22 de maio de 2012

O pequeno deus cego. David Soares e Pedro Serpa (Kingpin)

No seu novíssimo livro Compêndio de segredos sombrios e factos arrepiantes, David Soares escreve na introdução que “o conhecimento é infinito, mas os livros não”. Em contraponto, António Barahona, no seu não menos recente Raspar o fundo da gaveta e enfunar uma gávea, no poema “Oração preliminar”, espécie de confissão de arte, escreve estes versos: “por quem estuda e jamais sabe/e só na ignorância é que aprende a virtude”. Estas frases, queira a verdade literária, não são incompatíveis nem nos seus propósitos nem nos seus caminhos. É possível que o conhecimento seja infinito, se ultrapassarmos as limitações do mero conhecimento humano. E apenas num certo tipo de abnegação é que se pode estar seguro de atingir um quinhão de sabedoria, que é saber-se, pelo menos, que se sabe pouco.
Estamos em crer que o tema de O pequeno deus cego é precisamente a dos paradoxos da sabedoria e da ignorância, e dos caminhos que quer um quer outro podem tecer à frente dos passos de um homem ou de uma mulher.
Este pequeno livro revela do conto - no seu sentido de género de modo, e respeitando, mesmo na sua especificidade de banda desenhada, a sua extensão, a sua concentração, o número reduzido de acções, um intervalo temporal restrito e um espaço circunscrito, o número fechado de personagens e até a focalização numa acção “simples”, que é a catábase do jovem Sem-Olhos, protagonista. A “simplicidade” a que aludimos, e o cuidado de a colocar em aspas, dever-se-á ao facto de ser passível de uma breve descrição dos factos. Sem-Olhos, também chamado de Papa-Moscas e Caganita pelas outras personagens com que se cruza, é uma criança do sexo masculino, numa China mistificada, que é obrigada pela mãe a ser uma menina (recordando a menos cruel mas igualmente traumática vida de Lord Fanny, dos The Invisibles) para que siga a tradição da família; um velho ancião, cujo nome só aprendemos no fim, desafia Sem-Olhos a rebelar-se contra essa imposição, permitindo-lhe que enfrente o dragão que o havia castrado e, dessa forma, poder reconquistar o seu próprio alvedrio e destino. Para esse efeito, o ancião “empresta-lhe” um panda, que serve aqui o propósito de animal totémico, familiar ou psicopompo.
Não deixa de ser estranha a opção dos autores em fazer representar uma China que mais parece ser feita de elementos estanques e comutáveis retirados de uma miríade de fontes, inclusive populares, em vez de  uma construção contextualizada (aspecto em que as obras de Soares são cuidadosas). Uma mera descrição quase parece caricata: um panda, um dragão (chinês), os pés torturados, algumas indicações textuais a bodhisavttas específicos, o velho sábio… Isto aliado a rostos que não procuram de forma alguma imitar o fenótipo asiático, mas sim apresentando personagens com rosto ocidental. Erro? Limitação do aspecto visual? Deliberada transformação? Eis o que pensamos: quando lemos um livro, sem acesso a uma imagem específica, ainda livre de qualquer tradução imagética, é muito comum que se façam projecções utilizando-se imagens familiares: a utilização do nosso próprio rosto no protagonista é talvez o mecanismo cognitivo mais básico e corriqueiro. Poderíamos entender então que O pequeno deus cego é um relato curto, narrado por uma voz descarnada e pedagógica, e que a faixa visual é uma tradução possível e que aponta à possibilidade alegórica de lê-lo como “aplicável” fora do seu imediato contexto localizado. Quando o venerável ancião regressa, no fim da história, encontra-se transmutado num senhor ocidental, apessoado, o que não nos deixa de fazer imaginá-lo como um possível comentário de substituição de um sistema cultural ancião e tradicional por novos valores “ocidentalizados”, e todas as dicotomias que isso implica. No entanto, ele finalmente apresenta-se como “P’an Ku”, tomando o nome do “senhor dos destinos” - isto é, o Imperador de Jade, o progenitor celeste, formador do universo e da cosmogonia chinesa -, e apregoando uma superação das paixões.
A condição de Sem-Olhos - onde eles deveram existir só se encontra uma superfície suave de pele - não é uma impossibilidade genética, ainda que a sua deformação se apresente de um modo simétrico e, até se poderia dizer, belo. Em nenhum momento é demonstrado que ele possua qualquer tipo de capacidades perceptivas que ultrapassem essa condição; bem pelo contrário, e apesar de pequenos momentos que nos podem deixar em dúvida, apresenta-se como uma criança simples, normal, mas limitada quer por essa condição quer pelas imposições cruéis da mãe (e que passam pela deformação dos pés, que é algo objectificada e descontextualizada nesta narrativa, servindo antes como apontamento de condição). Essa criança, com a excepção dessa sua condição, normal, quer, como os outros humanos, sentir as paixões e as curiosidades que lhe pertencem. Chorar, por exemplo, é repetidamente desejado. O que a mãe impede, o ancião insiste para que procure. E o desafio está então em descer à caverna e enfrentar o dragão Wang, o Castrador, se bem que não haja um objectivo claro, digamos um ganho, da parte de Sem-Olhos, mas antes uma suspeita de manipulação da parte do ancião.
Como havíamos escrito noutro lugar, os monstros de David Soares seguem sempre – quer na obra de banda desenhada quer na literária - um mesmo pressuposto, um desígnio comum: servem sempre um sentido de justiça (não de moral, atenção, e muito menos de moralidade humana, apesar do género do conto parecer obrigar a uma concentração temática pedagógica) que ultrapassa, preside e impera sobre e fora da esfera das personagens humanas desses mundos diegéticos. São como que um sinal breve, possível de ser perceptível, de uma sublimidade transcendente e incompreensível e, claro está, aterradora. De Cerasta à Salta-Pocinhas, estes monstros são como que um reflexo distorcido e supre-humano: é como se o rosto das personagens humanas pudesse fazer contraponto ao dessas criaturas, se bem que o delas seja muito maior, não apenas em escala como na própria natureza, como se fossem apenas a parte visível, sensível, perceptível, como dizíamos, de algo muito mais além. O confronto com eles pode significar a morte, mas sobretudo significará uma consciência nova (nem que seja a do próprio leitor).
Não deixa de ser notável, portanto, como o dragão se entrega a um monólogo longo (oito páginas inteiras), não estabelecendo propriamente um diálogo com o protagonista, mas antes com uma ideia do que projecta ele ser. O dragão faz uma leitura de Sem-Olhos e segue-lhe as linhas. A inacção do “Papa-moscas” é precisamente o que faz afugentar o dragão da sua posição de superioridade. É como que um modo de mostrar que a heroicidade não necessita de ser expressa através dos costumeiros combates ou sequer de inteligências esgrimadas. Como diz o próprio ancião, também os que confiam podem ser vistos como seres com coragem, mesmo na cegueira que isso implica. O silêncio, a presença, a “cegueira” podem ser igualmente sendas de iluminação. E como quer o bom koan, essa iluminação, essa lição, não é passível nem de ser verbalizada nem de ser explicável de um modo dito racional.
Este livro, então, não é de forma alguma um Bildungsroman, não apenas pela sua fórmula narrativa curta, mas porque não se exploram as personalidades desdobradas das suas poucas personagens. Encontram-se soluções para criar vincos de vários momentos temporais, e criar ambientes espaciais diferenciados, mas eles são sempre palcos para o desenrolar da acção principal, que é a “travessia” do pequeno protagonista pelo seu teste, cuja emotividade é quase reduzida ao mínimo. É como se o conhecimento e a ignorância não fossem somente uma sombra uma da outra, mas duas superfícies confundíveis, conforme a perspectiva.  Poderíamos mesmo dizer que a história segue aquelas estruturas modelares clássicas à la Joseph Campbell, mas Soares (e Serpa) sabem bem que a imitação dessa estrutura em nada sofre se se explorarem outras dimensões diferenciadoras, e é a “ignorância” do menino e o monólogo do dragão que tornam a acção deste pequeno livro num adágio à lição final.
Sendo este um livro quase num formato de bolso, a composição das páginas segue uma ordem convencional, ou regular (seguindo a tipologia dupla de Peeters e Chavanne),  se bem que Serpa (ou o argumento de Soares, usualmente pormenorizado e estruturado) tire partido de forma significativa de splash pages (inclusive a apresentação do grande dragão), ora dramáticas ora de uma pausa no hausto do livro, ou da famosa técnica de quebrar cada tira em três vinhetas com transições apertadas para dar conta de uma evolução de uma expressão, de um gesto subtil, de uma progressão de uma acção, ou de uma “equação” visual. Técnica esta que foi, se não instituída, pelo menos disciplinada e tornada assinatura por Harvey Kurtzman. Pedro Serpa utiliza precisamente a composição, a perspectiva, a relação entre planos, as posições dos corpos, para colmatar uma certa qualidade de empedernido da expressividade dos rostos, e também corpos, das suas personagens, muitas vezes reduzidas a traços mínimos e pouco avolumados (recordando Hergé, é certo, mas sobretudo Julian Opie). No entanto, é a concentração da narrativa, da arte, e até mesmo do objecto - cuja responsabilidade passa pelas mãos do editor Mário Freitas, que tem mostrado a vontade de uma diversidade calma e sustentada no seu projecto editorial - que torna O pequeno deus cego numa lição breve, mas que exige uma interrogação pessoal.
Adenda: David Soares fez um comentário na sua página do Facebook, que passo a citar: "O Pedro diz que o tema central do livro é o Conhecimento e envereda por essa via para analisá-lo... Ora, o tema central de "O Pequeno Deus Cego" relaciona-se com o conhecimento, sim, mas é outro: o Crescimento - o crescimento através da Iniciação (crescer das Trevas para a Luz). Não quero desvirtuar a leitura que o Pedro fez, somente esclarecer, enquanto autor, qual é o tema central do livro - que, claro, permitirá sempre mais que uma leitura.". Uma vez que acreditamos (piamente) que não se deve jamais entrevistar o autor a propósito dos significados de um livro ("o que é que quis dizer com isto?"), é sempre saudável ainda assim entregar-nos a discussões com os mesmos. É verdade que o crescimento é patente em O pequeno deus cego, mas ainda assim ele parece-nos ser feito a preço alto. Seja como for, isto poderá ser uma demonstração de que a aparente simplicidade do livro só o é desse modo, aparente. 

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