2 de agosto de 2013

Philémon, Le train où vont les choses. Fred (Dargaud)

Não nos queremos alongar em demasia sobre este álbum, que se carrega com o peso doloroso de tristeza e, admitamo-lo, alguma decepção. Preferimos manter o silêncio quando tal acontece, mas Fred merece uma atenção sem limites, desgovernada, passional. Afinal, este álbum é a pedra tumular, o selo, “la boucle” de uma das mais feéricas e influentes séries da vida da banda desenhada [que caminho haveria para Mathieu, por exemplo?].
Marie-Ange Guillaume, na sua nota de leitura que abre o livro, quer aproximar uma das invenções de Fred, um barco que anda a rum, e agora a “locomotiva à pata”, com o poético barco ébrio de Rimbaud. Todavia, estamos longe do rasgado e libérrimo aventurar pelas paisagens inóspitas mas recompensadoras da imaginação selvagem, ou do acto poético sem rede, já trilhados por Fred e as suas personagens. Estamos longe desses caminhos trilhados. A invenção poética, figurativa, as loucuras de composição, a lógica sublime e subtil da falta da lógica... parece ter diminuído de ímpeto, de febril energia e de fulgurante presença até uma quase imóvel sombra de si mesmo. Como se o acto criativo visse já a fímbria da sua aniquilação e se aproximasse dela relutante e não heroicamente. Penetrar no biografismo é um pecado crítico, mas a sua consideração, e até mesmo aquilo que é matéria da obra de outros (veja-se Desoeuvré, de Trondheim) cria o contexto pós-depressão que fez Fred regressar à sua série, ao último livro cujas primeiras páginas já havia criado há muito, e que agora resolveu terminar, mas criando no interior desta nova diegese uma espécie de “buraco negro”, de “buraco de Einstein-Penrose” que faz levar o término das viagens rocambolescas de Philémon à sua primeira aventura. Daí que a expressão “la boucle est bouclé”, na continuidade do interesse pelo autor em expressões feitas que se desmontam pela sua literalidade total, encontraria aqui uma aplicabilidade absoluta.
Comovedor, é-o, de um modo que Fred sabe como bem moldar. Mas onde antes sentíamos atravessar paisagens cruéis mas ao mesmo tempo tocantes, profundas, e tão humanas que nos torturava o seu grau de verdade, aqui temos antes uma melancolia de cansaço, de admissão de falta de energia, de compreensão fatalista, e até mesmo de alguma amargura. O objecto central de atenção, a locomotiva a patas, movida a fumos subtis de imaginação, que mudam de cor conforme o ânimo, não é mais do que uma triste e quase patética imagem do papel do autor, e muitas das frases ditas nos diálogos entre o condutor da locomotiva e Philémon, e o seu companheiro Barthélémy, e outros, são uma estratégia demasiado clara de tecer comentários com recados à realidade externa do texto.
Recordemo-nos que a propósito da biografia do autor, faláramos da concepção tridimensional da banda desenhada pela parte de Fred, particularmente dada a um consistente ainda que mutante corpo na saga de Philémon. Já nesse projecto editorial se davam sinais do então próximo livro da série, que apenas se confirmaria como último quando foi lançado, e cuja irrevogabilidade (verdadeira) seria selada com a morte de Fred. Não somos os únicos a dizê-lo, e é difícil de não o dizer: este livro é o testamento de Fred. Por três ordens de razão. A primeira é a mais superficial, porque pela força das circunstâncias e banal na sua existência na finíssima película de azeite sobre água de uma vida que chegou ao fim. Último livro, última obra, últimas imagens e palavras, imediatamente os abutres da interpretação lacram-nas sob o signo da morte, procurando ver nas suas sombras o contorno da morte vindoura. A segunda deve-se às frases que pontuam os diálogos das personagens e que, as mais das vezes, parecem servir de fórmulas pensadas para o exterior, para o círculo da criação, não apenas da banda desenhada, mas em relação a todo o acto criativo, artístico… A terceira relaciona-se com o carácter circular do livro.
A Lokoapattes é um veículo que se movimento apenas com o combustível da imaginação, e até mesmo numa dimensão paralela, à parte, que tocarás nas raias daquele reino do informe onde todas as histórias, ideias, conceitos, imaginações se formam, de onde partem, para onde retornam e onde se misturarão, com menores ou maiores elementos dispersos. Uma das formas dessa imaginação são as histórias contadas e oferecidas. É preciso alimentá-la sem cessar, para que o movimento também não cesse. Depois de vários processos tentativos, Philémon resolver (re)contar o início da sua primeira aventura, Le Naufragé du “A”. E assim termina a aventura do presente livro, obrigando os leitores a regressar ao início, e seguir de novo esse percurso, dessa forma garantindo a locomoção, a louco-moção, da Lokoapattes, isto é, o movimento das mãos dos loucos leitores que desejam revisitar tudo, que recomecem tudo.
É um testamento, não é uma história. O ritmo da história que ainda se poderia contar é estranho, demora a… demarrer, não há outro verbo. A narrativa está tão atolada quanto a própria Lokoapattes na lama material, fora do túnel imaginário que a transportaria. Tal como Le corbeau a baskets, também este livro é provavelmente o mais autobiográfico de Fred, um espelho quase directo, se virmos para além dos elementos de ficção, ou se o entendermos à la clef. O próprio Philémon faz uma associação – por afinidade biológica, no interior da diegese – entre a Lokoapattes e o Manu-Manu, encerrando tudo nos textos fechados para sempre de Fred.

Há ainda uma outra forma de interpretar o final da série, se lermos as imagens de forma isolada. Uma forma de interpretar que obriga a uma leitura trágica, terrível. O episódio que dera início à série Philémon, em 1965, começa com o protagonista a tombar no interior de um poço velho, no interior fundo do qual ele mergulha para vir a emergir do outro lado (do espelho d’água, apetece dizer), no oceano em que se banham as praias da ilha A e as outras… Mas no caso presente, vemos Philémon a retomar essa história por poder servir de “combustível”, lá está, imaginário, para fazer mover a locomotiva. Por isso, essas páginas que se retomam surgem numa paleta mais esbatida, a cinzentos, casanho e azuis pálidos que dão como quem uma pátina de pretérito, enão fúnebre, às imagens. Philémon mergulha, outra vez, e pede por ar. Um spread mostra-nos uma imagem imensa de Philémon, de olhos fechados, a esbracejar nas águas fundas. Mas o spread seguinte, e final, apesar de nos revelar cores, e estarmos acima das ondas à la Hokusai do mar do outro lado, com os seus dois sóis-luas, não nos mostra sequer um sinal de Philémon. Nada. O oceano imenso báscula sob o céu nocturno, mas na total ausência de sinais humanos. Só podemos temer o pior. Para o evitar, não nos resta senão mergulhar de novo nos livros antigos.

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