18 de setembro de 2011

Cidade Suja. Pepedelrey (El Pep)

De quando em vez, todos sentimos um formigueiro que nos desambienta por completo de certas convenções. Deslizando-nos da educação, do convívio social, dos hábito, ritos ou convenções, do verniz que pauta a cidadania, surge o ímpeto do arroto, do peido, do estalo ou murro nas trombas do próximo, de um redondo e contudente, a um só tempo, “vá à merda!”. É respondendo a essa natureza que surge o punk de Pepedelrey. “Punk” não enquanto género convencionalizado em suficiência, ou no interior de um discurso programático, que pretende fazer o leitor, ou espectador, aperceber-se de outros princípios de convivência. Punk enquanto ímpeto desregulado, embriaguez súbita em si mesma, à margem da inteligência - o que não é sinónimo de estupidez, ou de desinteligência sequer, mas de gesto irreflectido, que nasce na mais profunda e livre das reacções físicas. Punk no seu sentido etimológico mais anterior, para se referir a jovens sem experiência da vida, sem reflexão, com comportamentos vistos - pelo policiamento social normalizador - como “anti-social”. Não porque desejem o último derrube de todo o tecido, mas porque querem terminar com a forma polida como se finge não notar nas manchas e buracos desse mesmo tecido.
Cidade Suja é um livro pequeno, de vinte pranchas, a maioria com apenas duas grandes vinhetas e umas poucas com uma ocupando todo o espaço, tudo desenhado a caneta dando a ideia de que imagens e fundos e letras e figuras saíram todas do mesmo gesto, como se bastasse ter despejado o tinteiro sobre as páginas. Criado no menor tempo possível, Cidade Suja encontra-se como uma tentativa de responder da melhor maneira possível à sua vontade de o criar. Coincidência impossível, claro, mas pelo menos aqui mimada de uma forma quase perfeita. E essa vontade está nos campos do visível e do legível.
Um homem, incomodado por todos os lados, pelas pessoas com que se cruza na cidade, com a merda de cão pelos passeios, os barulhos ensurdecedores e egoístas que não respeitam os seus limites e invadem os nossos, por quem não pára de ler e impor leituras, por telefones que não cessam de trazer desejos que não se podem compreender porque não se partilham, um homem que se isola como uma ilha no centro de arquipélago hostil encontra apenas uma saída na violência extrema, primeiro em forma de fantasia, depois de desejo premente e finalmente como realização terrível.
Será - mesmo no interior desta brevíssima história - que os acontecimentos correspondem à verdade, ao que aconteceu, ou vemos só aquilo que a personagem gostaria de fazer (espelho do que nós sonhamos a cada momento, esfaqueando cada transeunte enquanto caminhamos pela cidade?)? Talvez não interesse. A sujidade da cidade só é lavada com mais sujidade, a do sangue, aquela “verdadeira chuva” que um dia lavará a escória das ruas, como rosnava Travis Bickle.
Pepedelrey não procura, com este livro, reflectir, nem guardar distâncias, das experiências diárias. Bem pelo contrário, é apenas autêntico, directo. O livro encerra princípios machistas, adolescentes, patéticos… não quer ser irónico, nem quer criar uma rábula social, quer apenas constituir-se como bruto gesto catártico. E mais nada.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro

15 de setembro de 2011

CBDPT: novas informações

Esta outra brevíssima informação serve para indicar que já se encontra disponível o programa das conferências a ter lugar nos próximos dias 22 e 23 no IFP, em Lisboa, assim como uma breve apresentação dos dois convidados internacionais e keynote speakers, David Kunzle e Thierry Groensteen. Verifiquem aqui.
A entrada é livre a todos.
Nota: imagem de Pedro Burgos, que será alvo da apresentação de Diniz Conefrey.

13 de setembro de 2011

El arte de volar. Antonio Altarriba e Kim (De Ponent)

O que há numa vida? (terceira resposta)
O voo anunciado no título é duplo, triplo, múltiplo. É duplo, pois é o sonho permanente de liberdade, em relação a tudo o que o circunda, de Antonio Altarriba Lope, pai de Antonio Altarriba, o autor-escritor deste livro, mas também esse sonho finalmente conquistado num voo último vertical, o salto suicida e libertador aos 90 e pouco anos. É triplo, pois além da dimensão do sonho-desejo e do desejo-cumprido, há ainda aquela dimensão do voo permitido no interior da matéria do livro de banda desenhada, a ficção que se desenvolve em torno da vida real, as metáforas visuais que se estruturam em torno das memórias tidas, a fuga permanente da narrativa. É múltiplo, porque a palavra “voo”, pela sua própria natureza cambiante, permitirá que as várias camadas interpretativas dos leitores-espectadores se tornem acessíveis e navegáveis à medida das suas leituras, ou re-leituras, o esforço recompensado pelo acompanhamento da vida deste velho Antonio. (Mais) 

12 de setembro de 2011

Chagall en Russie, 2 vols.. Joann Sfar (Gallimard)

O que há numa vida? (segunda resposta)
Sem querer com isso apontar para uma qualquer fraqueza que se possa depreender, Chagall não encerra grandes surpresas em termos materiais, estilísticos, compositivos, ou até mesmo de alguns aspectos temáticos no interior da contínua obra de Sfar. Voltamos àquela fórmula de paginação regular (2 x 3) - que, como explicara Chavanne, ajudará os autores a concentrarem os seus esforços noutros domínios. Neste caso, uma (pseudo)biografia de Chagall. Ao mesmo tempo, e na relação para com a investigação temática, há duas linhas que se repetem também, cada uma entrosada na outra, ou unidas de uma forma indistrinçável. (Mais) 

10 de setembro de 2011

Acme Novelty Library no. 20. Lint. Chris Ware (Drawn & Quarterly)

O que há numa vida? (primeira resposta)
O 20º volume da ANL dá continuidade à história das personagens de uma “experiência de narrativa pictogramática que junta gelo designada arbitrariamente, como mera conveniência, ‘Rusty Brown’”, como se lê na capa da ANL no. 16, que dera início a este novo projecto. Desde então, com a excepção do no. 18, que reunia alguma das partes de um outro projecto em curso, Building Stories, com este novo volume temos quatro num mesmo formato, oblongo, que retrata as vidas de várias personagens cujo ponto de encontro diegético é uma escola secundária do Midwest, num quase perpétuo Inverno, se não em termos meteorológicos, pelo menos em termos da moral, melancólica como um manto inalienável. (Mais) 

7 de setembro de 2011

Abstraction (1941-1968). Jochen Gerner (L’Association)

Em 20010, a bienal de arte contemporânea Arts: Le Havre elaborou uma exposição cujo denominador comum era a sua associação à banda desenhada. Bande dessinée et art contemporain. La nouvelle scène de l’égalité é o título esperançoso dado ao catálogo, cujos textos e responsabilidades se repartem por Jean-Marc Thévenet (comissário principal), Linda Morren (director artística) e Alain Berland (conselheiro artístico). Esta mostra agregava desde autores de banda desenhada tout court - que poderá ser exposta na sua forma de pranchas originais mas assim “arrancado” do seu objecto de fruição final e total, a própria banda desenhada - como Vaughn-Bode, Brecht Evens, Pauline Fondevilla e François Olislaeger, Joost Swarte, Winshluss, o colectivo Atrabile (independentemente de também criarem outros objectos artísticos, noutros meios) a artistas de várias disciplinas - desenho, pintura, escultura/instalação, fotografia - que bebem da banda desenhada alguns dos seus elementos figurativos ou de estruturação de significado (fragmentação do plano visual, narratividade) - como Hippolyte Hentgen, Wim Delvoye ou Raymond Pettibon. E depois há artistas que de facto trabalham num território em que a separação não é totalmente clara, quer pelos aspectos materiais, quer pelas estratégias de comunicação/divulgação/distribuição, quer ainda por linhas de fuga de investigação que são tão internas às especificidades da banda desenhada como de outras disciplinas, ou melhor, do saber indisciplinado, das artes contemporâneas. Encontraremos aí as pranchas imensas de parede de Franck Scurti, os estranhos objectos multidimensionais de Ruppert e Mulot, as anti-narrativas de Ilan Manouach, os estudos de Olivier Bramanti para Au bout du monde, os muitos objectos saídos do colectivo do Frédéric Magazine. E, também, as “abstracções” de Jochen Gerner.
Este pequeno livro reúne ou converte num texto coeso os pequenos trabalhos que apresentara em Le Havre e dá continuidade a alguns dos projectos do artista, tal como explicado por Christian Rosset num epílogo no livro. Gerner já havia operado esta tarefa de “encobrimento” no seu livro T.N.T. en Amérique (L’Ampoule), em que ao cobrir com tinta negra as páginas de Tintin na América acaba por fazer emergir não apenas reduções-pictogramas das imagens e palavras isoladas, mas acima de tudo sentidos até ali ocultos pela ultra-visibilidade da sua matéria original e “clara”. Gerner passaria a outros projectos relativamente idênticos, mas talvez mais formais, ao operar o mesmo processo sobre capas das revistinhas da editora Impéria, cuja colecção de “pequenos formatos” seguiam linhas similares de design e se dedicavam a banda desenhada de género: Battler Britton, Navy, Buck John ou X-13: tudo é transformado num espesso fundo negro, de onde se destaca o título original nas letras estilizadas e grossas a/com vermelho, e alguns elementos flutuantes que, sob a forma de pictogramas minimais, querem preservar a qualidade da violência que esses títulos encerram. Uma frase, criada por Gerner, poderá funcionar tanto como comentário como forma especular do original. Um outro livro publicado pela L’Association, em edição limitada, colecciona 50 dessas capas, Panorama du feu. É explícita a forma como o autor pretende explorar e criticar a violência inerente a esses trabalhos através da sua reconversão formal.
As páginas de Abstraction (1941-1968) são originalmente de um só título, Navy, mas o número exacto da revista não é identificado [utilizamos aqui uma capa aleatória]. O autor é citado como explicando que utilizou uma história de 1968 que retrata uma batalha de 1941. É essa banda desenhada que ele cobriu totalmente a tinta negra, para “revelar” aquelas formas que aqui emergem (e já delas falaremos). Tudo o resto é mantido, inclusive a paginação (que salta uma página, a da publicidade). Este formato da L’Association reproduz o mesmo tamanho, mas não o aspecto geral: a capa é de um cinzento mortiço (a nosso foto “esverdeou” as cores), as letras brancas, sem nenhum do dramatismo do que se imagina ser o original. A aproximação processual a T.N.T. é quase total.
Este processo, já o foi dito noutras ocasiões, é irmanável ao de outros artistas, como a pintora brasileira Rivane Neuenschwander, o espanhol José Ballesteros, o suíço Niklaus Rüegg e, mais próximo de nós, a artista Cátia Serrão. Ainda poderíamos recordar o trabalho de Tom Phillips, A Humument, e um dos projectos de Jorge Nesbitt. Este exercício poderia continuar, à medida que procurássemos novas e consequentes inflexões na noção processual de “encobrimento”, até ao ponto de termos Baldessari ou os irmãos Chapman no grupo, por exemplo. As afinidades com Neuenschwander, Rüegg e Serrão são maiores pelo objecto “fonte” empregue por todos os artistas, a saber, banda desenhada de pequenas revistas baratas sobre a qual depois se opera uma intervenção plástica transformativa (no caso desses três artistas há uma coincidência maior, por serem revistas da Disney). A afinidade com Serrão, por sua vez, é material, já que ambos os artistas operam essas intervenções directamente sobre o papel dessas revistas, páginas arrancadas e transformadas. Porém, apesar de alguns aspectos processuais, materiais e até figurativos/anti-figurativos poderem ser comuns ou pelo menos comparáveis, mesmo que superficialmente, os efeitos não são idênticos.
Mas há ainda um outro factor. Se T.N.T. en Amérique queria fazer emergir sentidos ocultos, de cariz político e social, na obra de Hergé, e as telas citadas acima ainda querem manter uma aparência expositiva, Abstraction (1941-1968) confessa pelo título, a palavra que contém, um fim mais específico: o da criação da abstracção. De acordo com Gerhard Richter, a pintura, e por extensão, outras artes visuais, utilizam a abstracção como modo de compreensão, de conhecimento, de acesso a todas aquelas realidades que são inacessíveis ao ser humano, e que durante séculos, ou ainda hoje, encontrarão imagens figurativas em conceitos como os céus e o inferno, Deus e o Diabo, etc. Richter afirma (num texto de 1982 para a documenta 7) que “com a pintura abstracta temos a possibilidade de abordar o imperceptível, o incompreensível, porque este representa ‘nada’, e com maior nitidez, com todos os meios da arte”; as pinturas abstractas (e parafraseamos) “ilustram nítida e incompreensivelmente essa realidade inconcebível”. Elas tornam-se, portanto, conclui o artista alemão, “a mais elevada forma de esperança”. Apesar de podermos seguir outra via de interpretação, quiçá mais formal, no plano mais plano do visual/material, ou procurar correspondências e analogias que transformassem a aparente livre linguagem pictórica e cromática como conducente a uma resposta emotiva e cognitiva predeterminada, parece-nos que o que Richter diz propõe duas vantagens: nem se reduz a dizer que o abstracto “não representa nada”, nem fecha os seus sentidos a ideias apriorísticas. Fá-lo mesmo associar-se àquele movimento da mente que Kant discutira, o “jogo livre” da imaginação e do entendimento. Uma tenta conduzir a outra, num incessante movimento de sentido protelado e, por isso, exponenciado. Talvez a esperança seja mesmo a capacidade de tornar infinito esse movimento.
Então, mais um ponto de encontro entre o trabalho de Serrão e de Gerner está nos resultados abstractos ao nível da forma superficial, mas não no veículo que transporta essas mesmas formas (o que não se verifica totalmente nos de Rüegg ou de Neuenschwander), o que altera a sua leitura. Os casos de Cátia Serrão e este projecto em particular de Gerner são muito comparáveis em todos os passos, de facto, excepto o do resultado final, isto é, o “texto” que é ofertado aos leitores/espectadores para fruírem. Estamos aqui a compreender o “resultado” final em duas metades, que não é mais do que uma ficção da nossa parte, um exercício de pensamento que abstractiza ele mesmo os objectos concretos ofertados por cada um dos artistas. No caso da artista portuguesa, o seu trabalho foi até agora apenas exposto, no de Gerner existe agora este pequeno livro que volta a criar uma forma de unidade e um meio passível de leitura, isto é, passa a estar compreendido nas artes do livro, livro de artista se quiserem.
Essa diferença é fulcral. O eixo físico-motor com que abordamos obras numa parede de uma exposição não é o mesmo que se entrega à leitura de um pequeno livro. Numa breve consideração superficial, poderíamos dizer que os frutos abstractos de Serrão e de Gerner são idênticos, mas não são. A menos que venha a surgir uma versão impressa, livresca, dos trabalhos de Serrão, com outros elementos que os cartografem numa certa direcção, eles existem num espaço que flutua à frente dos nossos olhos e convidam-nos a considerá-los como formas livres, jamais subsumidas a qualquer programa de sentido, numa valência muito própria de cores, formas, eixos, brilhos, materialidade.
Ora, Abstraction (1941-1968) pretende agora essa subsunção, esse programa. Afinal de contas, a própria existência de um livro paginado e numerado implica a ideia de uma sequência ordenada que comanda a leitura. Os nossos olhos (e mãos, e corpo) encontra nesse formato um mapa para os nossos mecanismos de apreciação. A existência de um campo (a página) dividido em vinhetas - com poucas excepções de uma imagem ocupando o campo inteiro, temos sempre duas vinhetas idênticas -, a colação entre texto e imagens, e a direcção (sendo um livro, não se coloca a questão da simultaneidade, da plurilegibilidade ou da aleatoriadade da exposição), torna essa experiência mais decidida. Há então uma ideia de progresso que nos obriga a ler as palavras “sobreviventes” (ou inscritas sobre o substrato original?) e as formas resistentes de uma certa maneira, tal como a tarefa de leitura-interpretação de A Humument nos fazia compreender uma narrativa, que no caso da obra de Philips ainda conservava alguma clareza.
Essa subsunção é marcada ainda pela sobrevivência de resquícios de formas naquelas apresentadas por Gerner. Afinal, toda a circunstância é corroborada pela presença de algumas palavras iniciais - “Bateau de guerre du monde”, “bataille”, “secours”, “escadrille de naufrage”, “monstre marin”, “manoeuvre”, “sur le pont”, “heroïque indiscipline“, “aviation”, etc. -, as quais ajudam desde logo a criar uma constelação que oscila numa proximidade familiar: o seu contexto original de guerra nos mares, barcos versus aviões, mar e céu, água e fogo. Assim, “lemos” os círculos como bocas de canhão, algumas manchas e tramas negras interrompendo o pouco branco ora como densas nuvens num céu escuro, ora como reflexos de brilhos nas águas. Sob “monstre marin”, vemos formas que poderiam ser algas sob as águas. Sob “opportunité”, uma aberta no tempo, conducente a um ataque ou defesa? Sob “mort” e “malheurex accident”, os cachos de breves linhas horizontais representará uma interrupção, ou um caminho inflexível? Se seguirmos esses possíveis, mas no fundo indecidíveis e indefiníveis elos, poderíamos pensar que Abstraction estaria na mesma senda que um livro como La Nouvelle Pornographie, de L. Trondheim, esse mesmo um falso livro abstracto. Mais, poderísmos querer pô-lo junto a uma outra obra que, não procurando ser abstracta, procura abstracizar o mais possível no interior da figuração, pelo desvio da presença humana, pelo descentramento, e pela emergência de formas idênticas entre o humano, o orgânico, o autómato, o mineral, enfim, a redução de todas as formas naturais a uma só forma plástica: Nautilus, the Ship, de Murai Toyonabu
Mas Abstraction vai mais longe: parece fintar-nos. Dá-nos pistas de interpretação para logo as sonegar. Não há qualquer lógica interna ou regrada da relação entre as palavras e as formas. As primeiras poderiam ser agregadas em várias categorias: gramaticais (a maior parte são substantivos, mas há também adjectivos, verbos no infinitivo, interjeições), número (a maioria palavras isoladas, mas há também frases autênticas, ou construções complexas, compostas, que tanto podem ser formulaicas - “choc fatal”, “sueurs froides” como misteriosas - “mépris de la mort”, “trou d’air”: serão citações?, cut-ups?, acasos?), forma (itálicos versus redondo), posição (em cima, à esquerda, ou em baixo, etc.). As segundas parecem atravessar todas as tipologias possíveis, de linhas curvas a rectas, contínuas a seccionadas, isoladas ou combinadas, tramas aleatórias ou composições fechadas.
Qual é a lógica? Fará sentido sequer desejar que ela exista? Não será essa obsessão um desfavor em relação ao modo de trabalho de Gerner? Em francês, há uma aliança etimológica entre “desespero”, “désespoir” - o movimento do leitor em busca de um sentido que pudesse encerrar Abstraction (1941-1968) - e “esperança”, “espoir” - aquela que Richter pretende que a arte abstracta nos ajuda a cumprir, aproximando-nos um pouco mais à natureza do inefável. Talvez seja essa oposição, essa guerra, aquela que, presente no livro, seja também ultrapassada.

5 de setembro de 2011

Encruzilhada. Marcelo d’Salete (Barba Negra)

Tal como ocorria em NoiteLuz, e era mesmo o seu signo narrativo e plástico, a ideia de enclausuramento está também presente neste livro de originais, cinco contos reunidos sob o título Encruzilhada. Apesar de não existirem quaisquer indícios directos de que as personagens se possam relacionar umas com as outras, para além dos contos, numa qualquer unidade que não a do próprio livro, como a cidade em que vivem, relações invisíveis para nós, pessoais ou profissionais, ou elos por mero acaso, é essa mesma unidade-livro suficiente para que façamos nós uma união entre elas. De certa forma, recorda aquela força centrípeta presente em A Contract with God, de Eisner, o qual, podendo não ser de forma alguma uma influência directa sobre o autor brasileiro, actua como fundo, baixo contínuo, fio vermelho, enfim, Urtext de muitos projectos que se lhe seguiram.
Cada uma das histórias pauta-se pela combinação apertada de um número reduzido de personagens e, na esmagadora maioria delas, há sempre um casal como centro nevrálgico. Em nenhum caso existe equilíbrio (ou “felicidade”) nessas relações. Em muitos dos casos, o leitor não aprenderá nem as razões desses desequilíbrios, nem a sua resolução. Tal como quando viramos a esquina de uma rua, a vida que ela encerra já há muito que se desenrola e continuará depois de dobrarmos a esquina do outro lado, também chegamos tarde demais a estas histórias e saímos delas cedo demais. Ficamos apenas com uma brevíssima e incómoda sensação de que testemunhámos uma tragédia ou a conquista de uma estranha forma de alegria, mas jamais compreenderemos a profundidade psicológica dos seus efeitos para com estas personagens. Isto não significa que o autor “falhe” nessa construção complexa e adulta - as personagens não são simples nem simplistas -; o que ele provoca é uma rapidez e fragmentação do nosso foco sobre elas que conduz a uma sempre constante sensação de angústia.
Informações paratextuais ajudam-nos a situar estas histórias nas ruas de São Paulo, e tudo converge para nos fazer crer que Marcelo d’Salete, mesmo não estando a criar autobiografias propriamente ditas, poderá estar a citar experiências vividas por ele mesmo, nem que sejam enquanto testemunha e habitante dessas ruas. Quem conhece a cidade de São Paulo identificará com maior precisão o modo como o autor a recria nestas páginas, e a partir daí conseguirá decerto moldar por sua vez uma interpretação criativa dessa resposta do autor. Não é o nosso caso, infelizmente. O que podemos entender, contudo, é a forma como o autor selecciona perspectivas fechadas num ponto “fechado” pela cidade. Não existem grandes paisagens urbanas, vistas profundas que lancem os olhos em grandes lonjuras, a não ser que se dirijam aos céus. Quando existem vinhetas a representar as paisagens em que se desenrolam as acções, apenas se chega à próxima rua, interrompida por um outro edifício, ou estamos a olhar somente para becos apertados, as fachadas das lojas e “botecos” da rua em frente, ou perspectivas descentradas que apanham a cornija de um prédio, o canto de um painel de publicidade, o solo interrompido de um prédio que jamais será terminado, o símbolo no topo de um chapitô, os telhados improvisados de zinco de algum casario…
Os interiores não são diferentes, sejam eles domésticos ou comerciais. Os pontos de vista são sempre enviesados, de maneira a nos encerrar e encurtar os movimentos possíveis de dispersão. Esta página dupla, por exemplo, faz-nos recordar as estratégias de Art Spiegelman em Don’t get round much anymore, ainda que o autor norte-americano se interesse por uma forma experimental de empregar esse enclausuramento, e d’Salete o utilize para expandir a ambientação, a moral, as sensações que circundam as suas personagens. O cotejo a essa história de uma página de Spiegelman ainda se torna mais significativa se tivermos em conta os textos. Eles são esparsos, e concentrados em frases simples e curtas, sempre ditas (não há narração externa). E muitas vezes, a frase é dita sem a presença directa da personagem que a diz: ou ligeiramente fora de campo, ou ausente da cena que vemos mesmo. São inúmeras as opções do autor. É como se quisesse rasgar a origem das palavras e elas se pudessem tornar outros fragmentos livres a se unirem com a matéria flutuante que constrói o ambiente do livro, da cidade, das ruas, das casas, das vidas destas personagens.
O prólogo de Marcelo Yuka inicia as suas palavras afirmando “O traço é sujo e poético. (…) repleto de uma escuridão”. De facto, pelas opções figurativas, estilísticas e cromáticas, é difícil ter a certeza se os eventos representados o são durante o dia ou a noite, independentemente das cenas se darem em exteriores, interiores, ou algumas das actividades (compras num supermercado, café numa esplanada, ronda de polícias, trabalho num mecânico) poderem ajudar-nos à decisão. O autor não procura seguir qualquer regra lógica de naturalismo. Claro que poderíamos dizer que d’Salete está na continuidade de uma vetusta tradição do chiaroscuro na banda desenhada, que recua tanto a Caniff como está presente nos nossos tempos em Risso. Mas não é bem o alto contraste que se procura aqui. Não é apenas uma questão de superficialidade dos materiais (também não o é noutros autores, como Canniff, mas suspendamos essa discussão). Se bem que sejam sempre a tinta preta a espalhar-se sobre a superfície branca do papel, chegamos mesmo a ver momentos em que parecem ser as nuvens as que se compõem de tinta contra um céu branco como são as nuvens representadas pelos intervalos que não foram pintados. Ali, um céu imaculadamente branco é interrompido por estrelas pretas (o facto de se tratarem de memórias mescladas de alucinações provocadas pela droga poderão ajudar-nos a compreender a estratégia figurativa/cromática, mas não é suficiente). É como se Marcelo d’Salete, mais do que empregar o seu traço à mera representação das suas personagens e eventos, estivesse preocupado em dar um protagonismo, uma organicidade activa a um conceito abstracto, vago, que una estas histórias, e ganhasse presença plástica no universo de papel através do uso dos pretos, e as densas sombras de criam. Existem pormenores, como o cabelo de uma personagem, em que o preto é composto por algumas pinceladas secas, que recordam nuvens infladas e prestes a chover. As linhas de contornos estão presentes, mas quase como pequenos mapas para nos ajudarem a “ler” as imagens; as sombras dos pretos não respeitam esses contornos, invadem as áreas contíguas, não as preenchem na perfeição, perdem-se e misturam-se. Imaginamos um fundo informe de preto vivo que, por manipulação do autor, se molda nas formas que constroem as histórias.
Na necessidade do rol das histórias e personagens, ei-las: um casal de jovens sem-abrigo procura soluções de sobrevivência, e um polícia que os confronta sente o peso da sua própria vida irresolvida (“Sonhos”); as exigências de uma dependência de droga torna o que poderia ser um breve e simples furto no corte trágico de uma relação (“93079482”); a obsessão de um adolescente por uma prostituta conhece uma curva graças a um pequeno ritual religioso no bairro, para descobrir que afinal se manterá na mesma direcção (“Corrente”, baseado num conto de Kiko Dinucci); duas irmãs tentam vender cópias de DVD na rua para conseguirem atingir um sonho de reencontros, mas as breves violências das ruas serão sempre um obstáculo a um percurso directo (“Brother”); a pressa policial em identificar pela cor os meliantes leva a uma tragédias de enganos, que se cruza, por sua vez, com uma outra tragédia (“Encruzilhada”). E em todas elas, as relações raciais entre brancos e negros é também um tema. Não de forma directa e panfletária, mas presente. Mais uma das formas de pressão no ambiente dos contos de Encruzilhada. Como disse alguém no Brasil (mas que seria aplicável em tantos outros momentos e situações, “quanto mais sobe mais branco fica”).
O que é curioso é que uma obra como Encruzilhada, não sendo, como dissemos, panfletária, acaba por se tornar mais efectiva na resistência que faz a essas pequenas opressões - raciais, económicas, políticas, culturais, ou até mesmo existenciais. Não apresentando soluções, nem ficções inócuas em cujas fantasias se desvendará um desejo que jamais poderá ser cumprido sob o peso da gravidade da realidade, mas antes um sublinhar dessas mesmas angústias sempiternas, talvez ele possa funcionar como antídoto. Como um pequeno mapa para uma encruzilhada.
Nota final: agradecimentos ao autor e à editora, pelo envio do livro.