30 de março de 2012

Classics and Comics. George Kovacs e C. W. Marshall, eds. (Oxford University Press)

De uma forma análoga aos estudos de Ben Saunders e Jason Tondro, este volume é constituído igualmente pela aproximação de dois campos de estudos, neste caso, os estudos clássicos, isto é, sobretudo a literatura mas também outra produção cultural associada ao locus do “antigo Mediterrâneo”, e a banda desenhada (há, portanto, uma claríssima inscrição no campo ocidental, mas o estudo de N. Theisen sobre uma obra de Tezuka demonstra os limites e as possibilidades da sua aplicabilidade noutros contextos culturais). Como explicam os editores do livro, e muitos dos seus críticos (sobretudo presentes em revistas e circuitos associados à primeira área, curiosamente), estes estudos estão ligados à Teoria da Recepção, ela mesmo uma área em franca expansão, e que engloba as transformações sociais e culturais permitidas pela cultura contemporânea, sobretudo popular. Se o cinema nas suas adaptações de temas ou textos clássicos é já objecto de muitos estudos, a atenção para com a banda desenhada não é só expectável como necessária, dado o grau da sua produção. “[Um] dos fins fundamentais da (…) investigação comparatista dos clássicos e do cinema é o de questionar as definições convencionais de ‘clássico’ e de ‘classicismo’” (pg. 9; uma citação de Maria Wyke, apud Benjamin Stevens). Além do mais, os próprios classicistas estão “constantemente a reler e reinterpretar os seus artefactos de acordo com novas metodologias, que vão evoluindo” (6), empregando aquelas mais tradicionais da “filologia, da historiografia, da filosofia e da arqueologia” para, também, “compreender a banda desenhada e os clássicos de novas formas significantes” (5). Não se trata, portanto, somente de uma aplicação de uma metodologia ou de saberes para identificar temas ou elementos na banda desenhada, mas antes um verdadeiro trabalho de “intersecção. Por vezes, a compreensão de uma banda desenhada pode providenciar uma mais profunda compreensão da antiguidade, revertendo a direcção esperada do processo de recepção” (pg. xi). Esta última afirmação ganha uma prova incrível no estudo de Giden Nisbet, que abordaremos à frente.
Apesar de estarem intimamente relacionados com Estudos Clássicos propriamente ditos (com uma excepção, todos os autores são de Estudos Antigos, Latim, Grego, ou áreas correlativas, e a excepção é Eric Shanower, autor de Age of Bronze), estes textos saíram dos trabalhos apresentados numa conferência especial para não-especialistas (“outreach”) proporcionada pela American Philological Association de Chicago, em 2008. Esta colecção é de facto excelente, por várias razões. A primeira parecerá, da nossa parte, algo como um argumentum ad hominem, apelando para a autoridade de filologistas encartados, mas a verdade é que essa disciplina treina usualmente os seus estudantes a um rigor férreo em toda uma série de aspectos que os torna mais impermeáveis a discursos impressionistas ou que flutuem entre várias disciplinas na procura da construção dos seus discursos, como outros sectores das humanidades e da crítica o fazem (da qual não escapamos, afirme-se). Aliado a esse rigor - demonstrado pelos instrumentos utilizados, que tanto podem tocar a papirologia como a gramática do grego clássico, como os conhecimentos do contexto sócio-cultural de épocas precisas - está a boa-fé na discussão dos objectos de estudo e/ou de comparação que são constituídos pelos textos de banda desenhada. Estas análises revelam como que uma boa vontade, um princípio que leva os académicos a libertarem de forma inteligente e ponderada as interpretações possíveis, e sempre de um modo positivo, desses mesmos textos. Em vez de encontrarmos uma soberba da parte destes investigadores (e classicistas, para mais!) em relação a estes outros textos, de uma cultura contemporânea, popular, ou ainda menos considerada, encontramos uma genuína preocupação em se compreender que tipo de trânsito conceptual é possível estabelecer.
É verdade que a escolha é igualmente judiciosa, considerando preferencialmente textos criados por escritores (há, como é de esperar, uma selecção ditada em primeiro lugar pela narrativa, ainda que a dimensão visual jamais seja descurada) mais capazes de gerir toda uma série de referências, de níveis de complexidade emotiva e conceptual, mesmo no interior na economia da banda desenhada mainstream. Por exemplo, num ensaio sobre o papel das Fúrias, ou Euménides, ou Erínias, no universo ficcional da DC Comics, por um dos editores, C. W. Marshall, contrasta as conquistas de Neil Gaiman (The Sandman: The Kindly Ones) e Greg Rucka (Wonder Woman: The Hiketeia) aos falhanços ou tratamentos mais fracos de Mike Carey (The Sandman Presents: The Furies), apontando mesmo como ferramentas de construção e adição próprias dos mitos aquilo que Gaiman e Rucka fazem: “Onde Sonho [Morpheus, o Sandman] incorpora as possibilidades polivalentes da narrativa (…[e]) as Fúrias têm um único propósito, que é o de parar as histórias” (pg. 93); “Esta história [The Hiketeia] apresenta um desenvolvimento genuíno das Fúrias, o qual, inevitavelmente, tal como acontece no desenvolvimento de qualquer mito, força a uma reapreciação retrospectiva das versões anteriores” (100). Esta última afirmação fará compreender os leitores de super-heróis do modo como se pode estudar a “continuidade” e as “retroactividades” (retcon) como mecanismos de construção narrativa e de megatextos (a expressão é de Marshall, citando outro classicista, Charles Segal) algo aparentado - mas com as devidas distâncias históricas, culturais e, francamente, de impacto no próprio tecido da cultura - com os mitos da Antiguidade.
Isto não significa que apenas se leiam “grandes obras”. A atenção para com a representação de certas figuras mitológicas ou nelas baseadas leva os autores a considerarem, como é de esperar, todas as incidências ao longo da história dos comics books, atravessando títulos e personagens algo obscuros, de vários momentos da história (da Golden Age dos comic books à contemporaneidade) e de quadrantes geográficos (discute-se alguma banda desenhada franco-belga), mas sempre procurando-se uma explicação que lhes sublinhe a pertinência.
Alguns objectos antigos não são apenas citados como fontes ou pontos de comparação, mas muitas vezes estudados com os instrumentos desenvolvidos na banda desenhada, desde o papiro de Hércules à famosa descrição do fabrico do escudo de Aquiles por Homero (Ilíada, XVIII 483-608) passando por toda a sorte de vasos figurados.
Numa aplicação que parece ultrapassar o escopo geográfico das fontes e dos objectos de estudo, Nicholas A. Theisen estuda Apollo’s Song, de Tezuka, demonstrando também a pertinência de um grau adicional de ligações (dos clássicos à banda desenhada, do ocidente à mangá). Apesar de ter algumas generalizações sobre a banda desenhada norte-americana menos conseguidas, a sua atenção para com o texto original e as suas condições de produção, recepção e inscrição cultural levam a noções iluminadoras para além da própria circunstância da obra de Tezuka: “[ela] é um espelho no qual nos podemos ver a nós mesmos e não necessariamente a cultura de onde partiu” (pg. 69), quer dizer, cria-se assim “uma dupla perspectiva no qual reconhecemos como interpretamos um texto e consideramos em suspenso aquelas ligações intertextuais que tão facilmente encontrarão as suas raízes no leitor como no texto em consideração” (70).
Como é de esperar, a maior parte dos textos versa a representação de eventos da antiguidade na banda desenhada, ou adaptações ou aproveitamentos de textos antigos (desde o Ulysses erótico de Lob e Pichard a The Infinite Horizon, de Gerry Duggan e Phil Noto), ou ainda a transposição de certas figuras e/ou personagens (Marte, Hércules, Vénus, etc.). Há ainda alguns outros ensaios mais generalistas e menos focados, mas mesmo aqueles que apresentam apenas uma espécie de arrolamento de representações de figuras mitológicas, ou detectam fontes, ou debatem uma questão de presenças temáticas, despertarão certamente um ponto iluminador qualquer nos leitores.
O artigo que pessoalmente nos mais satisfez nesta colecção é o estudo surpreendente de G. Nisbet - repescado e revisitado de um artigo anterior - e a que aludimos acima. Trata-se de um estudo sobre um famoso papiro, chamado “de Hércules ” (mais propriamente, “Oxyrhynchus Pap. XXII 2331”) e datável de ca. séc. III EC. Este é um documento que se vê repetidamente reproduzido e abordado em histórias gerais da ilustração, ou nas relações entre a imagem e o texto literário (nós mesmos utilizamo-lo em algumas acções). Este documento tem sido sistemática e continuamente apresentado como uma peça sobrevivente de uma suposta tradição de textos ilustrados na Antiguidade clássica, mas as provas disso são - pelo menos, por enquanto, espúrias. Além do mais, como sempre na contínua desconfiança iconoclasta da tradição logocentrista da nossa cultura, toda e qualquer ilustração, como estas, é vista como meramente “secundária”, “complementar”, “embelezadora” do sacrossanto texto (e estes, para serem ilustrados, terão de ser os clássicos canónicos). “O papiro de Hércules acaba por nos dizer mais dos preconceitos dos investigadores modernos do que das práticas de cartooning antigas ou da economia do livro antigo” (40), escreve Nisbet, invertendo neste ensaio a ordem de aplicabilidade da metodologia apontada acima: o seu objecto de análise não é a banda desenhada moderna à luz dos estudos clássicos, mas antes um objecto único e estranho da antiguidade (o papiro) à luz das teorias proporcionadas pelos estudos de banda desenhada. Através de uma cuidadosa leitura filológica do texto aliada a uma observação rigorosa e dedicada às imagens (em vez de as “ver” através do filtro do que é ditado pelo texto), integrado num estudo contextualizador sócio-cultural, físico, e detalhado do papiro, o investigador desperta, pela primeira vez, uma leitura positiva, enriquecedora e provavelmente iluminadora para todo o campo do “texto conjunto” que ele encerra. “Como vemos (…) é possível fazer emergir leituras sofisticadas se o permitirmos, quer dizer, se nos permitirmos a nós mesmos imaginar um público leitor de elite com uma educação literária avançada” (39).
Um outro gesto similar, mas sem a mesma amplitude, profundidade e consequente despertar de noções é um estudo de Emily Fairey sobre a representação dos persas nos vasos pintados gregos (ânforas, crateras, hídrias, etc.) após as Guerras Persas e aquelas de 300, de Frank Miller. A discussão atravessa vários argumentos, mas vale a pena citar a conclusão que contextualiza criticamente, sem com isso ilibar a responsabilidade de Miller nas suas opções controversas, se não mesmo racistas e politicamente conservadoras e pouco inteligentes: “A escolha de Miller em mostrar os persas como maus e corruptos, e [etnicamente] negros baseia-se na construção convencional norte-americana dos vilões [de banda desenhada sobretudo], a qual não possui relativismo e complexidade. Os tropos técnicos da criação da banda desenhada mantêm-se a força motriz principal do tom político desta obra. O ‘reflexo’ de banda desenhada, em que determinadas representações [looks] estão associados ao mal, assim como a trama narrativa e a codificação moral redutora, transforma 300 numa poderosa propaganda, tenha sido ou não esta a intenção, uma vez que a sua imagética não pode ser lida neutralmente, dado o contexto político presente [300 é de 1998]. Portanto, quando se estuda a construção dos persas de Miller, a não-realidade, o formulaico, e a hipérbole são os elementos mais notáveis. Miller pega numa noção simplificada da superioridade cultural grega (e do Ocidente) e transmite-a através de um funil visual, ao passo que os persas decorativos da pintura de vasos [em si mesma uma arte “menor” mas “de massas” e de ampla circulação, integrada numa cultura popular, análise do ensaio], que nunca tiveram uma ligação directa com a literatura [cuja representação era mais negativa, e que Miller seguiu], não cumprem o mesmo papel.” (170). Um outro estudo de Vicent Tommaso também estuda a utilização da Batalha das Termópilas em Sin City: The Big Fat Kill, mas de um modo mais fugidio, parece-nos.
Como também foi já afirmado, a única intervenção não-académica é a de Eric Shanower. Em vez de um texto em prosa, o autor opta, como é de esperar, por uma banda desenhada de 12 páginas explicando o que o levou a dedicar-se ao seu projecto, ainda em curso e que durará anos, de tentar criar a história da Guerra de Tróia mas que “reconcilie todas as versões contraditórias” (195), desde as fontes mais recuadas literárias a artefactos das culturas envolvidas, passando por versões mais tardias, mesmo que ficcionais (incluindo ópera, teatro, cinema, etc.) e, claro está, estudos académicos e apoio de especialistas. Esta obra, Age of Bronze (até à data 31 comics, e 2 volumes e meio), permite a Shanower que, mesmo não ganhando o apodo exacto de académico, o coloca numa posição privilegiada de conhecimento (ele escreve em linear B!), recepção e criação, entre o popular e o erudito. O que o leva a ser convidado para este tipo de certame, com o conforto do que pode debater. Sendo autor a solo, a responsabilidade culturalmente responsável e informada, expressas nas “faixas” narrativa e visual, apenas o torna ainda mais marcante, por contraste a outros projectos com os quais poderia ser comparado (e citados neste livro, saliente-se Jacques Martin, Goscinny e Uderzo, Dufaux e Delaby, com Murena, Enrico Marini, com Les Aigles de Rome). No ensaio que Chiara Sulprizio lhe dedica neste volume, sobretudo sobre o papel do amor e do erotismo na política de narrativização, focalização e caracterização dos eventos em torno do conflito (que ainda não chegou ao calor da batalha), escreve-se o seguinte: “quando se dedica maior consideração quer aos objectivos autorais de Shanower quer à sua abordagem inclusiva de recontar o épico, parece que as suas representações românticas servem para minar muitos dos tropos e convenções orientados para as figuras masculinas, as quais ditam como é que a sexualidade e a violência se devem representar na banda desenhada ["comic books and graphic novels"]”, levando assim “a colocar o eros num plano principal como uma força que é tão forte e influente na vida humana como a própria guerra. Nesta Tróia, o amor pode ainda atiçar as chamas da guerra, mas também as pode apagar e ultrapassá-las” (214).
No entanto, por esta mesma “mítica totalidade” (a expressão é de George Kovacs) de Age of Bronze, de um autor que pouco deve ao mainstream norte-americano nas suas opções criativas (foi editado pela Image e trabalha esporadicamente para a indústria), não se compreende a necessidade da autora, no fecho do seu ensaio, apresentá-la como “algo que vai muito mais além do domínio do comic mediado de super-heróis” (219). Não é que esteja errado. É que simplesmente não parece interessar mais ter que estar à defesa, e ter que recorrer a esses outros modelos - por mais visíveis que pareçam ser - para justificar a força e qualidade estética de uma obra como esta. Este tipo de saltos parecem também informar o último ensaio, de Thomas E. Jenkins. Este aborda duas adaptações da Odisseia, a saber, uma de Jacques Lob e Georges Pichard e outra de Franco Navarro e José María Martín Saurí. Ora, se esta segunda versão, Odyssey, foi publicada pela primeira vez em inglês, na Heavy Metal (a versão americana, mas muito transformada, da Métal Hurlant) em 1983, a primeira, Ulysses, começou em 1968 na Linus e concluir-se-ia por 1975, já sob a forma de álbum na Dargaud. Ora, toda a interpretação de Jenkins concentrar-se-á na dimensão erótica, da representação sexual, distribuição dos papéis societais de acordo com os sexos, e ainda da moralidade atribuída ao casamento (recordemo-nos que Ulisses tem muitas aventuras sexuais antes de regressar à sua mulher legítima), mas à luz das políticas e contextos editoriais proporcionadas pela francamente fraca, em termos intelectuais e culturais, Heavy Metal e depois Eurotica. Isto é, para além do claro elo narrativo das fontes, e da proveniência geográfica (autores europeus), o ensaísta subsume estas obras a um outro círculo específico e indiferenciado norte-americano. O problema é que Ulysses, de Lob e Pichard, apesar de concordamos com a leitura que Jenkins faz como uma interpretação machista do poema homérico, poderia ser pensado num contexto de sexualidade desabrida à la Losfeld, que teve contornos muito específicos (e que não desobrigam, atenção, dessa leitura). Mas uma vez que se trata de um volume sobre a teoria da recepção, as condições dessa mesma recepção devem ser tomadas em conta, e é o que se passa nesse caso.
Em termos gerais, este é um volume muito importante sobretudo no que diz respeito à atitude e generosidade destes académicos, mas que se revela também nas interpretações brilhantes de alguns deles.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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