornos cada vez mais dramáticos.
Como se aponta em vários momentos, muita da matéria biográfica deste autor australiano terá informado as histórias das suas personagens, inclusive o seu travestismo, até certo ponto espelhado na bruxa Megg (uma das qualidades da série é a sexualidade “desviante” – do ponto de vista das normatividades), que numa ilustração em que surge despida parece ser transsexual ante-operatória ou mesmo pertencente ao terceiro sexo. Mas uma leitura biografista abusiva deve ser evitada ao máximo, para que se permita que o próprio trabalho tenha a sua autonomia necessária.

Como se disse, não pode ficar apenas enclausurada nessa interpretação. E há mesmo aberturas para referências mais alargadas, algumas das quais permitem a tal aproximação ao mundo genérico das artes. Por exemplo, uma das histórias indica explicitamente a participação de Michael Snow, e executa um devaneio pós-álcool de Megg [ver ao lado], a qual, na sua queda ou desmaio ou tontura, parece perder a noção de gravidade do seu corpo, e o horizonte que ela vê perde o seu eixo e roda em seu torno, imitando claramente o filme experimental famosíssimo de Snow, La Région Centrale. É uma dimensão de citação do mundo da arte (e pouco óbvio, como o costuma ser no mundo alargado da banda desenhada, sobretudo a mainstream). As citações, porém, bebem de todo o lado, e lembram um pouco o eclectismo de Beck, aida que este músico acabasse por transformar tudo no seu pasto de colheita para depois os re-colocar num pedestal prêt-a-porter de maior consumo, e não uma exponenciação da sua não-inscrição. Hanselman, por sua vez, mantém algum grau de selvagem no seu trabalho aparentemente narrativo e figurativo.
Nota: agradecimentos ao João Machado, e ao Círculo do Inferno em geral, pelo alerta e envio do material digital.

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