5 de setembro de 2011

Encruzilhada. Marcelo d’Salete (Barba Negra)

Tal como ocorria em NoiteLuz, e era mesmo o seu signo narrativo e plástico, a ideia de enclausuramento está também presente neste livro de originais, cinco contos reunidos sob o título Encruzilhada. Apesar de não existirem quaisquer indícios directos de que as personagens se possam relacionar umas com as outras, para além dos contos, numa qualquer unidade que não a do próprio livro, como a cidade em que vivem, relações invisíveis para nós, pessoais ou profissionais, ou elos por mero acaso, é essa mesma unidade-livro suficiente para que façamos nós uma união entre elas. De certa forma, recorda aquela força centrípeta presente em A Contract with God, de Eisner, o qual, podendo não ser de forma alguma uma influência directa sobre o autor brasileiro, actua como fundo, baixo contínuo, fio vermelho, enfim, Urtext de muitos projectos que se lhe seguiram.
Cada uma das histórias pauta-se pela combinação apertada de um número reduzido de personagens e, na esmagadora maioria delas, há sempre um casal como centro nevrálgico. Em nenhum caso existe equilíbrio (ou “felicidade”) nessas relações. Em muitos dos casos, o leitor não aprenderá nem as razões desses desequilíbrios, nem a sua resolução. Tal como quando viramos a esquina de uma rua, a vida que ela encerra já há muito que se desenrola e continuará depois de dobrarmos a esquina do outro lado, também chegamos tarde demais a estas histórias e saímos delas cedo demais. Ficamos apenas com uma brevíssima e incómoda sensação de que testemunhámos uma tragédia ou a conquista de uma estranha forma de alegria, mas jamais compreenderemos a profundidade psicológica dos seus efeitos para com estas personagens. Isto não significa que o autor “falhe” nessa construção complexa e adulta - as personagens não são simples nem simplistas -; o que ele provoca é uma rapidez e fragmentação do nosso foco sobre elas que conduz a uma sempre constante sensação de angústia.
Informações paratextuais ajudam-nos a situar estas histórias nas ruas de São Paulo, e tudo converge para nos fazer crer que Marcelo d’Salete, mesmo não estando a criar autobiografias propriamente ditas, poderá estar a citar experiências vividas por ele mesmo, nem que sejam enquanto testemunha e habitante dessas ruas. Quem conhece a cidade de São Paulo identificará com maior precisão o modo como o autor a recria nestas páginas, e a partir daí conseguirá decerto moldar por sua vez uma interpretação criativa dessa resposta do autor. Não é o nosso caso, infelizmente. O que podemos entender, contudo, é a forma como o autor selecciona perspectivas fechadas num ponto “fechado” pela cidade. Não existem grandes paisagens urbanas, vistas profundas que lancem os olhos em grandes lonjuras, a não ser que se dirijam aos céus. Quando existem vinhetas a representar as paisagens em que se desenrolam as acções, apenas se chega à próxima rua, interrompida por um outro edifício, ou estamos a olhar somente para becos apertados, as fachadas das lojas e “botecos” da rua em frente, ou perspectivas descentradas que apanham a cornija de um prédio, o canto de um painel de publicidade, o solo interrompido de um prédio que jamais será terminado, o símbolo no topo de um chapitô, os telhados improvisados de zinco de algum casario…
Os interiores não são diferentes, sejam eles domésticos ou comerciais. Os pontos de vista são sempre enviesados, de maneira a nos encerrar e encurtar os movimentos possíveis de dispersão. Esta página dupla, por exemplo, faz-nos recordar as estratégias de Art Spiegelman em Don’t get round much anymore, ainda que o autor norte-americano se interesse por uma forma experimental de empregar esse enclausuramento, e d’Salete o utilize para expandir a ambientação, a moral, as sensações que circundam as suas personagens. O cotejo a essa história de uma página de Spiegelman ainda se torna mais significativa se tivermos em conta os textos. Eles são esparsos, e concentrados em frases simples e curtas, sempre ditas (não há narração externa). E muitas vezes, a frase é dita sem a presença directa da personagem que a diz: ou ligeiramente fora de campo, ou ausente da cena que vemos mesmo. São inúmeras as opções do autor. É como se quisesse rasgar a origem das palavras e elas se pudessem tornar outros fragmentos livres a se unirem com a matéria flutuante que constrói o ambiente do livro, da cidade, das ruas, das casas, das vidas destas personagens.
O prólogo de Marcelo Yuka inicia as suas palavras afirmando “O traço é sujo e poético. (…) repleto de uma escuridão”. De facto, pelas opções figurativas, estilísticas e cromáticas, é difícil ter a certeza se os eventos representados o são durante o dia ou a noite, independentemente das cenas se darem em exteriores, interiores, ou algumas das actividades (compras num supermercado, café numa esplanada, ronda de polícias, trabalho num mecânico) poderem ajudar-nos à decisão. O autor não procura seguir qualquer regra lógica de naturalismo. Claro que poderíamos dizer que d’Salete está na continuidade de uma vetusta tradição do chiaroscuro na banda desenhada, que recua tanto a Caniff como está presente nos nossos tempos em Risso. Mas não é bem o alto contraste que se procura aqui. Não é apenas uma questão de superficialidade dos materiais (também não o é noutros autores, como Canniff, mas suspendamos essa discussão). Se bem que sejam sempre a tinta preta a espalhar-se sobre a superfície branca do papel, chegamos mesmo a ver momentos em que parecem ser as nuvens as que se compõem de tinta contra um céu branco como são as nuvens representadas pelos intervalos que não foram pintados. Ali, um céu imaculadamente branco é interrompido por estrelas pretas (o facto de se tratarem de memórias mescladas de alucinações provocadas pela droga poderão ajudar-nos a compreender a estratégia figurativa/cromática, mas não é suficiente). É como se Marcelo d’Salete, mais do que empregar o seu traço à mera representação das suas personagens e eventos, estivesse preocupado em dar um protagonismo, uma organicidade activa a um conceito abstracto, vago, que una estas histórias, e ganhasse presença plástica no universo de papel através do uso dos pretos, e as densas sombras de criam. Existem pormenores, como o cabelo de uma personagem, em que o preto é composto por algumas pinceladas secas, que recordam nuvens infladas e prestes a chover. As linhas de contornos estão presentes, mas quase como pequenos mapas para nos ajudarem a “ler” as imagens; as sombras dos pretos não respeitam esses contornos, invadem as áreas contíguas, não as preenchem na perfeição, perdem-se e misturam-se. Imaginamos um fundo informe de preto vivo que, por manipulação do autor, se molda nas formas que constroem as histórias.
Na necessidade do rol das histórias e personagens, ei-las: um casal de jovens sem-abrigo procura soluções de sobrevivência, e um polícia que os confronta sente o peso da sua própria vida irresolvida (“Sonhos”); as exigências de uma dependência de droga torna o que poderia ser um breve e simples furto no corte trágico de uma relação (“93079482”); a obsessão de um adolescente por uma prostituta conhece uma curva graças a um pequeno ritual religioso no bairro, para descobrir que afinal se manterá na mesma direcção (“Corrente”, baseado num conto de Kiko Dinucci); duas irmãs tentam vender cópias de DVD na rua para conseguirem atingir um sonho de reencontros, mas as breves violências das ruas serão sempre um obstáculo a um percurso directo (“Brother”); a pressa policial em identificar pela cor os meliantes leva a uma tragédias de enganos, que se cruza, por sua vez, com uma outra tragédia (“Encruzilhada”). E em todas elas, as relações raciais entre brancos e negros é também um tema. Não de forma directa e panfletária, mas presente. Mais uma das formas de pressão no ambiente dos contos de Encruzilhada. Como disse alguém no Brasil (mas que seria aplicável em tantos outros momentos e situações, “quanto mais sobe mais branco fica”).
O que é curioso é que uma obra como Encruzilhada, não sendo, como dissemos, panfletária, acaba por se tornar mais efectiva na resistência que faz a essas pequenas opressões - raciais, económicas, políticas, culturais, ou até mesmo existenciais. Não apresentando soluções, nem ficções inócuas em cujas fantasias se desvendará um desejo que jamais poderá ser cumprido sob o peso da gravidade da realidade, mas antes um sublinhar dessas mesmas angústias sempiternas, talvez ele possa funcionar como antídoto. Como um pequeno mapa para uma encruzilhada.
Nota final: agradecimentos ao autor e à editora, pelo envio do livro.

2 comentários:

Brisa disse...

Gostei muito da sua análise. Um deleite!

felipe dos santos disse...

sugiro a leitura da hq brasileira Cachalote.