18 de novembro de 2012

Abstract City. Christoph Niemann (Abrams)

Aquilo que pode ser englobado pela denominação “ilustração” não pode ter, e cada vez terá menos, contornos espartilhados. Ela não tem de se ancorar necessariamente a textos prévios nem tem de obedecer a determinadas regras materiais (que, de resto, nunca foram muito certeiras). Há, porém, gestos que conseguem subverter ainda algumas das ideias que se poderiam firmar para empurrar as fronteiras em direcções novas, mais ou menos misturadas com outras disciplinas e categorias que podem fazer sentido para começar a criar um discurso em torno delas, como por hipótese “o design” ou “a arte”, mas rapidamente esgotam a sua pertinência face às experimentações possíveis. Tais são os gestos de Christoph Niemann. (Mais) 

Um autor não se vê obrigado a manter uma mesma linguagem gráfica – quer corroborada por um pretenso “estilo”, quer por aspectos técnicos, materiais ou de metodologias – sobretudo quando a sua obra se pauta pela pesquisa conceptual, e pela procura de soluções imagéticas que se coadunem o mais possível com a ideia em si. Dessa forma, tudo se lhe apresenta como plataforma conquistável. Niemann é um autor desse calibre, sobretudo nestes “ensaios visuais” (palavras dele) produzidos sem uma obrigatoriedade de preencher uma secção específica de uma publicação (tratando-se de um projecto criado no seio, porém, de um blog afecto ao New York Times), a qual eventualmente obrigaria à manutenção das tais características reconhecíveis. Vejamos os meios empregues pelo autor: desenho, claro, mas nem sempre com os materiais riscadores ou os suportes mais normalizados: há apontamentos a marcador de feltro sobre folhas de Post-its, desenhos feitos a café, inclusive a mancha do fundo do copo, sobre guardanapos, pintura a pincel sobre superfícies opacas, giz sobre ardósia, fitas de papel cruzadas em tapeçaria, construções digitais de pixel art para planear painéis e paredes de azulejos, construções que empregam típicos elementos gráficos de mapas rodoviários e de outros meios de transporte, e bonecos cosidos e bordados, peças de Lego dispostas judiciosamente (alvo de uma colecção própria, com I Lego N. Y.), folhas de plantas colhidas, ou manipuladas ou mesmo recortadas, pequenos pedaços de massa por cozer, pedaços de fios eléctricos compostos, consequentemente dispostos sobre uma superfície e fotografados, e ainda fotografias dos mais diversos objectos (de tesouras a cotão), a que posteriormente se adicionam elementos gráficos para os antropomorfizar.

Os temas que Niemann explora são os mais variados possíveis, quase todos fruto da sua observação quotidiana, ou das suas experiências banais, mas que transformadas por estes filtros deixam de o ser: desde a obsessão dos filhos pela rede nova-iorquina de metropolitano (que deu origem igualmente ao seu “picture book” Subway) ao seu amor pelo café e o ódio por fios e cabos eléctricos, passando por explicações sobre fenómenos físicos do corpo humano sob a influência da gravidade das crianças a conselhos sobre como passar o tempo em longas viagens de avião. Trata-se, portanto, do equivalente gráfico do que se costuma chamar, no mundo da comédia stand-up, de “humor observacional”, se bem que em muitos momentos temperado pela fantasia, o absurdo ou a mais certeira das visões, mesmo que isso lance a uma realidade que não pensaríamos ser descritível de modo lógico (porque é que as meias se separam, porque é que há sempre um pedaço de massa cozida que escapa à limpeza do tacho, a relação proporcional da velocidade de uma criança descer um escorrega e a temperatura do ano). Mas o mais importante a notar, claro está, aliando a descrição de metodologias e destes temas é que uns e outros se encontram em consonância e harmonia perfeita. Que outra forma de criar uma megalomaníaca descrição de um Génesis pessoal senão através da manipulação de massa para cozer? E que melhor forma de criar elogios ao café senão usar os materiais que ele próprio proporciona?

Esta aliança entre a capacidade de observação (ou melhor, de devolução no acto criativo dessas mesmas observações) e a maneira invulgar de criar imagens – pautada por uma minimal execução – irmana Niemann com autores como Paul Cox, Blexbolex, Richard McGuire ou Hervé Tullet. E sobre todos, o sinal de Steinberg. 

Em muitos aspectos, recorda muitos dos mitos, contos ou koan daqueles pintores chineses que demoram anos nos preparativos e, numa só pincelada, desenham o mais sublime dos caranguejos ou galos… Mas desenganem-se aqueles que pensam que esse trabalho reside somente num talento inato incomensurável, ou numa brutal inspiração divina. Aliás, o autor reserva a parte final desta colecção para uma secção totalmente inédita dedicada precisamente à explicação do seu processo de trabalho e o seu dia-a-dia no atelier, revelando como parte da pesquisa, do processo tem necessariamente a ver com “esforço”, “insistência”, “perseverança”, “execução”, “busca de soluções a um problema”, e acima de tudo estar em frente a esse mesmo problema (sob a forma da clássica folha de papel ou ecrã em branco…).

A relação íntima com a cidade de Nova Iorque (e depois as experiências em Berlim) – o tom autobiográfico ilumina muitas das secções, o que complica as noções de série, ilustração, picture book, livro de artista, banda desenhada, etc. enquanto categorias inarticuláveis - é por demais visível, e em grande parte é o que faz o charme desta colecção. É também algo fácil de compreender como sendo o alvo de interesse para a plataforma original, mas onde pode parecer que se tornaria um obstáculo ao entendimento de leitores que não partilhem a mesma experiência, estamos em crer que as linhas gerais das situações que apresentam ora se tornam nítidas por existirem quadros de referências suficientes para quem lê ou vê tanta da cultura popular em circulação no mundo ocidental ora são suficientemente comparáveis com experiências que teremos tecido com as nossas próprias cidades (ou outras) para fruir desta comicidade.


Algumas das séries, como as construções em Lego (muitas vezes ora desarmadamente fácil ou tão-simplesmente uma peça), as folhas transformadas (que passam por trocadilhos espirituosos em inglês, intraduzíveis), o esquema de fitas de papel cruzado sobre Berlim, ou as construções de pixel art/planos para azulejos, alguns dos mapas e alguns dos diagramas em Post-its, obrigam a uma diminuição de velocidade na leitura, para que haja uma adaptação mental aos mapas visuais que se nos apresentam, e após os encaixamentos necessários, finalmente apercebemo-nos da “fórmula” que preside essas criações, desvendando fulgurantemente a acessível inteligência de Niemman, e o seu humor. As suas descobertas de “ovo de Colombo” é o que lhe revelam a capacidade conceptual e executiva, e é curioso notar como certas críticas negativas do seu trabalho partem de um equívoco sobre “pouco trabalho” ou “simplismos”, falhando o entendimento como nem sempre a pirotecnia e o controlo barroco leva às melhores e mais elegantes soluções gráficas (igualmente apanágio daqueles autores apontados acima).

E acima de tudo, Abstract City é uma composição de elegância.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens da internet, com excepção da capa do livro.

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