25 de julho de 2013

Três publicações serigrafadas. André Lemos (VVEE).


Comecemos com uma descrição física, material, objectual destes três projectos de André Lemos. Com a nota inicial que nenhum destes traços materiais é inocente na forma como um livro é fruído, sendo as pontas dos dedos, os sentidos do corpo, toda a materialidade do próprio corpo, influenciados, e assim a leitura. Todos estes livros são serigrafados, mas essa característica técnica comum acabou por ser uma circunstância feliz, e não propriamente uma insistência do autor. Tratam-se dos seguintes projectos: Woofer Takeover Jubilee, publicado em 2012 pela plataforma Cotoreich, de Grenoble, Sarilhos, que saiu pela Oficina do Cego [e à qual pertencemos, mas não trabalhámos no projecto em si] no final desse ano, e J. M. W. Turner On Dole, já de 2013, pela Re:Surgo!, de Berlin.
Woofer é uma publicação de tamanho A4, com dois cadernos de dez e oito páginas, agrafadas às capa e contracapa mas com um hiato entre os dois, de forma a criar um “buraco” na espinha, contendo o primeiro caderno um outro caderno, menor, A5, de oito páginas, e o segundo dois complementos: uma lâmina solta de fundo rosa, e uma folha de um desenho fotocopiado cheia de riscos e manchas coloridos a caneta de feltro, como se tivesse sido (e provavelmente foi) uma criança a cobri-lo. No interior da capa ainda vem presa uma fotografia encontrada pelo editor da Cotoreich, Adrien Fregosi, em feiras da ladra locais, cada uma única e irrepetida em cada exemplar. Esta publicação tem uma série de cores, mas a maior parte dos desenhos tem apenas duas cores impressas, havendo um caso com uma gradação de rosa a azul-marinho, outros com efeitos de mancha simples, outros monocromáticos, etc. Apenas reconhecemos um dos desenhos como tendo sido empregues anteriormente, num cartaz.
Turner On Dole é um minúsculo “serizine”, de quatro folhas ligeiramente maiores que o A5, dobradas e agrafadas em dois pontos, com papel creme, e com desenhos impressos a segundas cores, a saber, o castanho-escuro e o cyan.
Sarilhos é um gigantesco livro, com quase 50 cm de altura (por 35), e com 28 páginas, todas elas serigrafadas a preto-e-branco, se bem que algumas das folhas sejam azuladas. Houve uma edição limitada de 10 exemplares que ainda oferecia uma serigrafia extra, um desenho não incluído no interior. Este é talvez o mais “simples” dos três projectos, mas tem uma monumentalidade de que os outros dois nem sequer se aproximam, além de terem sido produzidos pelo próprio artista, no seio do enquadramento da Oficina. É necessário ter em conta que, para os dois projectos “exteriores”, o artista enviou os desenhos em layers, e sem quaisquer instruções/limitações quanto à sua ordem e cores, tendo tido Woofer um maior grau dessa “liberdade editorial”. O pequeno projecto de Berlim simplesmente toma decisões em termos de paginação e ordem, o de Grenoble cria combinações de desenhos por sobreposição, “passagens” radicais entre abordagens mais lineares e com muitos brancos para outras composições mais carregadas, provocando uma “leitura” de maior distúrbio, em contraste com os outros projectos.
De facto, apesar de tudo, apesar da quase caótica nomenclatura e tipologia de abordagens a que temos acesso nestes três gestos, não deixa de haver um ritmo relativamente lento, calmo da parte de André Lemos. Pelas suas características específicas (e por razões editoriais, como vimos), talvez Woofer seja o gesto mais alargado e “ruidoso” – os títulos, apesar dos jogos livres de Lemos, acabam sempre por tombar e encaixar-se num quadro de interpretação quase literal, no fundo. Existem paisagens, naturais e inabitadas, ou ocupadas de uma forma ou outra pela presença humana (ou outra), objectos sem fito claro, criaturas fantásticas e personagens humanas em acções pouco compreensíveis, quadros que colocam lado a lado o orgânico e o inorgânico, uma personagem e um objecto aparentemente sem nexo, e as conhecidas intervenções de material verbal que pode ou não querer ser lido literal, simbólica ou aleatoriamente. Sarilhos, por sua vez, apresenta-se com uma maior unidade temática-formal, concentrando-se em “retratos” de personagens – de novo, ora fantásticas por uma razão ou outra, ora colocadas em situações ininterpretáveis – a corpo inteiro ou em busto. Que galeria é esta? Que relações narrativas ou de outra índole têm umas personagens com as outras? Estes não são seguramente “family portraits”, mas tampouco são desenhos “ao calhas”… A que “sarilhos” aludem? Serão essas mesmas relações? Turner On Dole é paradoxal nos seus conteúdos: se em termos de composição e cromatismo é mais “calmo”, a verdade é que os desenhos são mais nervosos, não sendo aqueles trabalhados a grandes pinceladas de tinta-da-China, mas com mais manchas, salpicos, arrastos de tinta com uma qualquer ferramenta (panos, dedos?), e desenhos possivelmente a caneta ou lápis. Existem muitos gestos, desenhos quase abstractos, “esculturas” de formas heteróclitas.
Conforme o seu ritmo de produção de outros momentos, e pela natureza das publicações, encontramos em cada título uma espécie de colecção de desenhos. Mas “colecção” é um termo que implica três factores que encontram em contacto geométrico, uma tríade, onde um factor funda o outro. 1. Os objectos da colecção, que podem ou devem conter em si mesmos características - fáceis ou subtis de identificar pelo agente - consideradas comuns. 2. O agente da colecção, aquele que selecciona e agrega esses objectos para um espaço comum (imaginário, se for preciso), aquele que identifica as características que operam essa acção. 3. Os conceitos, o olhar, o filtro, a bitola, o princípio de comunidade que emerge dos objectos e do agente. Será o agente que os impõe aos objectos, ou os primeiros que os despertam no Segundo? Tratar-se-á talvez apenas do embate de ambos? E que grau de liberdade terão estas colecções. O livro em torno de Grosz, Family Portraits e Word Games eram mais organizados de modo simples, estes outros parecem auscultar intervalos mais alargando dessa ideia de comunidade.
Mais surpreendente, e que nos poderá fazer aproximar de uma noção mais centralizada em termos discursivos, é um auto-retrato no spread central da publicação Turner On Dole [que aqui mostramos a preto-e-branco], em que Lemos olha de lado, para trás, e uma larga mancha que não permite que se identifique objecto será. É discutível se esta é ou não a primeira vez que há um gesto autobiográfico do artista de uma forma tão clara. Estilisticamente, este desenho em particular lembra-nos Mattoti na sua melhor fase – as linhas esquálidas, finas e de grandes gestos de Estigmas – mas alcançando-se aqui uma estranha acalmia. Não se trata do desenho mais “surpreendente” em si mesmo, o mais fantástico em termos de figuração ou de imaginação, de quadro de referências, mas o seu efeito é algo emocionante. Em Woofer, apresenta-se uma frase curta, que poderia servir de (auto-)epígrafe a todos os projectos: “um gajo endoidecido e revoltado aqui ao lado, pedia esquilos & raposas para a baixa! Eu não peço tanto!”. De facto, este “não peço tanto!” é comovedor. Nas mãos e boca de um artista que tenta criar imagens de uma forma totalmente livre, desligado de quaisquer obstáculos ou espartilhos de género, de uma forma genuína e não de “lip servive” (quantos são os projectos que dizem ser “de difícil categorização” e que “quebram as barreiras” mas da mesma forma que temos rock “independente”, e caem em fórmulas generalistas e de trilhos certeiros de sucesso?), o “não pedir tanto” depois de ter conquistado tanto é desarmadora. Será este um olhar para trás nostálgico? Um balanço de uma longa carreira mais invisível para além de certos círculos, e dizemo-los de forma segura, mais atentos? Ou contemplará ele aquela mancha sem forma por ela ser símbolo do que Lemos sempre tentou auscultar e arrancar da sua sombra, sempre falhando e por isso sempre retornando a ela? Que nome terá essa mancha. Arrisquemos: o informe.
Para Georges Bataille, o termo informe é uma condição na qual as distinções entre figura e fundo, Si e Outro, se dissipam, e deixam de existir formas significantes. Por seu lado, Julia Kristeva desenvolveu uma particular noção de abjecto, também categoria do não-ser, não é sujeito nem é objecto, algo que se encontra antes da separação do sujeito da mãe e depois da morte, em que o corpo volta a ser objecto. Hal Foster, num pequeno mas decisivo ensaio, “Obscene, Abject, Traumatic”, não só expõe estas noções e as enquadra numa nova inflexão da cultura pós-moderna, como identifica, na obra e léxico do artista norte-americano Mike Kelley um terceiro termo que se encontraria entre o informe de Bataille e o abjecto de Kristeva: Lumpen, alemão para “trapo”, criando, e parafraseio, um materialismo baseado em factos psicológicos e sociais, cujo resultado é, e desta vez cito textualmente, “uma arte de coisas, sujeitos e pessoas cheias de grumos e que resistem à formação”.
André Lemos, no seu percurso, cada vez mais se centra no gesto em si, autónomo, indiferente ao seu contexto ou uso, cortado de quaisquer categorias e disciplinas, e não tanto no cumprimento do gesto com vista a um qualquer objectivo que não está nele mesmo, mas antes na conquista de um elemento categorizável: uma banda desenhada, uma ilustração, uma série passível de exposição e comercialização/circulação económica-artística. É verdade que trabalha sobretudo, pelo menos nestes três casos trazidos à colação, no interior de veículos múltiplos, edições reproduzidas e cujos objectos partilham da cultura lata do livro (do fanzine ao livro de artista, não se coadunando com nenhum desses pólos de um espectro somente financeiro). Mas essa é como que a necessária, forçosa, condição da sua própria existência e circulação. É uma necessidade de encaixamento numa situação que permita a sua criação e oferta aos espectadores preparados.
Nota: para adquirirem exemplares destes projectos, cliquem nos links das plataformas respectivas. 

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