28 de agosto de 2013

Building Stories. Chris Ware (Pantheon)


Tal como ocorrera com Jimmy Corrigan ou Quimby the Mouse, Ware reuniu todo o material pertencente à série Building Stories para publicar um só volume, onde surge o texto na sua completude. No entanto, esta afirmação levanta um problema duplo.
Por um lado, apesar da suposta prática “alternativa” de Ware, não deixa de causar alguma surpresa que ele respeite a lógica do coleccionador de banda desenhada ou as mais normalizadas estratégicas comerciais (possivelmente necessárias para a sua sobrevivência económica enquanto autor). Muitos dos episódios que compõem este “texto” foram publicados nas mais diversas plataformas, desde jornais (The New York Times, The Manchester Guardian) a revistas (The New Yorker, nest) a objectos fora de categorias (McSweeney’s); alguns dos quais difíceis de obter fora das suas cidades respectivas, e seja como for, passíveis de recuperação num objecto mais perene (o livro). Partes substanciais já haviam surgido em livro, caso do The Acme Novelty Library # 18, que é retomado agora tal qual, ainda que num formato ligeiramente maior e com pequenas diferenças de design da capa. Em suma, o surgimento de um “volume” satisfaz o leitor que deseja ter acesso a “toda” a história mas também ao completista que encontra mais um objecto diferenciado para a colecção.
Por outro lado, está a questão física do “volume”. Como se sabe, este Building Stories é na verdade uma caixa de cartão, no interior do qual se encontram vários objectos: dois livros encadernados (um dos quais correspondente a TANL 18), três fascículos sem capa, uma espécie de pequeno comic book, um livro ao comprido “de tiras”, dois pequenos desdobráveis, um outro enorme, e dois outros que imitariam dois formatos de jornal (um broadsheet e um tablóide), e ainda uma espécie de biombo. Apesar de existir uma certa “coesão textual” ela expressa-se em vários pontos de fuga, materializados nesses objectos. Pertencerão todos os textos individuais a um único universo de referência diegética, que tem por centro nevrálgico uma personagem sem nome, e de quem aprendemos momentos da infância à idade madura, e havendo uma particular concentração na sua vida de jovem mulher, ora vivendo só num antigo edifício no cento histórico de Chicago, ora como mãe, nos subúrbios da mesma cidade. Da vida de solteira soltam-se três eixos narrativos complementares com outras personagens: a vida da proprietária do edifício, que se abre a uma história parcelar da cidade e também à própria assunção a personagem do edifício em si, a vida do casal vizinho, que leva a considerações de outras esferas sociais, e ainda a vida de uma abelha, que surge  como uma espécie de intervalo pela banda desenhada infantil, escapismo do realismo da restante matéria.
Cada objecto, tendo surgido em locais ou compilado de formas diferentes, permite até certo ponto uma leitura autónoma, mas a sua (nova) leitura conjunta fará com que as forças e especificidades de uma parte se espelhem nas e intensifiquem as outras. É como que uma espécie de cristal que obriga a serem ponderadas todas as facetas para se compreender a sua composição figural.
Dito isto, esta estruturação do livro-todo em vários objectos não é somente uma possibilidade de aglomeração de materiais diversos previamente publicados, uma espécie de trabalho de recuperação palimpsética, de conjunção dos textos num só texto contínuo, nem uma reelectrificação dos elementos anteriores num corpo maior articulado. Trata-se de uma estruturação activa de um objecto multifacetado que permite (ainda? como sempre?) entradas várias. Como escreveu Steven Walsh na sua curta resenha em Yours Days are Numbered, num trocadilho intraduzível, “Poderemos descrever este como um livro sem limites [unbound = sem capa] mas não desestruturado [spineless = sem espinha, sem lombada, fig. sem carácter]”.
É o próprio corpo físico e gráfico dos livros que se torna significativo. Se quase sempre Chris Ware explorou aquilo que seriam as margens paratextuais e de veículo físico dos seus livros enquanto espaços passíveis de inscrição de sentido textual, com Building Stories essa diluição, ou melhor, essa assunção de todo e qualquer elemento em texto, é por demais acabada.
Que sentido assumirão, então, os objectos físicos separados, que rede de sentido criam eles em relação às pequenas unidades narrativas que encerram? Procuram sublinhar sentidos, isolando-os de um corpo mais contínuo? Pretendem que o manuseamento separado lhes incuta uma importância diferenciada? Essa importância estrutura-se nalguma hierarquia conforme tamanho ou dimensões? Numa das sequências, a protagonista, já mais madura (num dos futuros isolados que Ware mostra), revela ter sonhado que encontrara numa livraria um volume onde se reuniam todos os seus exercícios de escrita, mesmo aqueles que ela já esquecera ou que pensava que ninguém deles sabia. Esse volume é descrito não como um livro, mas algo que vem “aos bocados [pieces], como, livros a caírem de uma caixa”. Além disso, ela descreve as ilustrações, muitas, acrescenta, como precisas e claras, coloridas e intricadas, como se tivessem sido feitas por um arquitecto. Esta última informação é interpretada pela filha como uma óbvia referência ao marido da protagonista (que é arquitecto), mas o leitor tem acesso assim ao complicado mecanismo em que o que é revelado no interior do interior da diegese (o sonho da protagonista) acaba por servir de metareferência ao próprio texto, e os seus mecanismos materiais, que se está a ler. É raro que Ware procure “elogiar-se” a si mesmo, mas neste momento de fraqueza da mulher, há aqui de certa forma esse jogo. E não poderíamos entender essa imagem como uma complexa metáfora das nossas vidas? A vida como um semanário (à la Expresso ou San Francisco Panorama): um invólucro plástico e frágil (saco ou caixa, análogo ao “saco de vento” das expressões medievais), cheio de vários e diversos objectos, cada qual com o seu timbre: as parangonas mais marcantes em termos oficiais, a revista colorida de Domingo, o fino suplemento de obituários e o caderno infantil, a secção de economia que não se lê e as palavras cruzadas que só se preenchem por metade…Talvez aí residam pistas do entendimento desta estratégia material.
Seria igualmente possível mesmo identificar “tropos” estruturais. Um tropo é uma figura de estilo, isto é, um emprego figurado da linguagem que, superficialmente, serve para embelezar o discurso, ou, mais profundamente, pretende que se saliente uma característica específica daquilo que se indicou. Etimologicamente, a palavra deriva do verbo grego trepein que se relaciona com um “desvio” ou “viragem” no discurso. Há, então, um desvio de um uso habitual da palavra para uma outra direcção. Elevando cada formato diferente a uma ideia, ela deveria presidir ao que está no seu interior, explicando porque é que o livro de tiras se concentre na relação entre a protagonista e a filha, sem recurso a matéria verbal, o “biombo” demonstre estruturalmente as quatro estações em torno da vida no velho prédio, a folha solta grande se prenda somente ao reencontro com o primeiro namorado através do Facebook e as memórias dessa relação, o jornal imenso se foque na sua vida de subúrbio, tocando a relação com o marido, a sua vida profissional reduzida, a morte de uma amiga de que se afastara, etc.
Repare-se como o título original tanto poderá ser lido enquanto formado por um gerúndio e um substantivo, traduzível em português por “construindo histórias”, ou então compreendê-lo enquanto forma nominal, em que “building” serviria de forma adjectival, chegando assim à ideia de “histórias de edifício(s)” (neste caso, a forma singular building pode ser vista como dizendo respeito a vários objectos), ou então até mesmo como uma outra estranha forma adjectival levando a uma ideia de “histórias edificadas”, ou algo assim. O verbo também pode implicar o leitor no seu acto físico de leitura e manipulação destes objectos, como se brincasse com um dos tantos modelos de papel que Ware oferecia noutros projectos, ou como se, como Seth, se procurasse criar uma cidade de papel. O leitor estaria a construir as histórias com esses actos.
Tal como discutido pelos discursos académicos e críticos em torno do autor, Ware cria novos protocolos de leitura quer através dos seus organigramas, mapas, cartografias inusitadas e formatos flutuantes. Building Stories intensifica esses protocolos, e eleva o acto de construção textual a outros níveis, inclusive o material. Quer dizer, a materialidade dos livros tem de ser entendida como um recurso semiótico que pode ter um impacto significativo na percepção do leitor, sobretudo por duas dimensões identificadas por outros analistas. Por um lado, a relação física, incorporada entre o leitor e o livro enquanto objecto, por outro, a consciência que este terá do processo de produção. Se existem artes, nomeadamente o teatro, a dança e a performance, e até a música (ao vivo) na qual o corpo do artista entra numa presença com o espectador, no caso das artes do livro o ritmo de leitura é dado pelo corpo do leitor. A performance de leitura destes objectos – os pequenos livros nas mãos, perto do corpo, o jornal agarrado com outro tipo de equilíbrio, o “biombo” manuseado de uma forma mais complexa – instilará, cada qual a seu modo, um sentido diferente. “Vislumbraremos” de uma forma mais célere o episódio do reencontro e rememoração do antigo namorado da protagonista, leremos num ritmo rápido e em staccato a emergência da filha na sua vida, teremos uma experiência mais “redonda” na leitura do livro da sua “fase madura”, “descartaremos” rapidamente outros episódios, etc.
O fascínio de Ware pela arquitectura não é de forma alguma novo. Uma citação preferida do autor, pois repetida em várias ocasiões, é aquela em que Goethe declara a arquitectura como sendo “música gelada” (Lloyd Wright também equiparou a arquitectura à música). No pensamento morfológico de Goethe, encerra-se aí desde logo uma promessa de movimento permanente apenas ali, naquele momento, captado numa forma somente em aparência perene, um estado momentâneo de desdobramento interno que faz imaginar outras possíveis formas. Através das “imitações” – no sentido que se emprega em “epopeia de imitação”, no sentido de modelo, caminho trilhado, etc. – das composições em vários eixos de Frank King ou outros, e da sua invenção diagramática, Ware já mostrara muitas pranchas nas quais a leitura permitia vários caminhos, direcções e estruturações, tornando a sua “arquitectura” o mais viva possível. Já para não falar dos vários sketches de paisagens urbanas dos dois volumes do Datebook, e a forma como essa mesma paisagem, quer a histórica quer a contemporânea de Chicago, se assume como personagem “secundária” nos seus livros; agora é mesmo tempo dela se tornar quase personagem principal ou matéria na qual a diegese está embebida de forma mais sublinhada. São inúmeras as referências à paisagem urbana e arquitectónica de Chicago, o marido da protagonista é arquitecto, as repercussões sociais da gentrificação e as tensões entre cidade e subúrbio são discutidas, etc. E, finalmente, temos de citar de forma vincada o projecto Lost Buildings, com Ira Glass, que veio a conhecer uma versão em livro e DVD em 2004. Trata-se originalmente de um programa de rádio ao vivo, com um slide show de Ware, com escolha de música, manipulação de som e leitura de Glass, em torno de alguns edifícios de Chicago. Na verdade, trata-se de um projecto similar a uma estrutura de matrioskas de vidro, uma englobando outra, mas transparentes, deixando as várias linhas de luz atravessarem-se em todas as direcções. Esse projecto engloba o arquitecto da passagem do século XIX para o XXº Louis Sullivan (e suas colaborações com um jovem Frank Lloyd Wright), pai do modernismo na arquitectura, e os “salvadores” da memória urbanística da cidade, Richard Nickel e o seu herdeiro espiritual Tim Samuelson (que participa activamente, com textos e testemunhos). Se este projecto se tratava de uma obra fantasmática sobre edifícios desaparecidos mas que constituem um rosto oculto da histórica da cidade, Building Stories não é menos fantasmático, criando um fantasma ficcional que ergue à sua maneira uma imagem etérea da mesma Chicago. Além de que, apesar de tudo, serve de “ground”para as histórias humanas que encerra (e a da abelha).
Diferentemente dos outros trabalhos de Ware, há nestas histórias uma maior presença de rostos mais detalhados, longe da redução infográfica ou da ultra-estilização costumeira do autor. Continuam a estar presentes os diagramas, é certo, tais como as perspectivas isométricas, a complexa planificação de “dual” entre uma faixa ou frisos laterais e a mancha central, as divisões semi-regulares de um número de vinhetas, os jogos entre desfasamentos de texto e imagem, etc. Mas essa presença de rostos mais próximos - que recordam talvez algumas abordagens  de Clowes (Ware é um desenhador exímio e variado, como se pode comprovar  pelos sketchbooks, logo estas escolhas têm de ser entendidas como voluntárias) - poderão querer trazer à tona, literalmente, uma outra vivência e entrega empática da parte dos leitores para com as personagens.
Num estudo sobre Ware, Anthony Baker explicita como o autor torna os leitores conscientes do seu próprio processo de leitura através da inclusão dos brinquedos de papel para montar, ou das cartas de jogar ou outros “objectos de papel” que não correspondem propriamente a superfícies legíveis ou subsumíveis ao projecto de representação e diegético. A um só tempo, acrescenta Baker, “os elementos da história podem transbordar para além da experiência tradicional de leitura”, ao mesmo que tempo que se parodia “a mercadoria associada”, tão típica das indústrias mercantis da banda desenhada, animação, etc. Noutro texto, de Edward Brunner, essa dimensão de aparente descartabilidade é directamente citada para recordar o projecto de Ware com Ira Glass. Apesar de ter nascido na rádio, o texto final de Lost Buildings é um CD com uma faixa sonora de 20 minutos, sobre o desaparecimento de toda uma série de edifícios modernistas de Chicago, sacrificados em nome de um desenvolvimento que nega a história local ou a possibilidade de um património, até mesmo daquilo que se julgaria mais perene e contrário às linguagens que a recuperam e salvaguardam (som, banda desenhada). É apenas uma outra maneira de entender essa patina fantasmática presente na leitura.
Tal como sucedera com Lint, e apenas até certo ponto em Jimmy Corrigan, Ware tenta recriar vidas inteiras. Mas se a(s) de Jimmy se estruturavam em torno de sucessivos traumas e desilusões terríveis, e a de Lint se estendia na sua completude mas num conjunto restrito de episódios quase desconexos, Building Stories tenta apresentar troços mais consequentes, organizados, narrativos da protagonista. Que jamais é nomeada, como vimos, e esta ausência de nome deve-nos fazer pensar mais uma vez “o que há num nome?” Apesar dos pequenos desvios pela vida da velha proprietária do edifício onde ela viveu sozinha durante algum tempo, ou da vida do casal vizinho ou ainda o de Brandford Bee, a abelha ficcional antropomorfizada (fantasia infantil, não é por acaso que surja no que chamámos de formatos comic book e tablóide), a parte de leão de Building Stories tem como centro esta mulher. Temos acesso, como dissemos, a episódios desde a sua infância à sua idade madura, testemunhamos episódios da vida dela enquanto estudante na preparatória, a escola de artes, algumas das profissões, o primeiro namorado, o marido, a mudança para os subúrbios, os conflitos com colegas e amigas, o reencontro aos 40 com amigos do tempo da faculdade, etc. Alguns destes troços são curtos, apenas uma menção, uma vinheta que irrompe o tecido do resto, como uma rememoração súbita, outros têm uma maior densidade, porque apresentados em mais páginas de formas mais ou menos continuadas – mas segundo aquela estratégia que o autor começou a explorar já em 1991 com “I guess”, em que um texto corrido, narrado externamente por um protagonista, na primeira pessoa, se sobrepõem a uma matéria visual algo desfasada, que aponta para um “passado” em relação ao texto, mas um “presente” na acção; nesse sentido, Ware parece ter descoberto como expressar o modelo de Henri Bergson da memória em banda desenhada.
De uma forma muito distinta da esmagadora maioria (todos?) os trabalhos de Ware, este é aquele que tem o maior número de referências ao mundo actual e real, referindo-se à (primeira) Guerra do Iraque, discutindo a crise imobiliária, nomeando Barack Obama, a Onion, o Facebook, etc., sem quaisquer desvios ou aliases humorísticos. Tudo corresponde à nossa (norte-americana, ocidental, etc.) realidade social e cultural. Poderíamos dizer que Ware utiliza a sua protagonista como “porta-voz” do seu conhecido desencantamento com a contemporaneidade, sobretudo o egoísmo das pessoas substituindo uma ideia mais sadia de comunidade, a falência mesmo dos princípios da convivência social, a fé na democracia e no progresso material do mundo ocidental, a forma como a tecnologia apaga certos elos de empatia, etc., mas sem deixar de criar, nessas mesmas pontificações, algum sinal de distância crítica, de humor, de discordância, colocando sempre no “tom” das personagens um azedume para com os outros que torna essas ideias discutidas como vácuas e sofrendo também elas das fraquezas acusadas.
Em algumas entrevistas, Ware revelou que uma sua ideia primeira era estruturar as histórias no interior do prédio, pelas perspectivas e experiências de cada habitante, referindo o Decálogo de Kieslowski como influência ou modelo directo (mas possivelmente Pérec, com A vida, modo de usar, também surgiria como referência central). No entanto, a perspectiva da rapariga acabou por “tomar conta” do projecto e acabou por se tornar uma focalização mais centralizada. Esses “ditames” da própria história, porém, não mais fazem do que mistificar aquele controle que a obra tem sobre o autor, e custa-nos crer que um autor como Ware, cuja minúcia é patente, se abandone a esse tipo de poesia. A título de exemplo, que poderá parecer obsessional da nossa parte, mas que cremos encontrar concordância juntos aos leitores atentos a todos os níveis materiais de Ware, repare-se como na história sobre o tal casal vizinho, ao observarmos a vida da mulher, que se encontra “presa” a uma relação difícil com o seu namorado, de quem não se consegue libertar, o seu corpo surge duas vezes no preciso centro dos cadernos, onde costuma apenas haver espaços brancos ou imagens ininterruptas e centralizadas. O corpo dela, ou o desenho que o representa, está no preciso local em que o agrafo prende as folhas do caderno. Coincidência? Duvidamos.
Este livro, tal como as grandes obras de qualquer arte, será pasto seguro para investigações das mais variadas dimensões sociais (relações entre géneros, estratos sociais, etnias, deficiências físicas, memória cultural, etc.) e formais. Será quase um desses textos infinitos. É possível que não tenha o mesmo impacto emocional de Jimmy Corrigan, que se revela relativamente mais conservador em termos de estrutura, mas encerra seguramente estruturas volantes que permitirão várias leituras cambiantes. Tim Samuelson, no projecto citado com Glass, escreve o seguinte sobre o Garrick Theater, mas que pode ser aplicado a outras estruturas, inclusive a deste “livro” Building Stories: “Edifícios como esse estavam destinados a serem experienciados a três dimensões, e ainda mais importante, em movimento no decurso da vida quotidiana. Sob muitos aspectos, experienciar um edifício com a [minha] sensibilidade de então, de criança de 9 anos, ainda imaculada de fórmulas e juízos académicos, era muito provavelmente a melhor forma de todas de o fazer”. Até certo ponto, mas provavelmente incorrendo em metáforas incompletas, todo este complexo processo de leitura é o mais acertado para desfrutar da vida que o edifício oferece em si mesmo; e aquilo que equivaleria à sensibilidade imaculada do jovem Samuelson seria essa mesma leitura tornada simples no seu próprio acto, sem a canga da sua apreciação crítica, que é o que este nosso texto tece.

27 de agosto de 2013

Tension de la passion, vol. 1. AAVV (Beleléu)

Queremos deixar aqui apenas uma nota brevíssima sobre uma pequena publicação recebida do Brasil, associada à revista (e site) Beleléu, e que parece tratar-se de um formato retomado de experiências anteriores (se bem que o número 1565 pareça ser mais jogo mítico do que real). (Mais) 

23 de agosto de 2013

Boxers & Saints. Gene Luen Yang (First Second)

O novo projecto de Gene Luen Yang confirma o autor como alguém que pretende criar um excelente compromisso entre uma abordagem ficcional, legível, apropriada junto a um público mais jovem para as primeiras experiências das várias dimensões do mundo, e uma certa ambição quer em termos estruturais da banda desenhada narrativa quer em termos de temáticas. Oscilando entre o humor nerd (Prime Baby) e a aventura infanto-juvenil (as versões de Avatar: The Last Airbender), da navegação à vista entre vários géneros (TheEternal Smile) e à concentrada e complexa auto-ficção, construção de identidade e tratado sobre as relações raciais nos Estados Unidos (American Born Chinese), com Boxers & Saints Yang explora a um só tempo os territórios da ficção histórica e do realismo mágico. Se não estamos perante uma obra com os contornos de American Born Chinese, ainda assim este título irmanar-se-á com ele, na obra deste autor, do que os outros títulos.
Na verdade, este projecto deve ser entendido como um só, um texto uno, que se apresenta simultaneamente em dois livros, cada um dos quais contribuindo para uma narrativa maior completada pelo outro. Em termos diegéticos, são autónomos, não obstante os cruzamentos que se complementam, mas esse enquadramento mais alargado é-o em termos históricos e até, se quiserem, éticos. Ambos os livros têm a mesma contextualização, entre os anos 1880 e 1900 na China dos Qing, focando sobretudo aquilo que é conhecido como a “Rebelião dos Boxers”.  
“Boxers” é a forma como os ocidentais tratavam os membros da Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros, um movimento de párias das classes mais baixas que consideravam a crescente presença e influência dos ocidentais (sobretudo alemães, ingleses, franceses) na China como a raiz dos males sociais e económicos, e que se rebelaram contra o governo de Pequim e a intrusão desses estrangeiros, começando no norte da China e marchando paulatinamente até chegaram à capital. Apesar de uma avanço inesperado e de algumas vitórias assombrosas, acabariam por ser esmagados pelas forças unidas das potências ocidentais. Uma vez que estes rebeldes praticavam artes marciais e rituais físicos complexos (inclusive o mítico kung fu), mesclados com os sincretismos religiosos chineses, os ocidentais chamavam-lhes os boxeurs. Ora o volume “Boxers” conta a história do ponto de vista de um membro dessa sociedade, líder de um grupo e boxers, e “Saints” a partir das vivências de Vibiana, uma chinesa convertida ao cristianismo.
De certa forma, isto poderia recordar outras experiências, sendo talvez o díptico de Clint Eastwood Letters from Iwo Jima/Flags of Our Fathers o mais famoso. Mas se isto vem esclarecer na prática a lição de Chimamanda Adichie dos “perigos de uma história única”, ao mesmo tempo pode acarretar os seus problemas Esta estratégia e estrutura do autor em apresentar dois livros, em que cada um corresponderia à perspectiva e posição de um representante das duas facções opostas reifica precisamente essa ideia de total e incompatível dicotomia. Mesmo que o autor pretenda criar uma oposição entre duas “Chinas”, essa oposição surge como demasiado clara. Por um lado, aquela representada pelo jovem Little Bao, aparente fundador da Sociedade referida (é necessário indicar que estes eram agrupamentos sociais algo recorrentes desde a passagem do século XVIII), de visão tradicionalista, de uma nação autónoma, e pronta a responder violentamente às investidas das potências estrangeiras, por outro, a de Vibiana (antes conhecida como “Rapariga Quatro”, por ter sido a quarta filha a nascer, e sendo o som fonético de “quatro” próximo do de morte, vista como mau augúrio, crença presente na China, Japão e Coreia), nova cristã, com uma ideia de abertura a novos valores espirituais, morais e sociais (ou outro tipo de interdições, melhor dizendo), o “progresso” Mas a História, essa não se coaduna com este tipo de estruturas simplistas. Os tempos atribulados em termos económicos, sociais e políticos na China já se arrastavam há décadas, e é preciso ter em conta variadíssimos factores, desde a guerra civil chamada Rebelião de Taiping (com contornos religiosos) até às dificuldades do próprio programa de expansão colonial da China, que se expandia e tentava absorver populações tão distantes como os muçulmanos do Oeste e os tibetanos de Kokonor, os défices económicos provocados pelas investidas dos ocidentais (o ópio, introduzido pelos Portugueses no século XVII em terras chinesas, fazia no século XIX mossa maior com a intervenção dos britânicos, depois destes terem conquistado a Índia – a Guerra do Ópio durou três anos, mas exporia e agravaria uma rede de compadrios que atravessavam todos os níveis da sociedade, quase impossível de extirpar), já para não falar dos problemas internos desde más colheitas, populações dispersas e poderes centralizados mas altamente corruptos e divididos em interesses facciosos. A “entrada” dos poderes ocidentais, sobretudo anglo-americanos, e o envolvimento mais tarde de novas potências como a Rússia e o Japão (o qual se “ocidentalizara” com maior rapidez precisamente pela maior facilidade de gerir em termos de população e território), tornaria toda esta equação mais complexa ainda. Estas complexidades não têm espaço de desenvolvimento nos livros, uma vez que se opta por uma estrutura mais simples (inevitável?). Mas seja como for, Boxers & Saints decorre no interior da última década do século XIX, no auge de um período na história da China cujo capítulo em Le monde chinois, de Jacques Gernet, é titulado “O falhanço da modernização e o avanço da intrusão estrangeira”. As palavras escolhidas dão o mote.
Do ponto de vista ocidental, a história é mais ou menos contada nos seguintes termos: A China viveu milénios de isolamento, e os ocidentais vieram contribuir com um acordar em termos científicos e industriais, assim como com as noções de liberdade e progresso. Claro que esta narrativa faz suspender a importância fundamental que a China teve no desenvolvimento intelectual, cultural, científico e tecnológico daquela parte do mundo, que envolveria toda a Ásia, desde o extremo japonês aos impérios muçulmanos, e trata de um modo monolítico a história e cultura daquele país (ou melhor, como monolítica qualquer cultura de qualquer país, uma vez que basta pensar que os impérios português e britânico do início do século XIX eram bem distintos dos do seu final). No entanto, não pode deixar de haver uma sensação de que a(s) narrativa(s) de Yang se apresenta, ainda que alternativa, como um idêntico trabalho de simplificação. Existia uma China tradicional, simples e campesina, e dependendo da vida individual de cada pessoa, a chegada e confronto com os ocidentais – os padres missionários – isso seria visto como uma oportunidade de fugir uma certa opressão ou como dando corpo acabado a toda a espécie de ideia de corrupção e “doença social” de que a China sofria às mãos desses invasores. De facto, Rapariga-Quatro/Vibiana vive uma existência quase miserável e vê no Cristianismo, que compreende mal mas lhe é apresentado por um missionário francês, uma espécie de saída e transformação do seu mundo, ao passo que Bao, confrontado pela violência do mesmo missionário para com a sua cultura e crenças, concentra nele o centro nevrálgico da crise nacional que quer resolver.
Apesar da presença dos ocidentais nesta história, e o próprio Yang ser um cidadão americano de origem chinesa, podemos dizer que esta dilogia é “sinocentrista”, isolando os dois protagonistas no seu contexto cultural, no qual a presença dos ocidentais é sempre tratada de forma reduzida. No entanto, tendo em conta o número de narrativas populares em que o homem branco assume o papel do “salvador” ou “último” (ou “último salvador”) representante de sociedades vistas como “tradicionais” e “mais genuínas” precisamente a partir do ponto de vista da cultura do “homem branco” – pense-se em O último samurai, O último dos moicanos, Dança com lobos, Avatar, 47 Ronin, etc., etc. -, não nos parece que uma concentração numa perspectiva chinesa seja algo desequilibrada e escusada. Bem pelo contrário, ela é necessária.
O volume Boxers tem mais de 300 páginas, e o Saints quase 170 pranchas. Esse desequilíbrio pode dar a entender um tratamento drasticamente diferente entre uma perspectiva e outra, mas a verdade é que boxers, centrada numa personagem masculina, está imbuída de uma vertente muito mais dinâmica, com passagens entre vários espaços, talvez indicadora da maior liberdade de movimentos e escolhas que os homens tinham em relação às mulheres. Mas isso é apenas uma visão limitada da economia dos sexos, sendo antes muito equilibrada a posição de Yang, que mostra o papel que algumas mulheres tiveram no esforço militar da Rebelião, inclusive enquanto combatentes, como também mostra o papel dos homens “caseiros” em toda a economia da narrativa. Sendo as vidas de Vibiana e de Bao muito distintas, elas cruzam-se em momentos decisivos, como a infância (ambos testemunham o padre católico a esmagar a pequena estátua do deus da terra Tu Di Gong [ver imagens combinadas neste parágrafo]) e o derradeiro episódio em Pequim. Além disso, o autor tece alusões de paralelismo que tanto revelam dos modos como a identidade é construída como das pontes que seriam possíveis de sincretismo mesmo através da religião, houvesse ouvidos para a compreensão. Eis dois exemplos, que ilustramos em imagens neste artigo: quando atingem uma pequena cidade nos arredores de Pequim onde os cristãos se escondem, os boxers rodeiam a cidade, gritando “mata!”: ora, uma das imagens do volume Saints mostra-os como simples humanos, ao passo que a correspondente em Boxers revela os avatares dos deuses que eles pensam encarnar (ou encarnam mesmo) [ver imagem combinada acima]; o outro exemplo é uma composição gráfica que ilustra uma lenda sobre uma bodhisattva caridosa (em Boxers) idêntica à da lenda do Bom Samaritano, tal como contada pelo próprio Jesus (em Saints), como se pretendesse demonstrar um fundo de verdade igual entre as duas expressões religiosas diferentes [idem].
A violência agravada entre as duas partes não pode ser diminuída, em termos históricos. As missões católicas estavam nas mãos sobretudo de missionários franceses, e faziam parte do seu número padres intolerantes para com as tradições, crenças e rituais chineses, que desconheciam totalmente. Mas do ponto de vista chinês, a incompreensão não era menor.
Eis um exemplo, dado por Gernet. “Quanto as Irmãs de Caridade começaram a recompensar as pessoas que lhes trouxessem crianças órfãs, a população entendia isto como uma confirmação da crença tradicional de que os cristãos se entregavam a práticas mágicas usando os olhos e corações das crianças”. Os sucessivos mal-entendidos, os acordos totalmente desequilibrados e ruinosos que levavam a China a pagar oficialmente às potências estrangeiras indemnizações aos países cujos missionários ou cidadãos eram apanhados nas refregas, e as centenas de escaramuças violentas e represálias sangrentas dos poderes oficiais foi criando um clima cada vez mais impossível de resolver, e é ele que atravessa este livro, presente na forma como uma e outra parte falam da oposta, criando um retrato de matizes variados. Apenas a título de exemplo visual, mostramos uma imagem de propaganda anti-ocidental e anti-cristã do final do século XIX em que se traduz a expressão “ferir o porco” (Cristo) e “decapitar as ovelhas” (os cristãos); outra expressão típica, e que Yang integra repetidamente na diegese, é chamar os ocidentais de “demónios” os chineses cristãos de “demónios secundários”.

Tudo isto tem a ver com a dimensão genérica da ficção historiográfica. Já a do realismo mágico tem a ver com as “visões” dos protagonistas. No caso do Pequeno Bao, a sua assunção da filosofia e rituais do kung fu, aliados ao seu profundo arrebatamento pelas populares “óperas” fazem com que, quando ele sente o poder da justiça do seu país a tomarem conta da sua pessoa, ele seja fisicamente possuído pelo espírito de deuses ou personagens antigos (no caso de Bao, é o fundador-imperador da China, Chin Shih-huang), todos eles nas suas representações "operáticas". A todos os seus companheiros acontece o mesmo, e tudo nos leva a crer que algumas das outras pessoas “vêem” este fenómeno. Estra tradução das crenças dos boxers e dos factos das suas conquistas-relâmpagos em “factos visuais” confundem história e ficção, factos e fantasia, de uma forma que não torna a consideração da “verdade histórica” mais obscura, mas antes mais matizada de acordo com as vozes e, arriscamo-nos a dizer, a Weltanschauung de cada participante. No caso da jovem chinesa cristã, a dimensão mágica é mais limitada, ou pelo menos ela é-o limitada apenas a Vibiana: numa primeira fase ela
entra em contacto com um texugo ancestral que depois é substituído – de uma forma tão brutal como igualmente mágica – por Joana d’Arc, que passa a ser o motivo da protagonista. O desequilíbrio ente Boxer e Saints do “acesso” à dimensão mágica é corroborado por uma escolha cromática: no primeiro livro tudo é representado a cores (se bem que haja uma preferência por cores esbatidas e ocres na maioria do texto, e apontamentos de cores mais garridas em presenças-chave, a analisar cuidadosamente), e no segundo tudo está representado a cinzentos, sendo reservado o um amarelo “dourado” para toda a intervenção “divina”. Significará isto, por exemplo, “verdade” no primeiro caso e no segundo um sublime salvamento em relação à vida severa do real? Pensamos que este quadro de interpretação é possível, mas não único, seguramente.
Como dissemos ao início, apesar de todo este complexo tecido histórico como contexto e fundo das narrativas, e a escolha dos protagonistas para criar um espaço intervalar onde as tensões mútuas corroboram ou contrastam entre os volumes, para que resulte uma leitura matizada desse mesmo fundo, Gene Luen Yang fá-lo através de uma estrutura de grande legibilidade. De resto, confirmada pela dimensão visual, bastante clássica e convencional, não num sentido de detrimento, mas bem pelo contrário, como confirmação dessa superfície de veludo. Estamos seguros que as leituras deste livro levantaram complexas questões a explorar em toda uma série de quadros disciplinares, que libertarão a riqueza das interpretações possíveis.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

19 de agosto de 2013

The Art of Comics. Aaron Meskin e Roy T. Cook, eds. (Wiley-Blackwell)

De uma forma muito generalista, este volume deveria ser irmanado com um outro também recente de Bart Beaty, intitulado Comic Versus Art, de que daremos notícia crítica noutra ocasião. A razão dessa aliança prende-se na nossa recepção pessoal, por duas razões, uma a montante da leitura - as expectativas criadas, as promessas imaginadas, os objectos em causa expectáveis - e outra a jusante - a sua apreciação crítica. Quer num caso quer no outro havia uma ideia formada de que estes seriam volumes que debateriam a (ainda) vexata quaestio sobre a relação entre a banda desenhada, enquanto meio autónomo, e o mundo mais geral das “Artes” (desde logo pressupondo uma separação; e repare-se como a capa prevê essa situação, criando porém narrativas estranhas) e tudo o que daí advém: legitimação cultural, espaço social, vivência económica, canais de distribuição e/ou divulgação, diálogos filosóficos, criação de instrumentos analíticos e críticos próprios ou interralacionados com outros campos, e por aí fora. Mas a verdade é que a leitura acabou por se tornar uma desilusão - não total, mas substancial - por ver que as discussões acabavam ou por se atolar em aspectos menos centrais (mas tratados como se se tratassem do “coração” do tema) ou por quererem legislar sobre o todo através das suas perspectivas parciais. Infelizmente, o exercício de leitura comparada tem de ficar suspenso, e abordaremos Beaty mais tarde.
Este livro proclama ser a “primeira antologia sobre a estética da banda desenhada na tradição analítica”, isto é, no seu estrito sentido da chamada escola filosófica anglo-americana que tem sido a norma nas últimas décadas, ancorando-se no trabalho de autores distintos como Russell, Wittgenstein e Frege (mas sem se confundir com a genialidade ou importância desses autores). Nessa afirmação, não há qualquer erro, mas a questão principal é saber se esse facto representa algum tipo de mais-valia para a análise do meio. Recordemo-nos de que The Aesthetics of Comics, o livro de David Carrier, que também participa neste livro, se iniciava com esse tipo de afirmação bombástica, a qual, não sendo factualmente falsa, é impertinente. Um dos problemas dessa tradição é que abre espaço às críticas de sempre (que, por generalistas, podem ser mal empregues ou mesmo falsas, ainda que apontem “um fundo de razão”): uma escrita desapaixonada, por vezes aborrecida, e cheia de fórmulas tecnicistas que não interessarão senão àqueles que as propõem. Parece por vezes que o objectivo principal deste escrita é provar que a(s) teoria(s) está apta ao tratamento desta (e de qualquer outra) matéria mas não ao estabelecimento de vias de compreensão mais latas e passíveis de continuidade e contaminação; há um tratamento disciplinar bem-feito mas que falhará na criação de interesse num campo de aplicação mais vasto.
Essa inscrição disciplinar leva, como escreve Noël Carroll no seu blurb ao livro, ao “rigor previsível”, o que é correcto - em si mesmas, as discussões seguem os típicos instrumentos da lógica, assertivos, conclusivos e secos - , mas já nos afastamos da concordância quando ele continua, afirmando que encontraremos aqui “um amor profundo pela banda desenhada assim como um conhecimento íntimo desta forma de arte em toda a sua diversidade e pormenor”. Discordamos, por duas razões: em primeiro lugar, um aspecto superficial, que tem a ver com o “amor” [“deep love of comics”]. Se o livro fosse sobre teatro isabelino ou sobre cerâmica minóica, num tratamento sério dessas matérias, mais filosofia ou menos filosofia, estamos seguros que - não duvidando do conhecimento e apreço dos investigadores pelos seus objectos de estudo - não se proclamariam pieguices como “adoro Shakespeare e Jonson!” ou “são fantásticas as curvas destes polvos!” Por outro lado, a “diversidade e pormenor” do corpus de todos os capítulos, a ausência de mais exemplos de obras, a falta de atenção para com projectos verdadeiramente experimentais da banda desenhada (ou, se se mencionam, para serem imediata e displicentemente tratados como “fora da banda desenhada”), leva a que esteja ausente também uma leve inflexão às “conclusões” de muitos destes ensaios. Além disso, a falta de um mais intenso ou contínuo diálogo com fontes académicas, sobretudo europeias, mais variadas, deixa muito a desejar.
Uma das razões que leva a essas abordagens isoladas é precisamente um dos pilares da filosofia analítica: a sua falta de ancoramento na história. Ao preceituar sobre elementos específicos, discretos e isolados (relação texto-imagem, o balão, etc.), procura-se uma análise separada do contexto, dos condicionalismos, das condições de possibilidade do objecto em questão, como quer a outra “metade” da filosofia ocidental. Não ter em conta a diferença que existirá entre um livro do século XIX de um comic book dos anos 1940 de um álbum franco-belga dos anos 1970 de um tankobon vendido nos dias de hoje é cercear metade da importância de cada um desses textos. E isto para não mencionarmos fanzines, obras perdidas e não editadas em vida de determinados autores, webcomics de toda a espécie e feitio, e experiências radicais de formatos, técnicas e de objecto.
A introdução de Meskin e Cook dá-nos, mais uma vez, uma versão “enlatada” da história da banda desenhada, que atravessa todos aqueles “grandes pilares” da arte, desta feita englobando objectos que apenas devido à pressão e visibilidade de certos livros passa a fazer parte de um cânone - por exemplo, se se mencionam finalmente os livros de Masereel e de Ward dever-se-á à monografia de Beröna. Depois de uma brevíssima nota sobre alguns percursores europeus, há um afunilamento quase exclusivo à produção norte-americana, que se abre (a inclusão dos clichés de sempre, como as “ages”, passa quase de forma acrítica), dando-se direito a uma apertadíssimo parágrafo para “outras tradições”, mas sem nada de substancial, e se há uma referência à mangá deve-se à sua presença particular no mercado norte-americano. Este enquadramento torna logo problemática a contextualização das discussões subsequentes. Além disso, os editores explicam que parte da dificuldade em estudar este campo deve-se ao facto de serem “coisas que são deitadas fora tão rapidamente” (xxviii), o que logo à partida nos deveria levar a perguntar se ainda se estarão a referir às décadas anteriores a 1950, quando o coleccionismo passa a ser uma das dimensões, arriscamo-nos a dizer definidoras, de uma certa cultura da banda desenhada, e que assegurou parte da sua circulação cultural. Essa dimensão não é verdade há décadas, precisamente pela transformação de “arte de massas” para uma “arte de nicho” ou “subcultura”.
A ausência de um enquadramento mais alargado quer na história quer na  produção internacional - da mainstream à experimental - quer ainda no pensamento desenvolvido da teoria e análise da banda desenhada leva a que haja perspectivas parcelares estranhas. Apenas a título de exemplo, vejamos o caso seguinte. Uma das discussões (precisamente o ensaio de R. T. Cook) tenta demonstrar como a banda desenhada não é um filme, apelando para aspectos que não podem ser “replicados” por essa outra disciplina, e fala-se de balões de fala e pensamento [como estes de The Filth], ou de exemplos metaficcionais; na introdução, também assinada pelo autor, diz-se mesmo que esse ensaio, se estiver correcto, leva a que a banda desenhada “apele ao desenvolvimento de instrumentos teóricos distintos” (xxxvii). Mas, será preciso ir mais longe do que recordarmo-nos de que a composição de página da banda desenhada é desde logo uma especificidade discursiva impossível de mimar noutro meio? E que, de resto, já existem instrumentos teóricos distintos para a discutir (Peeters, Groensteen, Chavanne, etc.)? Quando os editores terminam a sua introdução para explicarem algumas diferenças (vantagens?) entre a banda desenhada e os romances, acrescentando parenteticamente “pelo menos os romances normais” [ordinary], gostaríamos de saber o que serão esses romances…
Os ensaios exploram temas tão diversos como a definição formal da banda desenhada, que poderá levar a aporias tais como as de - se se seguir McCloud - se poderem incluir romances em prosa como “obras gráficas”, mesclando termos do design. Há ainda textos dedicados a: a autoria na banda desenhada e as formas como ela pode ser determinada, instituição de géneros (que, infelizmente, continua a ser a um só tempo algo muito fácil de compreender mas que leva a erros contumazes de confusão entre “meio/media” e “género”), os relacionamentos entre texto (no sentido estrito de matéria verbal) e imagem na banda desenhada, o humor, o emprego do termo “linguagem”, e questões de relacionamento com o cinema e com a adaptação literária. Estes ensaios dividem-se em três secções, a saber, sobre “a natureza e tipos [kinds] de banda desenhada”, “banda desenhada e representação” e “banda desenhada e as outras artes”, sendo relativamente clara a inscrição dos temas indicados, por ordem. Não sendo possível apontarmos aqui todas as questões - pertinentes, claro - levantadas por todos os ensaios, e que respostas nos suscitariam ou que dúvidas instalam, vejamos algumas considerações parciais.
O ensaio de Henry John Pratt, que seguimos com vivo interesse noutros textos, é um caso claríssimo desta atitude. Este texto explica como a banda desenhada é o melhor meio para ser adaptado ao cinema e vai explicando as razões que o levam a essa afirmação. No entanto, o autor parece ir citando aquilo que melhor serve ao seu propósito argumentativo, mesmo que leve a cruzar questões incomparáveis. Por exemplo, ele cita o caso de Persépolis (o filme de animação) enquanto bom exemplo de preservação de estilo, mas não há uma única palavra sobre a sua ontologia narrativa e relação entre ritmo e impacto emocional (fraquíssimo na versão fílmica, em contraste com o livro); já em relação a Watchmen, apesar das muitas opiniões (anteriores) de ser um livro “infilmável”, Pratt foca sobretudo a questão do género e as opções de transmediação da diegese (sem usar aquele conceito). Num contraste com o teatro (e o primeiro cinema), fala-se, entre vários argumentos (tempo real da performance, corte das cenas, uso do som natural, etc.), de uma “estabilidade” do palco (152), o que contrasta com a característica crucial do movimento (da câmara, das elipses) no cinema. Mas se pensarmos em obras tais como Little Nemo ou outras das comic strips norte-americanas do início do século XX, não teremos aí também uma organização “teatral”, em que não existe “mudança” de cena/vinheta para cena/vinheta? (independentemente de já ter havido antes, e até antes do cinema, “movimentos” da focalização). Num outro momento, para mostrar a dificuldade em adaptar a “narração diegética”, Pratt dá os exemplos das “vozes off” com “resultados desastrosos” de Dune e Blade Runner. Mas, se por um lado a discussão destes dois filmes, nas versões que o autor indica, levaria a uma defesa das versões mais conhecidas, sem as mesmas narrações alongadas, outras questões a levantar seria distinguir o que se entenderia por esse tipo de narrações na banda desenhada, desde O Príncipe Valente a Jimmy Corrigan, passando por Loustal e Baudoin, ou a exemplos fílmicos magníficos em que a narração não é de forma alguma um empecilho mas porventura uma característica de força (Godard?, Chris Marker?, Terrence Malick?, ou mesmo Stranger than Fiction?). Não havendo qualquer discussão de transmediação, precisamente, parece que a discussão é feita num vácuo, digamos, tecnicista. Façamos uma pergunta, que talvez seja tola e despropositada, mas que talvez aponte a uma parte do problema: se a banda desenhada é o melhor meio para ser adaptado para o cinema, porque é que - nos vários processos de canonização do cinema, de listas dos “melhores”, das obras-primas, concorde-se ou não - não existe um único título relativamente consensual baseado numa banda desenhada? O interesse por L’Arroseur arrosé é sobretudo arqueológico, e o Superman de Richard Donner continua a ser um exemplo acabado de camp apenas protegido por nostalgia e arrested development. John Houston e Robert Altman são grandes realizadores, mas Annie e Popeye são possivelmente os seus piores respectivos filmes. E mesmo bons filmes baseados em banda desenhada (The Life and Death of Colonel Blimp, Barbarella, L’an 01, Ghost World, Les beaux gosses) rara ou dificilmente são recordados em listagens de “grandes obras-primas”).
O ensaio de Thomas E. Wartenberg, sobre as relações entre texto e imagem, quer debruçar-se sobre elas em termos muito gerais. Se se baseasse em McCloud (Making Comics) encontraria logo ali um interessante pasto de trabalho, mas não o citando, nem aos vários artigos ou livros existentes sobre esta questão no campo da ilustração, fica-se por ideias demasiado generalistas e, francamente, erróneas. Quando escreve (90) que a “fidelidade é um princípio importante pelas quais as ilustrações são valorizadas [judged]”, o autor parece suspender toda uma tradição de respostas aos textos através das imagens que não passam pela ideia de fidelidade textual, nem sendo preciso entrarmos em campos expressivos da modernidade ou contemporaneidade, mas recordando uma questão levantada a propósito de uma imagem de Doré sobre o Antigo Testamento (precisamente um dos campos que o autor debate). Se o autor estabelece alguns princípios interessantes sobre a presença da matéria verbal na banda desenhada, distinguindo narração de falas, onomatopeias e texto diegético, já Groensteen e outros autores haviam feito esse estudo há décadas, não se apresentando nada de novo.
Um outro, de Darren Hudson Hick, intitula-se “The Language of Comics”, sem citar uma única vez Neil Cohn, que é talvez a pessoa que mais tem batalhado de forma sistemática por uma utilização rigorosa desse termo, contra uma ideia logocêntrica, e apenas ao de leve mencionando outros trabalhos. O autor parte de uma discussão ou de uma consideração tão absurda - que é o tratamento da banda desenhada como uma linguagem natural, com todos os pressupostos semânticos e estruturais que isso implicaria - que demonstrar a insustentabiliade dessa posição é algo “fácil”, se nos é permitido dizê-lo dessa forma. Obviamente, o autor complica a questão de forma competente, remetendo a estudos específicos de Gregory Currie. O programa deste último é desacreditar a teoria semiótica da linguagem, isto é, enquanto “sistema de signos culturalmente integrada” (125), mas isso não significa forçosamente que se considerem essas linguagens - do cinema, da moda, etc. - como sequer funcionando como idiomas naturais (por alguma razão Groensteen distingue código de sistema no seu famoso Système de la bande desinée). Hick termina ainda com a seguinte afirmação: “Um dos problemas da banda desenhada é que raramente a encontramos, se alguma vez o fazemos, sob uma forma não-narrativa - até mesmo as instruções dos panfletos dos aviões usam a banda desenhada de modo narrativo” (140). Apenas remetendo a uma nota, o autor concede que “podemos encontrar talvez” exemplos disso na antologia dos Abstract Comics. Mas que significa essa frase? Os panfletos dos aviões são necessariamente narrativos, tal como as instruções de montagem de um móvel ou de um brinquedo (se não o fosse, como instruir?). Se o autor considerasse algumas obras de Pascal Mathey, Frédéric Coché, Dominique Goblet, Ilan Manouach, entre outros, talvez fosse confrontado com exemplos existentes e verdadeiros de banda desenhada não-narrativa, o que o obrigaria, quiçá, a rever alguns dos seus princípios.
O artigo do outro editor, Aaron Meskin, que já circulava na internet há uns anos, dá continuidade ao seu projecto de tentarmos chegar a uma “definição” balizada a aberta de banda desenhada - essa discussão voltará a fazer sentido quando da discussão sobre Beaty. “The Ontology of Comics” cria um discurso plenamente ancorado na filosofia analítica, sobretudo em Nelson Goodman e nas revisitações dos seus conceitos por Jerrold Levison, mas procurando correcções específicas, para que a banda desenhada seja entendida como uma arte de características próprias. A lição final é coincidente com algo que Domingos Isabelinho tinha já apresentado no seu blog, a saber, a de que a banda desenhada é uma arte “autográfica” (de uma forma basilar, isto prender-se-á com uma relação directa do acto de criação e a mão do autor ou autora, uma marca  distintiva que a distancia das artes alográficas, ou passíveis de serem repetidas por outros, de acordo com processos de notação) e, mais, de “dois momentos”, levantando importantes questões que têm a ver com a consideração da matéria verbal, da tradução, do formato, da arte original, etc. Estas questões não são pacíficas, e existem pessoas com argumentos contrários (basta pensar-se nestas questões: qual é o “original” de uma banda desenhada, a arte original ou a página impressa?; podem-se copiar a arte e as páginas, mas quais cópias constituiriam uma “falsa banda desenhada”?; a alteração do formato altera a banda desenhada em si? Etc.) Não queremos entrar numa questão jurídica, aqui, mas será expectável que haja uma maior falta de atenção para com o mais curto texto de Isabelinho, publicado num blog, do que agora para um ensaio com toda a patina da academia, mas o que nos parece ser importante é cotejar ambos os textos e, sobretudo, compreender a lição para a aceitar ou então contra-argumentar.
Repetimos que apenas de uma forma generalista as nossas afirmações servem a todos os ensaios, mas a leitura destas abordagens deixa sempre a sensação de que se os argumentos são sólidos, filosoficamente ancorados, e logicamente defensáveis, há sempre uma dimensão de incompletude nos exemplos existentes de banda desenhada que torna as coisas mais titubeantes. De certa forma, o ponto de equilíbrio ainda não foi detectado, e o receio de ver pessoas com (grande) formação de outras áreas a pontificar sobre a banda desenhada - arte bastarda e invisível e secundarizada nas discussões sobre a ontologia das artes, sobre a estética, sobre a história da arte  - para repetirem as mesmas platitudes de sempre mantém-se. The Art of Comics foge ligeiramente a esse perigo, mas ainda assim prende-se em demasia a campos familiares e normativizados, para conseguir abarcá-la enquanto campo, não expansível (projectado no futuro, imaginado) mas expandido (efectivo, materializado).
Apesar de tudo, uma das formas de compreender este livro é como se fosse um bateria multifacetada de vários conceitos e discussões que, depois de se misturarem, poderiam levar ainda mais longe as suas ideias. Apenas a título de exemplo, Meskin faz uma afirmação em relação ao papel dos legendadores que os coloca numa economia de autoria da banda desenhada que poderia complementar ou complicar o artigo de Mag Uidhir; os artigos de Pratt e Cook, aparentemente antagónicos, poderiam descobrir pontos em comum e as razões das dissensões, etc. É salutar que existam estas várias perspectivas, mas seria ainda mais interessante se se fundasse um laboratório ou ponto de encontro para que estas discussões tivessem lugar - o que é precisamente o objectivo da produção de saberes académicos ou disciplinares, e que se poderá esperar futuramente, não jamais no intuito de se chegarem a “verdades” definitivas e respostas cabais, mas em garantir que os problemas encontram sempre novos desenvolvimentos. Pois um verdadeiro problema filosófico nunca tem resposta.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

17 de agosto de 2013

6 razões sobre a superioridade da Marvel sobre a DC.

 "Make mine Marvel!"

Beating. Tommi Musturi (Huuda Huuda/La Cinquième Couche)

Façamos o seguinte exercício. Pensemos naquelas personagens de aspecto plástico máximo, filhas da transposição das técnicas de animação para o papel - Disney, Fleischer, entre outros. Foquemo-nos naquelas partes dos seus corpos que parecem ser modulares: os tubos dos membros, as azeitonas dos narizes, as ovais líquidas dos olhos, os pedúnculos - ora grossos ora meramente uma linha - que servem de orelhas, caudas, as formas cilíndricas ou arredondadas que servem de extremidades, as pequenas adições que passam por bigodes, pêlos, cabelos, rugas. Acrescentemos itens de roupa, chapéus, óculos, ou outros. Coloquem-se esses elementos numa tômbola, e produzam-se as mais diversas combinações, como se se tratasse de um jogo de espelhos moventes. Imaginemos ainda que todas essas combinações ganham a tridimensionalidade de bonecos (em PVC novo, brilhante, maleável) mas são submetidos a um mecanismo de aquecimento intenso, que os faz derreter e derreter as cores - até ali separadas por filamentos negros e densos - em manchas autónomas. Os tais filamentos erguem-se agora em estruturas esvaziadas, mas que também se torcem em torno dos seus próprios eixos, deslocados e impossíveis. A todos os momentos, não estamos seguros do que estamos a ver, mas há como que uma impressão de persistência retiniana e de memória cultural que nos faz, ao mesmo tempo, pensar que estamos a olhar para algo familiar. Existem momentos em que tudo isto se estilhaça ao seu mínimo contorno, contra uma negrura quase absoluta, outros em que tudo se remistura numa ofuscante paisagem de cores.
Tommi Musturi opera como uma espécie de xamã do grafismo, obrigando-nos a observar formas cambiantes que desligadas de qualquer propósito ou estruturação narrativa, nos faz ainda pensar estarmos a “ler” uma história comum, de que nos lembramos incompletamente. O que se passa em Beating é uma espécie de Unheimlich gráfico.
O livro, no que diz respeito a edição e design, comporta-se como toda uma série de livros afectos às áreas das artes contemporâneas, que tomam a ideia de arquivo não em termos de uma organização linear, explícita ou categorizável, mas antes de pilha que procure intensificar o conjunto. É Beating uma colectânea? Um catálogo? Um best of? Uma colecção? Um portfólio? Uma máquina de alucinação e de recrudescimento gráfico através da concatenação de trabalhos anteriores? É possível que haja uma organização cronológica de alguns trabalhos, começando nos mais recuados aos mais recentes, mas não há qualquer indicação certeira para que possamos saber. Um brevíssimo prefácio lança-nos as informações do que compõe o livro - posters, livros a solo, fanzines, colaborações, capas, objectos para exposições -, assim como nos indica locais, organizações, editoras, etc., mas não há forma de ligarmos ponto por ponto as imagens às circunstâncias. Temos de apelar ou para conhecimentos prévios - por exemplo, já havíamos falado de duas publicações antes, aqui retomadas integralmente, com pequenas diferenças de cor - para cartografar tudo. Mas talvez o desejo de Musturi seja precisamente fazer-nos abandonar nesta espécie de oceano sem fronteiras, onde as coisas se misturam, territorial, matérica, técnica e disciplinarmente. Não há que saber, há que nadar.
O autor demonstra através deste volume que oscila, apreciando-o, entre toda a espécie de formas de criação de imagens. Teremos aqui uma variedade assombrosa de materiais riscadores e suportes, e para além do desenho existe trabalho em serigrafia e manipulação digital; existe trabalho “límpido” e “sujo”; existem abordagens minimalistas no que diz respeito ao trabalho de linha e mancha de cor e outras mais próximas de explosões cromáticas psicadélicas, se não mesmo “ácidas”, como escreveu Marcos Farrajota. Em termos figurativos também encontraremos uma diversidade assinalável, desde criaturas o mais estilizadas possível, ora geométricas e “achatadas” a plasticamente maleáveis, a seres mais moldados em termos anatómicos e em texturas realistas (sem nunca chegar a ser “naturalista” propriamente dito). Existem galerias de retratos de personagens que nunca entrarão em história alguma, paisagens compósitas que não servirão nada a não ser a si mesmas, exercícios aparentemente sem nexo de riscos e travessias de linhas e formas desconexas, figuras isoladas e desenhos sobre figuras reais (uma pantera?). E apenas momentaneamente criará a ilusão de que estas imagens surgem por processos mecânicos ou mágicos. Pois a mão está lá. Desenho, desenho, desenho, como ondas sucessivas a bater contra as rochas dos olhos dos leitores. O acto de folhear o livro é a única tentativa de navegar, de cartografar, de controlar esta orgia gráfica.
Encontraremos aqui linhas arranhadas à la Gary Panter até às superfícies lisas de um Cadelo, aquela forma anímica das figuras pseudo-animadas à la Jim Woodring (que já João Ramalho Santos muito acertadamente convocara quando falou de Caminhando com Samuel) até à pura raiva expressiva tardo-adolescente de rabiscos nos cadernos de liceu, ao passo que em termos de imaginário não há nada que não possa ser encontrado, das hípérboles de acção à Frazetta às revistinhas baratas de banda desenhada coloridas dos anos 1970, da poster art do psicadelismo ao Onde está o Wally? Até existe um caso de uma imagem que nos faz recordar uma versão “horror” da famosa série de Ibáñez, 13 rue del percebe. Julgamos que em nenhum dos casos haverá necessariamente uma ligação directa, “fonte” ou “influência”, atenção. Simplesmente Musturi tem uma capacidade inata de ligar-se directamente à fonte comum, enérgica, abstracta, mística, de todas essas potencialidades, e daí captar estas diferenciações de resultados. Este livro não pode ser lido, nem visto, nem sequer degustado, mas sim aberto obsessiva e repetidamente, esperando que a aparente violência do embate com tantas imagens nos faça aproximar cada vez mais do coração profundo deste oceano.
Nota final: esta edição contou ainda com a co-produção da Bries e da portuguesa Mmmnnnrrrg, agradecendo a esta última o livro. Utilizámos as imagens disponibilizadas pelos editores.

15 de agosto de 2013

Susceptible. Geneviève Castrée (Drawn & Quarterly)

Tendo em conta o modo como esta jovem autora tinha apresentado uma fiada de feéricas histórias, de narrativas enigmáticas, com uma abordagem colorida forte e aberta ao não-naturalismo para melhor explorar temas surreais, não foi sem alguma surpresa depararmo-nos com um seu projecto alongado e plenamente integrado em géneros mais contidos.
É possível que Susceptible possa ser descrito como um livro autobiográfico, mas sem querer assumir esse pacto de modo imediato ou claro. Em vez de “Geneviève”, a personagem principal, a criança e depois adolescente, é tratada por “Goglu”, mas deixa-se em aberto se seria a alcunha ou diminutivo familiar, etc. Além do mais, se recorrermos a informações extratextuais, poderíamos dizer que existem parecenças físicas entre a autora e a personagem (mas também com todas as personagens femininas que a autora tem colocado nas suas histórias curtas, e se olhássemos para o trabalho de Hellen Jo, veríamos fortíssimas semelhanças entre as personagens de ambas as autoras, cujas características parecem ser de facto partilhadas com os rostos das autoras respectivas, mas não há nada de comum entre os rostos das autoras numa comparação directa, o que nos deve alertar para os perigos destas “transposições” estilísticas dos desenhos).
Não se tratará de auto-ficção, tampouco, género para o qual seria necessária uma clara inscrição da parte do autor. Se a autobiografia é já em si mesmo um género “híbrido”, “impuro”, complexo, talvez possamos aqui compreender uma integração do livro menos no género propriamente dito do que numa “dimensão” ou “modo autobiográfico”, como o é compreendido por teóricos como Lawrence Buell ou Leigh Gilmore. Aliás, de acordo com esta última, num seu estudo de casos-limite que coloca em causa uma ideia agora ultrapassada de autobiografia (a história dos “grandes homens”, representativos de todo o género humano), e a complicada questão da relação entre esses textos e a verdade jurídica, aprendemos as seguintes palavras, aplicáveis sem esforço neste projecto de Castrée: “No encontro imaginário com tais juízos [de verdade, de importância histórica, etc.], muitos escritores procuram outras bases que não as do testemunho explícito para a auto-representação. Ao desviarem-se do centro da autobiografia na direcção dos seus limites externos, transformam delimitações em oportunidades”.  
Um dos pontos a desfavor dessas inscrições é que, estruturalmente, no que diz respeito à narrativa, não estamos perante uma linha contínua e ininterrupta. Bem pelo contrário, a autora opta por apresentar sucessivos capítulos ou episódios, a maioria deles com títulos próprios (“fogo em casa 1”, “nós aguentamos”, “adeus”, etc.), alguns dos quais esgotando-se numa página, outros expandindo-se por uma mão-cheia delas, e sem que existam elos de ligação causal ou declarados entre as partes. Quer dizer, caberá ao leitor, por uma razão lógica de cronologia e de associação às personagens centrais a assunção de que se trata de “uma mesma história”, e não apenas de anedotas desconexas, contribuindo cada uma delas para a imagem em progressiva construção – como é próprio de uma narrativa de vida – de Goglu. Já no que diz respeito à linguagem ou estruturas mais tipificadas da banda desenhada, notamos como a autora tenta cumprir os arranjos mais clássicos de vinhetas regulares, ou oscila entre várias estratégias, mas o seu maior conforto está em desenhar as personagens em espaços “soltos”, sem delimitações, e deixando-as flutuar na mancha de composição (um pouco à Chester Brown, mas sem as molduras). Com excepção da capa, todos os desenhos são a preto-e-branco, com linhas suaves e aguadas, como se a rememoração (adivinhada, projectada) obrigasse a essa ilusão, abandonando a mais costumeira abordagem multicolor e vívida da autora. A sequência inicial, que vai desdobrando uma muito curiosa, exacta e belíssima metáfora visual – a da relação entre as qualidades inatas e as adquiridas do seu humano mostrando a relação física entre o corpo da menina e umas plantas crescendo e enleando-se no seu corpo – é talvez a parte mais próxima de trabalhos que conhecíamos anteriormente (espalhados em títulos tais como Drawn & Quarterly Showcase, Kramer’s Ergot, The Drama, etc.).
Filha de uma mãe québecoise (de quem herda o – um dos – sotaque “alveolar” do francês canadiano, como se pode comprovar ao escutar os seus projectos musicais em nome próprio ou sob outras designações, Woelv, Ô Paon – mais: poderíamos arriscar-nos a querer ler a sua caligrafia, de letras enroladas sobre si mesmas como fios de telefones antigos ou gavinhas, sem interrupções, como “traduzindo” essa musicalidade?) e de um pai anglófono da Columbia Britânica, e com uma família alargadíssima brevemente mencionada, o enquadramento familiar expande desde logo uma ideia do Canadá cosmopolita e urbano que poderá ser criado pelas leituras de outros autores de banda desenhada mais famosos (Chester Brown, Seth, Julie Doucet, ou mesmo o imigrante Joe Matt). Adiante, falaremos de uma das dimensões como isso impacta o tecido social do livro.
Sendo as relações imediatas e influentes sobre a jovem Goglu o mais importante, em alguns aspectos os episódios revisitados recordarão um tom geral idêntico ao de Phoebe Gloeckner, mas sem que haja a presença de episódios brutais, traumáticos ou de miséria dessa outra autora. Sem querer impor hierarquias nas experiências de vida, claro, e não negando os aspectos de pobreza que são mostrados em Susceptible, estamos ainda assim num contexto relativamente “seguro”. Se bem que o consumo de drogas “leves” e os vários parceiros amorosos da mãe, as festas a que leva a filha, e depois mais tarde alguns dos abusos verbais e emocionais quer da parte da mãe quer da parte do namorado, sejam tudo factores possivelmente escusados mas a que Goglu é exposta, e o próprio comportamento de Goglu na adolescência siga um caminho expectável de risco (bebedeiras, drogas, etc.), ponham em causa essa consideração de “segurança”… Enfim, são pequenos traumas, pressões que moem, mas não necessariamente catastróficas, e são eles os limites éticos que são colocados no centro da narrativa. E na verdade, são as relações pessoais, sobretudo com a mãe e o namorado desta (os nomes parecem ser retirados de uma obra alegórica: Amer e Amère). Mesmo a forma como se abordam os dois momentos maiores de crises emocionais, físicos e psicológicos – um aborto e uma tentativa de suicídio – eles acabam por não ganhar uma dimensão esmagadora, mas antes integram-se nesta narrativa de vida como mais uma experiência que serviria para a consolidação da personalidade independente da protagonista e mais uma peça para a sua partida do lar materno. Ou seja, na economia da narrativa elas não assumem um papel preponderante em relação a outros, não se procuram nenhum melodrama (o que não implica ter consequências a nível de representação política, sexual, etc.). Se lêssemos estas informações de uma forma exclusiva e redutoramente biografista, poderíamos reler algumas histórias anteriores de Castrée, que parecem rondar o tema da sexualidade e maternidade, à luz desta informações, mas há riscos nessa tomada de posição.
Apesar de toda relação ao enquadramento nacional, a paisagem do livro de Castrée é a uma escala intimamente humana. Quase todos os enquadramentos das imagens têm sempre a figura humana no seu centro, a corpo inteiro ou em variações de planos americanos (nesse aspecto Castrée revela uma forte influência de Julie Doucet, se bem que sem o atravancamento gráfico dessa outra artista), e é muito raro que existam momentos de contemplação das paisagens naturais ou urbanas, apesar da importância que os vários espaços, as suas travessias, as mudanças, implicam na narrativa. A própria nota de apresentação do livro fala de “uma exploração trans-canadiana da identidade”, mas essa dimensão não ocupa um lugar de destaque explícito. Uma mudança para um subúrbio, por exemplo, levanta de imediato questões sociais: a imigração, a gentrificação, o racismo, etc., mas apenas testemunhamos a pequena Goglu a desempacotar os seus livros e brinquedos. Tendo em conta a expansão do país, as políticas intricadas de espaço, solo, etnias, idiomas, separatismos, e cujas feridas da história ainda não estão totalmente saradas, não nos deve surpreender que essas questões de memória cultural colectiva estejam “ausentes” em Susceptible, pois não estão (sobretudo sob a forma de livros, revistas e filmes que agora pertencerão a um conjunto nostálgico de referências), mas devemos antes estar atentos em como elas se expressam através da escala familiar ou das experiências pessoais de Goglu (para uma experiência paisagisticamente oposta, veja-se o filme One Week, de Michael McGowan).
O livro é uma experiência tranquila – ou talvez de uma tensão contínua que não chega a explodir, pois não precisa de explodir para semear a sua intensidade. É também uma tradução exacta de alguns dos sentimentos ao se crescer em oposição às ideias que os pais nutrem em relação aos seus filhos, sobretudo quando essas ideias são cozidas na ignorância e no egoísmo, na surdez e indiferença para com as personalidades dos filhos. Não se tratando de um trabalho de testemunho jurídico, não precisamos “do outro lado”. Deve-nos satisfazer esta construção narrativa da pessoa (verdadeira ou ficcional, ou mesclada). Com efeito, independentemente da inscrição de género de Susceptible (na autobiografia, auto-ficção ou ficção total, etc.), não pode haver dúvida de que estamos perante um importante exercício de construção de identidade (que incorpora necessariamente o próprio acto, ou pelo menos a promessa, de criação textual que lemos), recordando-nos uma frase de Michel Foucault, que tanto alertou para a necessidade do desaparecimento do autor para que pudéssemos, enquanto leitores, enfrentarmos os textos de modo directo e sem grilhões preconcebidos. Diz o filósofo que “on écrit pour être autre que ce qu’on est”.