5 de março de 2012

R. Crumb. Jean-Paul Gabilliet (Presses Universitaires de Bordeaux)

Por incrível que pareça, a publicidade deste pequeno livro está correcta: é de facto a primeira biografia de Robert Crumb, se entendermos por esse termo uma monografia devotada exclusivamente à construção de um texto contínuo, integrado, com puxadas à história e à realidade social, económica e cultural que circundam a vida de um indivíduo. É esse grau de integração destas matérias que o distinguem de outros livros sobre o artista norte-americano, inclusive um livro francês de M. Alessandrini de 1975. Crumb é possivelmente um dos autores com mais livros dedicados à sua obra e vida, tendo sido aquele criado com Poplaski um deles. Mas onde esse revelava da autobiografia, no seu sentido mais clássico, este volume é uma visão externa, distante, e por isso, mais conducente a uma contextualização ponderada. O livro tem apenas uma mão-cheia de ilustrações e fotografias, a preto-e-branco, mas sendo um livro de bolso, o seu objectivo não é, de forma alguma, tornar-se mais um coffee table book cheio de imagens, coladas mais ou menos com uma sequência descritiva, o que faz um pacote atraente mas uma discursividade mais débil e inconsequente. Com as ressalvas da qualidade do trabalho de Millidge, este é um projecto diferente de Alan Moore. Storyteller. É um livro para ler.
Sendo professor de “História e Civilização Americanas”, Jean-Paul Gabilliet, autor de um fundamental e interdisciplinar Des comics et des hommes: histoire culturelle des comic books aux États-Unis, encontra-se munido de vários conhecimentos e perspectivas que explicitam a importância do ambiente (a sua descrição da San Francisco da época é particularmente notável) ou de produtos culturais, quer oriundos da cultura popular e comercial quer de círculos mais restritos, seja das elites seja das várias boémias históricas daquele país (do bop aos beat, dos hippies ao underground). O seu texto é assim marcado por breves notas ou excursos que moldam o percurso de Crumb num tecido sócio-cultural vasto e complexo. Repare-se de novo na palavra-chave do título da obra anterior: “história cultural”. De certa forma, é o que está em jogo neste livro.
Organizado, como é de prever, de acordo com uma ordem cronológica, acompanhamos os primeiros passos de Crumb no que seria o seu meio predilecto através da criação de pequenos e caseiros comic books de um só exemplar, criados por instares do seu irmão mais velho, Charles Crumb, que abandonaria mais tarde essa disciplina pela das artes, numa vida conturbada e mais trágica do que Robert, até aos seus primeiros trabalhos alimentares, as primeiras bandas desenhadas publicadas e os primeiros passos de estrelato. São abordadas as suas relações pessoais, do primeiro casamento à sua vida mais pacata (?) com Aline Kominsky e agora o seu papel de avô. Em nenhuma das informações se procura um voyeurismo barato, nem caminhos para o biografismo - utilizando informações sobre a vida passadas por psicanálise apressada e fechando a interpretação da obra -, mas antes uma consolidação social o mais balizada possível de um dos mais influentes - e canonizados - autores da banda desenhada norte-americana da segunda metade do século XX, influência que atravessará géneros, gerações, países, estilos e humores. E ódios, é preciso não esquecê-lo.
Alguns leitores estarão familiarizados com o refrão das Le Tigre na canção “What’s Yr Take on Cassavetes”: “Mysoginist! Genius!”. Em muitos aspectos, também são essas as duas grandes portas de entrada na obra/vida de Crumb. Por um lado, a consideração de que ele é responsável pela fundação de uma atitude no interior de um meio que iria libertá-lo dos espartilhos comerciais, estilísticos e morais de que padecera até então (se bem que seja necessário considerar que o próprio Crumb também seria influenciado pelos seus colegas imediatos nalguns dos seus passos, como S. Clay Wilson ou Rory Hayes, sobretudo na “abertura do id”). Ainda que se deva ter em conta que essa libertação passa pela mimese total dos objectos em si: “a sua dimensão satírica salta aos olhos logo na capa, por ela reutiliza, subvertendo-os, os elementos da maqueta típica dos comic books do grande público” (pg. 65), desde a tarja do título ao tipo de letras, das cores garridas aos falsos anúncios, de um falso “Comics Code” aos géneros no interior. A “forma familiar” serve para ocultar o “conteúdo explosivo”. Mas o aspecto mais importante desta descrição é que a obra de Crumb é resultado do cadinho da banda desenhada e não de outras disciplinas, como as das artes contemporâneas, académicas e intelectualizadas, apesar dele ter aí hoje um papel a desempenhar, uma presença inapagável na economia de mercado das artes.
O seu papel enquanto autor, companheiro, amigo e colega de trabalho de todo um grupo alargado de artistas importantes da banda desenhada norte-americana - de Harvey Kurtzman a Harvey Pekar, de Spain a art spiegelman, de Aline Kominsky a Clay Wilson - torna-o numa espécie de eixo possível desse mesmo universo de referências, de denominador de uma possível narrativização histórica desse meio. Mais, enquanto editor da Weirdo (início dos anos 1980), pode-se dizer que a “descoberta” ou “divulgação” de Peter Bagge, Kaz, Drew Friedman, Phoebe Gloeckner, Julie Doucet, Dori Seda, entre outros, já para não falar da tentativa de reabilitar a “fotonovela”, de resto, algo experimentado por Kurtzman na Help! e por muitos autores franceses da década de 1970 e 1980...
Por outro lado, porém, está o problema de que a sua suposta libertação psicológica era simplesmente uma forma de explorar sem pejo e limites os seus próprios preconceitos, aliando-se ao seu machismo uma outra questão bicuda, ainda por resolver, das representações racistas, sobretudo dos negros. A pergunta é sempre: empregues irónica e desconstrutivamente ou revelando algo de mais real da personalidade de Crumb? No que nos concerne, a interpretação dessas imagens deve ser feita contextualmente, considerando-se os mecanismos narrativos em que são empregues e quais os fins desse gesto. Se é verdade que Devil Girl e Angelfood McSpade parecem ser pura e simplesmente caricaturas obscenas e vis, elas são feitas no interior de histórias que pretendem desmontar precisamente todo esse conjunto de expectativas, papéis sociais e mecanismos de representação tradicionais típicos, ou pelo menos aceites institucionalmente, da cultura norte-americana que Crumb (e os seus companheiros) pretendem desmontar. Uma espécie de trabalho psicanalítico no papel: como escreve Gabilliet, Robert Crumb “é o único dos três [irmãos] que soube canalizar as suas nevroses numa forma positiva e, por fim, de encontrar uma forma de saúde na sua arte” (pg. 167). Mas é preciso dar conta do debate transversal que isso permite, pois como escreve Robert Stanley Martin, “apesar de todo o seu brilhantismo enquanto artista gráfico, não é um satírico conseguido, pelo menos no que diz respeito a questões raciais. Ele tem talento para o humor, mas falta-lhe o emprenho para que o possa desenvolver em algo mais profundo”. Será curioso estudar essas representações em Crumb em contraste - ou complementaridade, melhor dizendo - com as de Hergé, em Tintin no Congo.
Por contraste, se considerarmos as peças “documentais” de Crumb, sobre cantores de blues, algumas adaptações literárias e o monumental Génesis, encontraremos uma forma mais realista e moldada de representar a profunda e singular humanidade de cada figura (se bem que aberta igualmente a desmontagens críticas das opções de Crumb).
Os problemas que Crumb enfrenta são muitas vezes extremos, como os vários casos que o opuseram a feministas como Trina Robbins, por exemplo, ou a acusação de “pedofilia” que o levou a declinar um convite à Austrália. É necessário que se seja crítico em relação à política de representação a que Crumb se entrega, obviamente, e não simplesmente aceitar “qualquer coisa” do “grande génio”, mas as mais das vezes ocorre uma descontextualização absoluta que torna o seu trabalho mais negativo do que verdadeiramente é, esquecendo-se que haverá outros círculos de produção mais insidiosos dos princípios de que ele é acusado. Uma sua história da Hup no. 2 (cujo número proclamava ser uma “All Escapist Sex Fantasy Issue!”), “Mighty Power Fems versus the Horrible Homunculi”, por exemplo, é mais uma desbragada desmontagem da cultura que circundava Crumb - a história é de 1987 mas, incrivelmente, parece ser uma paródia da série pornográfica Karate Girl, que seria publicada pela Eros (Fantagraphics) em 1992 (e até seria possível repensar aquela história “Servants of the Tomb” que havíamos discutido aqui) - do que a fantasia que de facto parece ser.
Dito isto, Crumb não pode escapar à sua inscrição num fundo de misoginia presente em quase toda a banda desenhada underground do final dos anos 1960, cuja resposta se formaria com a fundação da Tits & Clits, de Joyce Farmer, e mais tarde Wimmen’s Comix da editora e artista Lee Marrs. Simplesmente aceitar como paródia e livre de aspectos negativos a representação de violações, abusos, objectificações, etc. - e é violência “aparente” ou “explícita”? -, não é um bom princípio. No entanto, e por mera hipótese (manca) de comparação, digamos que a misoginia de Antichrist de Lars Von Trier é bem menos grave e mais inteligente do que aquela veiculada em Velozes e Furiosos, Louca por Compras, ou as Bond Girls…
Apesar de ser uma biografia, Gabilliet não se coíbe de ir apresentando argumentos que ajudam a contextualizar a ancorar o posicionamento de Crumb, explicitando os gestos. “A sátira que ele pratica e na qual se reconhece ataca os conformistas em todas as suas formas, sejam estas a da classe média cega pelo consumismo (à imagem dos seus pais), sejam as dos hippies dogmáticos pregadores da iluminação espiritual e/ou da revolução política ou, pior ainda, o conformismo dos falsos apóstolos da emancipação individual ao serviço de uma indústria cultural que enriquece através da venda de valores falsamente revolucionários” (pg. 99). A última oração diz respeito a a Ralph Bakshi, que Crumb vê como um exploiter, mas também Hugh Hefner, da Playboy. Num encontro com um guru, Swami Satchidananda, em 1971, em que um grupo restrito colocava perguntas sobre o sentido da vida, Crumb perguntou qual era a capital do Nebraska… (pg. 101).
Ao longo da leitura aprendemos que apanhou uma pedrada de LSD que durou cerca de cinco meses. Que o seu primeiro livro (mas publicado mais tarde), Big Yum Yum Book, foi uma prenda para a primeira mulher, Dana Morgan. Que a primeira exposição foi mesmo antes da sua fama, em 1966. Que o nome “Fritz”, da sua personagem mais famosa, foi dada pelo irmão mais velho. Que a capa de Cheap Thrills de Janis Joplin era para ser a contracapa. Que muito provavelmente é ele o primeiro artista da banda desenhada a ser citado de uma maneira sustenta, série a não irónica por um autor das artes contemporâneas da sua época, com Meatball Curtain (For R. Crumb) de Övynd Fahlström [ver imagem], assim como a ser parte integrante de uma exposição séria que inclui a banda desenhada como uma das disciplinas possíveis (Human Concern/Personal Torment: the Grotesque in American Art, Whitney New York, 1969). Que o horroroso Harry and the Hendersons é possivelmente baseado indirectamente em “Whiteman meets Bigfoot” (suas adaptações teatrais e tratamento em argumento abortado por Zwigoff). Que ganhou, sem o pretender, muito dinheiro com os casos de abuso de reprodução do seu famoso desenho Keep On Trukin’… mas logo o perdendo a seguir. Que se recusou a trabalhar para os Rolling Stones, para a Playboy (uma das revistas que melhor pagava na época) e a apresentar um dos Saturday Night Live pela simples, mas fortíssima, razão, da liberdade criativa. Ou porque não gostava de quem lhe pedia o trabalho.
No entanto, algo que não é paradoxal mas demonstrativo do seu modo de entrega à sua própria arte, apesar de Crumb, “apenas aceitar ser desenhador mercenário para amigos ou projectos próximos das suas próprias convicções” (projectos ecológicos, de resistência ao desenvolvimento urbano, agrícola ou comercial industrializado que leve ao fim das especificidades locais culturais, etc.), ele pode até responder a todas essas encomendas “sem entusiasmo mas sempre com a mesma mestria gráfica” (pgs. 133, 132). O que explicará (parcialmente) a mais recente polémica com uma capa rejeitada para a New Yorker, e consequente recusa de Crumb de voltar a trabalhar para eles.
Estas são algumas das anedotas que vão compondo aquilo que aprendemos sobre Crumb nesta biografia, e que nos ajudam a compor a personalidade - se isso é possível - e daí a compreendermos ou melhorarmos a interpretação do seu trabalho, sem isolar cada uma das suas obras num qualquer princípio. Situações famosas como o estatuto legal de Keep On Trukin’… ou os pormenores de produção da versão animada de Fritz the Cat são também colocadas na biografia com todos os dados disponíveis, mesmo quando as versões dos intervenientes são contraditórias (o autor fala da síndrome de Rashomon). Gabilliet não pretende que se tome o partido de Crumb nesses momentos menos claros, mas que se perceba que a história pode mesmo ser irresolúvel.
Não se entenda que a leitura de R. Crumb é apenas uma forma de aprender sobre a vida do artista. Ainda que Gabilliet não possa, como é natural, comentar e muito menos analisar todas as criações de Crumb, providencia passos em que a sua interpretação se revela extremamente produtiva. Em primeiro lugar, repetimos, pela contextualização específica da obra a analisar - Quando foi produzida? Onde? A que respondia? Qual a sua materialidade imediata? Que distribuição e recepção teve? Como foi apresentada ou seria re-apresentada? Etc. Em segundo, pelo modo como Gabilliet bebe dos tais elementos da história cultural norte-americana para iluminar a peça em questão. Discutivelmente, uma das peças mais magníficas de Crumb é A Short History of America. Criada em 1979 para uma revista intitulada CoEvolution Quarterly, que juntava os esforços contraculturais do movimento hippie às preocupações sobre “o ambiente, a ciência e a política, destinada a leitores intelectuais utópicos”, ela acaba por entrosar a atitude de Crumb e Kominsky quando da sua mudança da cidade para o interior rural, em Winters, na Califórnia. “Não é um regresso à terra dogmático tal como praticado pelos Amish mas antes uma escolha por uma vida no campo, uma existência quotidiana em retiro do consumismo, do tecnologismo e da cultura de massas constitutiva da América contemporânea” (pg. 128). E essa história, originalmente de quatro páginas com 12 vinhetas (as três vinhetas adicionais dos possíveis “futuros” seria apenas elaborada em 1988 num número comemorativo da Whole Earth Review), “presta-se a uma dupla leitura: para além da noção antimodernista que sugere o desaparecimento progressivo da natureza virgem em nome de um ambiente urbano reflectindo a vitória irremediável da sociedade de consumo, as vinhetas 7 [a primeira da página aqui mostrada] e 12 encena a nostalgia que o próprio Crumb sente em relação à América da primeira metade do século XX, que ele não conheceu, mas que aspira desde a adolescência em reencontrar indefinidamente através da sua música, dos seus objectos, da sua autenticidade” (pp. 128-129).
Nota: agradecimentos ao autor, pelo envio do livro.

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