15 de abril de 2012

Não fui eu/Bátima. André Valente (edição do autor)

André Valente é um artista brasileiro que se desdobra em vários capítulos das artes gráficas, da ilustração à banda desenhada, e não nos parece que queira ficar associado nem apenas a um género, ou apenas a um estilo ou apenas a uma vontade de criar. Criando para várias antologias e os seus próprios blog e site, Valente parece abraçar as circunstâncias do seu humor e vontade do momento para responder aos desafios a que se propõe. É o que se depreende das histórias encontradas naquelas plataformas digitais, no seu incrível projecto de marcar vários dos filmes da sua vida com uma imagem icónica - e Valente não se escuda em escolhas seguras, bebendo tanto da nostalgia infantil e adolescente fascinada à mais ponderada consideração adulta -, bebendo das mais diversas influências e oferecendo aos seus visitantes as mais díspares das representações, e, agora, nestas duas publicações.

Não fui eu é uma espécie de antologia dos seus próprios trabalhos, mostrando parte dessa diversidade a nível narrativo e gráfico. Vemos uma espécie de biografia diagramática aparentada com o trabalho de Chris Ware, uma história autobiográfica que tenta demonstrar os poderes curativos do repertório dos The Beatles, aliás, De Bitous, em relação às terríveis cólicas do seu jovem filho Augusto, e uma série de outras histórias que misturam, de formas tão estranhas como inéditas, géneros comuns - funny animals, histórias de fadas, tiras humorísticas de jornal, histórias de catástrofes apocalípticas - para os subverter a todos, ora instilando melancolia e tragédia humana no que parecem ser anódinos contos de encantar, ora sublinhando os aspectos ridículos e risíveis do que parecem ser abordagens mais sérias.

Bátima é um mini-comic que cumpre o mesmo papel, mostrando-se uma personagem vestida como um Batman suburbano e patético, trabalhando num restaurante fast food, enquanto “lemos” a carta que escreve aos pais e mostra a fantasia em que vive.

Não somente parece ser este livrinho uma exploração dos desencantos de uma grande parte da humanidade nas sociedades modernas, que acaba por se ver presa a existências banais face aos sonhos que continuam a pautar a fantasia, como ao mesmo tempo um possível e jocoso comentário sobre a personagem a DC e a sua duplicidade entre uma vida fantasiosa e heróica e a chã miséria que subjaz a vida.

Bátima apresenta-se como um pequeno livro de folhas, pretas, em que as letras da “carta” são impressas a branco e numa fonte idêntica à de máquinas de escrever, e os desenhos são compostos por pinceladas de branco-azulado, muito ténue, texturado como se fosse corrector, sobre o qual se desenham linhas finas de caneta para moldar a figura e seus volumes. Os fundos são simples traços mínimos para descrever um espaço e uma paisagem, como se mimassem a distracção que pauta a vida desta personagem miserável. Ou seja, André Valente tira partido de todos os elementos ao dispor de um artista desta disciplina para tornar toda a sua materialidade significativa no sentido global do projecto.

Isso é visível, como dizíamos, em Não fui eu. Apenas a capa (e o interior das mesmas) é impresso a cores, que sendo densas e separadas, tiram partido disso mesmo, imitando alguns dos efeitos da serigrafia. Veja-se a capa e a contracapa, com aqueles sol e lua com um ligeiro aspecto de imbecil (recordando-nos a lua idiota de The Mighty Boosh). As restantes histórias, que podem ir de uma só página a doze, ora se apresentam em estilos altamente estilizados, com as figuras com contornos grossos e apenas apontamentos de tramas para sombras e texturas, como outras figuras trabalhadas de uma forma densa e sombria, algumas das quais em estilos aparentados com produções convencionais de humor, outras de banda desenhada com animais mas com tratamentos do noir ou do circuito alternativo, outras ainda próximas de tendências contemporâneas da ilustração, character design, designer toys, etc.

Um aspecto que parece poder ser aplicado a todas as histórias é o subtítulo de “Uma espinha” (em Portugal seria “Um sinal” ou “Uma borbulha”), que é “(baseado em fatos reais)”. Ora, tendo em conta que a história mostra um pterodáctilo que emerge desse furúnculo, e depois destrói o pessoal do escritório e finalmente dá azo ao fim do mundo, esses “factos reais” tornam-se atreitos somente aos aspectos mais prosaicos da história, o furúnculo na cara de um colega, um relatório trimestral que não se lê, etc. Ao mesmo tempo, e aproveitando a potencialidade do gesto de Bátima que pode servir de comentário para além da própria matéria do livro, é possível que essa seja uma forma de gozo de todos esses subtítulos quando aplicados em romances e filmes. Dessa forma, também poderemos imaginar ecos “baseados em factos reais” em todas as histórias presentes em Não fui eu, por mais fantasiosas ou absurdas que elas nos pareçam ser - relações amorosas terminadas, solidão, ensimesmamentos patéticos, a atracção através do conflito, etc. E, de resto, como é que podemos saber quais os factos reais que serviram de base? Como é que saberemos onde se encontra a fronteira entre essa base e a restante produção? E mesmo que saibamos quer uma coisa quer outra, em que é que isso ajuda a interpretar e apreciar a história lida e vista? É como se André Valente quisesse dizer que todas e qualquer história deve ser apreciada nela mesma, nos seus contornos e repercussões, a não com a carga de expectativas que possam vir de algo anterior.

Leia-se, então.
Nota final: agradecimentos ao autor, pelo envio das suas publicações. Valeu!

3 comentários:

André Valente disse...

Obrigado pelo tempo e pela atenção, Pedro! Eu mesmo só percebi a influência do Mighty Boosh agora :)

Anónimo disse...

Os meus parabéns ao Pedro Moura, pela atenção que dás aos objectos artísticos publicados tanto pelas editoras profissionais como aqueles que são auto-editados. Infelizmente é uma prática rara tanto no Brasil como em Portugal, onde a maior parte dos críticos apenas crítica o que as editoras lhes servem à mesa. No resto do tempo, lamentam-se com a falta de projectos nacionais.

Golias

Pedro Moura disse...

André, não tens nada de agradecer. Não podia adivinhar se a referência a "Mighty Boosh" era directa ou não, mas havia um ar nos rostos que me lembrou disso. Mas também poderia ter falado do papel da lua enquanto símbolo da ilustração, da caricatura e da arte do desenho na passagem do século XIX para o XX, e tudo o que implicava de "lunático". Parabéns!
Caro Golias, não sei se é brasileiro ou português, mas a sua última frase, sobre o lamento sobre "falta de projectos nacionais" é muito real em Portugal. Normalmente isso acontece quando se desdobram em elogios de projectos comerciais que ora são medíocres ora mesmo abjectos, mas como são "nacionais" e "numa editora de prestígio", as hossanas não cessam, embrulhadas na cegueira do que se vai passando noutros lados...
Abraços,
Pedro