24 de julho de 2011

Supergods. Grant Morrison (Spiegel & Grau)

O título completo deste livro é Supergods. What Masked Vigilantes, Miraculous Mutants, and a Sun God from Samallville can Teach Us about Being Human. Com mais de 400 páginas de um texto denso mas perfeitamente legível de uma assentada, escrita por um dos mais importantes escritores de banda desenhada mainstream (e, discutivelmente, para além desse círculo) contemporânea, este é um tomo que poderá seriamente tornar-se numa espécie de testamento do amor pelos super-heróis. Testamento não apenas de um autor, mas do circuito energético e de ideias que os universos complexos dessas personagens podem fazer despertar, se crermos, com Grant Morrison, na aplicação da teoria da emergência a esta produção cultural específica. O livro vem com uma cinta com três blurbs (citações encomiásticas) de três pessoas de três gerações, origens e áreas de trabalho totalmente distintas, mas que consideradas em conjunto, poderão mostrar a potencial circunferência de acção de Supergods: Stan Lee, um dos pais e parteiro da revolução Marvel dos anos 1960, que abriria caminho a todas as reinvenções e reescritas que ainda hoje operam nesse género da banda desenhada; Gerard Way, líder da banda (emo-punk?, indeie rock?, confessamos ficar perdidos nestes descritivos) My Chemical Romance - com o qual Morrison colaborou nos vídeos para Danger Days -, cujas letras e estado de espírito se aproxima de algumas das personagens mais melodramáticas mas ainda assim poderosas de Morrison; e Deepak Chopra, autor de um batalhão de livros de auto-ajuda e de novas espiritualidades. Não há aqui qualquer tipo de contradições ou paradoxos: Morrison é, de facto, autor de alguns dos comics mais cool das últimas décadas, um guru/mago/visionário/desinformador que utiliza a banda desenhada como evangelho, e um autor que gosta de tirar partido do seu estatuto rock star (de uma forma inigualável em qualquer outro autor de banda desenhada). (Mais) 

Pluto. Naoki Urasawa (Viz Media)

“A mangá e o animé japoneses têm oferecido numerosas narrativas de humanos em transição, postulando novos e corajosos conceitos humanos com uma calma mas profunda criatividade e uma arte brilhante”, reza a introdução ao 3º número de Mechademia, assinada por Frenchy Lunning. Todavia, apesar dos estudos aí reunidos, e apesar de muitas mangás e animés se dedicarem de facto a temas ou implicarem narrativas onde o maquínico e o humano se cruzam, em vários graus de interdependência, convergência e entrelaçamento - dos robôs aos ciborgues aos mutantes aos andróides, das armaduras mecha às simbioses, etc. -, fazendo por sua vez emergir temas tais como o pós- ou transhumano, é raro que esses textos explorem em si mesmos, de modos directos, as implicações filosóficas ou políticas, quer de uma micro- quer de uma macroescala. Mesmo Ghost in the Shell, que se aproxima desse tipo de discussões, cai mais vezes em orgias de referências (relembremos as notas pesadas do autor na versão mangá) do que de uma tessitura coerente e contida.

Se escrevemos “de modos directos”, é porque a própria existência dessas matérias será suficiente, claro está, para o escavar crítico, para a abordagem teórica… Até mesmo uma série juvenil e formulaica como Power Rangers e toda a sorte de títulos análogos tem elementos suficientes para essa discussão. Todavia, parece-nos sempre possível encontrar nesse sentido algum grau de superioridade - de complexidade narrativa, de sofisticação de argumentos, de subtis moldações - num título como Pluto.

A informação crucial descritiva deste livro, repetida em todos os textos de apresentação desta série, é conhecida, mas repitamo-la: Pluto é baseado num dos episódios da série Astro Boy/Atom de Osamu Tezuka, ainda que transformado. A história original de Tezuka, que foi traduzida para português no 3º volume de Astro Boy, era sem dúvida uma das mais interessantes daquelas que ali são apresentadas (e, possivelmente, de toda a série, tendo em consideração algumas outras edições que conhecemos) - em termos de tamanho, para já, distinguia-se das demais, com 177 páginas na edição original. Isso não significa que a leitura de Pluto não nos ofereça novos instrumentos, ou pelo menos uma perspectiva nova que nos obriga a uma re-leitura de “O Melhor Robô da Terra”, o título desse episódio (e é essa re-leitura que mostra imediatamente uma das forças de Pluto).

Urasawa opera aquilo que se chama recorrentemente de “genre bending”, “transformação dos géneros”, mas é possível que esse termo seja um pouco inapropriado - não só porque o próprio termo levanta questões insustentáveis literariamente, uma vez que é da própria natureza dos géneros um alto grau de reinventabilidade constante, que passa por transformações e tensões internas, mas também porque essa noção parece querer dar conta de um exercício consciente e, por isso, distante do acto criativo em si. Afinal, podemos dizer que Pluto é superficialmente uma história de ficção científica - porque se passa no futuro, porque envolve robots e uma sociedade que os possui e emprega, porque surgem conceitos associados a um hipotético e/ou ficcional desenvolvimento tecnológico, etc. - e em termos de enredo um policial - crime inaugural já verificado, contexto in media res, inquérito e investigação, analepses em catadupa, descobrimentos sucessivos que adensam a trama, focalizações polifónicas, subjectivas e incompletas, etc. -, sem esquecer uma camada de comentário em relação à nossa realidade política presente - é por demais claro que a guerra entre os Estados Unidos da Trácia contra o Reino da Pérsia liga ponto por ponto a última Guerra do Iraque.

Melhor do que adaptação, uma palavra que surge em alguns textos é “reimaginação” para discutir aquilo que Urasawa (e o seu colaborador em argumento, Takashi Nagasaki) fez em relação à obra original de Osamu Tezuka. Com efeito, parece ser isso o que está em causa: não uma simples reelaboração ou actualização ou refornecimento da história “O melhor robô…”, mas sim um re-mergulhar no fundo informe das ideias e pulsões que presidiram à história de Tezuka, para criar um novo molde com o mesmo barro. Uma espécie de tradução. Curiosamente, intramediática, algo mais comum no cinema com os remakes. (na banda desenhada, talvez algo que lhe esteja próximo é a reformulação do universo Marvel pelas séries “Ultimate”Não é só, portanto, uma interpretação da história de Tezuka (sendo-o, até mesmo ponto por ponto, episódio por episódio, atento a vários pormenores visuais, narrativos, de ambiente e de comportamento das personagens), como uma reformulação de alguns dos seus princípios, ideias, pulsões e mesmo direcções de desenvolvimento num contexto social, estético e filosófico bem diferente. É como se Pluto fosse um desabrochar do que Astro Boy poderia (poderá?, é?) ter sido para a segunda década do século XXI.

O que Urasawa faz com esta obra é tornar claras não apenas as associações que a obra original de Tezuka proporcionavam - de uma forma menos nítida, porque mais preocupada em rapidamente criar o seu programa narrativo dirigido a um público infanto-juvenil num contexto cultural e político muito específico -, mas religa-as, de dois modos: re-liga-as, isto é, liga-as de novo às mesmas raízes conceptuais, reforçando-as e reiluminando-as, mas também as re-liga, num sentido em criar novas ligações, o que portanto apenas fortalece esta ideia de intensificação, ou re-intensificação, de todos os elementos envolvidos. Os fundados por Tezuka, os trazidos por Urasawa e todos os que gravitam em torno destes dois sóis. Urasawa, por exemplo - e talvez seja essa a sua dimensão mais visível e marcante - sublinha e destaca os aspectos mais sombrios que estavam já presentes na história original, não apenas tecendo um contexto mais humano, mais político, explorando implicações profundas da inscrição deste tipo de tecnologia no mundo humano, mas permitindo que a dimensão do seu trabalho - mais de 1500 páginas - reverta a favor de uma redimensionação mais profunda das personalidades de cada personagem.
Veja-se este quadro (que circula pela internet em várias versões, logo não sabemos a quem atribuir a autoria) que compara directamente as personagens principais das duas histórias. Estão todas envolvidas. E se algumas atravessam as histórias de Atom (Ochanomizu e Tenma) e outras apenas existem nesta história em particular (e outras ainda pertencem àquilo que se chama do “star system” de Tezuka, personagens/actores que aparecem em várias das suas criações, mesmo que ocupando papéis diferentes), todas elas ganham contornos bem mais complexos e ricos do que a sua existência infantil em Tezuka permitiam.

Leitores mais afectos a navegações profundas na história da ficção científica serão capazes de sublinhar, ao longo de todos os volumes, as referências mais ou menos obscuras a essa tradição. A própria origem da palavra/função do robot, as leis da robótica de Asimov, os consequentes paradoxos inerentes ao convívio robot-humano explorados por outros autores, e os vários graus de livre-alvedrio que vai sendo conquistado pelos robots cada vez mais sofisticados são elementos já presentes em muita ficção anterior.

As cenas em que alguns robots se entregam ao que nos parecem ser emoções são de uma extrema complexidade. A narrativa vai-nos mostrando como a tecnologia permite que alguns modelos imitem expressões e comportamentos (até mesmo lágrimas) humanos, e há outros momentos - a consequência de mais desenvolvimentos, alguns dos quais elementos-chave para a trama central - em que essas emoções são reais. Mas há ainda momentos de maior subtileza e que são mais problemáticos de descrever. No primeiro volume, o detective Gesicht dá a notícia a um modelo doméstico que o “marido” havia morrido. Na prancha correspondente, a segunda metade mostra-nos uma vinheta maior, de contextualização espacial, mostrando Gesicht de cabeça baixa em frente do outro robot. A posição dos corpos de ambos é similar, mas o facto de que o detective é um modelo com semelhanças físicas humanas, contra o outro modelo, pode fazer-nos pensar que essa simetria é incompleta. O narrador visual dispõe de seguida uma coluna de três vinhetas mostrando apenas o rosto da “mulher” de Robby, mostrando apenas um pequeno ajuste de enquadramento, um afastamento progressivo, entre a primeira e a terceira vinheta (recordando o mecanismo regular, ainda que horizontal, de Harvey Kurtzman nas suas bandas desenhadas de guerra). Não existe texto, nem, naturalmente, alterações no rosto robótico. Todavia, esse enquadramento é eloquente e expressivo de uma forma completa. Diz mais sobre as potencialidades emocionais em questão em Pluto do que outros episódios mais melodramáticos.

Quanto ao aspecto gráfico, porém, estamos perante um caso clássico de um tipo de linguagem cuja estilização convencional quase que aproxima de um idioma treinado e repetível do que uma assinatura individualizada. O que não quer dizer que não seja possível encontrar traços de individualização no trabalho de Urasawa, menos interessante a nível da figuração - apesar do seu tratamento anatómico, de contornos suaves e proporcionais, e a procura por uma pouco melodramática escolha de expressões - do que na gestão dos tempos, na utilização dos silêncios e do que Scott McCloud chama de “transição aspecto a aspecto”, a composição que irregularmente mostra vinhetas a morder a página, etc.

Pessoalmente, o volume que nos parece o mais enriquecedor em todas estas questões é o sétimo (capítulos 48 a 55), uma vez que é nele que - já depois da morte do detective Gesicht e da primeira morte de Astro Boy - que se jogam todos estes elementos que temos vindo a citar: vemos pela primeira vez o robot Pluto/Sahad a lutar mais veementemente contra a sua programação assassina, o pacífico mas poderoso Epsilon a ter de enfrentar Pluto, sendo destruído às suas mãos e abrindo-se aos seus sentimentos e memórias post-mortem dos seus filhos humanos adoptados, o leit motiv da fractura na parede que aumenta, e que serve não apenas de sinal de tressage da obra mas fundo temático das fissuras que atravessam a sociedade de Pluto, e uma pequena referência ao Pinóquio de Collodi, de maneira a criar uma mise en abîme de todos os temas (Pinóquio é, a par do Super-homem e do Rato Mickey, outra das figuras tutelares para o Atom de Tezuka).

Comparativamente a outros títulos de Urasawa (pelo menos Monster, já que não conhecemos ainda 20th Century Boys), esta série é também uma inteligente pesquisa sobre a psique humana, ainda que transposta para as máquinas (justificando assim interpretações transhumanas), procurando chegar a uma impossível equação do verdadeiro equilíbrio entre a inteligência, a razão e as emoções, assim como uma complexa e hábil trama sobre vingança, limites e arrependimentos. Mais, tendo em conta as últimas frases entre Astro Boy e o professor Ochanomizu no episódio original - “porque é que os robôs, que não sentem qualquer ódio, começam a lutar entre si?”/“Não sei… suponho que são os humanos que os levam a isso” (pg. 183 da edição Asa), a introdução de aspectos mais contemporâneos e complicados relativos ao desenvolvimento e relacionadas questões éticas da inteligência artificial, torna Pluto a sua fórmula extensível e magistral.

3 de julho de 2011

O Espírito da Colmeia e Eu não reino. Luís Henriques e Pedro Nora, respectivamente (Ao Norte)

Todos estes livros da colecção “O filme da minha vida” partem de um projecto muito curioso de intermedialidade complexa. Não se tratam de adaptações que pretendam moldar a narrativa original de um filme para um outro meio, veículo ou contentor, nem tampouco a procura de uma versão, mas sim de uma transformação da matéria original na formação, criação, fundação de um novo texto. Logo à partida, a ideia de associação directa que existe pelas referências directas ao filme (uma breve descrição, o título, a sinopse) cria um quadro de contextualização narrativa, mas ao mesmo tempo isso faz operar nas nossas cabeças de leitores-espectadores a eventual fantasia transmediática de que estamos a observar frames singulares retirados ao filme, os quais, ainda que perdendo a sua qualidade de texto contínuo e estruturado, ganham em termos de autonomia e estruturação na sequencialidade permitida pelo objecto total. A separação das imagens (quer no interior de cada página quer entre cada página) torna visível aquelas elipses que são invisíveis na projecção de um filme, tornando o mais claramente possível a diferença não de grau mas de natureza entre um meio e outro.
Há também graus diversos de (re)introduzir uma abordagem não-narrativa ou anti-narrativa em relação ao texto original, mais sentida, nestes dois casos em particular, em Pedro Nora, uma vez que Luís Henriques pretende ainda manter alguma naturalidade entre as conexões das imagens, repetindo as personagens de vinheta a vinheta, seguindo movimentos do eixo espácio-temporal, “imitando” algumas das estratégias de enquadramento e figuração.
A questão da autenticidade pode-se tornar operante nesta discussão. Quer o cinema quer a banda desenhada são artes que vivem numa natureza bem diversa daquela de outras artes que vivem na necessidade de um original. Sendo ambas artes determinadas pela sua reprodutibilidade mecânica, não faz sentido (desde Benjamin) procurar pelo original. Mas estas obrinhas remetem-nos sempre, de forma imediata, à consideração que são posteriores aos filmes, em dois sentidos. Temporal: o livro vem depois do filme. Físico-processual: houve um decalque sobre a matéria do filme para criar o livro. Esse decalque recai, a uma primeira ideia, sobre a camada da narrativa, da história, da diegese, da fábula (estes termos têm, cada um, especificidades teóricas importantes, mas tratemo-los aqui como sinónimos de uma ideia mais corrente). Henriques e Nora recontam as histórias dos filmes eleitos nas suas páginas. O comentário que deve seguir essa leitura é… nim. Isto é, é óbvio que se ganha na leitura se se conhecerem os filmes transmutados, ligando ponto por ponto, imagem por imagem, entre o filme original e o texto final da banda desenhada. Mas por outro lado, ganha-se também olhá-los como obras autónomas, singulares e auto-sustentadas, sem qualquer tipo de obsessão nessa associação transmediática. Estamos muito , muito longe, daquelas versões desenxabidas em banda desenhada de uma história contada num filme.
O Espírito da Colmeia. Luís Henriques. Há uma cena no filme Satantango (1994), de Béla Tarr, em que uma menina tortura e mata um gato. Apesar de ser um dos mais belos filmes que vimos, a nossa lamechice pessoal por gatos tornou essa cena quase insuportável. Quando vimos o filme de Victor Erice (1973), posteriormente, uma das irmãs (pensamos ser Isabel) brinca com o gato e aproxima-se da cena protagonizada pela menina de Tarr. O enquadramento, o longo tempo da acção, a estranha relação ecológica entre criança e gato misturando, da parte humana, curiosidade natural, maldade, exploração moral, e do gato, sujeição total, fraqueza. Mas no caso d’O Espírito da Colmeia, o desfecho dessa morte (que julgámos anunciada) é interrompido. Era só a brincar… A comparação de um filme com outro para falarmos de um livro de banda desenhada que apenas se relaciona com um deles não é de todo despropositado, se tivermos em conta que temática e formalmente, todos esses três textos podem ser vistos como uma reformulação das caixas chinesas ou das matrioskas. Passagens, casas abandonadas ou em ruínas, espaços que se transformam em funções variadas (inclusive a sala de cinema que é casa de velório, mesclando o acto cinematográfico com o da morte, que abriria a uma exploração conceptual riquíssima), cinema dentro do cinema, portas que abrem para outras portas, reflexos que se transformam noutros.
Luís Henriques opta por uma paginação regular de duas vinhetas por página e utilizando uma sua técnica recorrente, “ruidosa”, que parece imitar um grão denso de película antiga, uma trama desarmónica que envolve um fumo ou um pó visual reminiscente ora da passagem do tempo ora da impossibilidade da tradução clara. Em ambos os casos, opera-se um distanciamento crítico, de humildade, da parte do autor. Com a excepção da primeira e última pranchas, isoladas pela paginação, e que estão mais próximas do design dos créditos do que do texto fílmico e de banda desenhada, todas as outras páginas são do texto central.
Estas unidades de duplas páginas ou de quatro vinhetas surgem então como unidades de sentido, unidades sucessivas que vão tirando partido das estruturas basilares do livro. Cada quatro páginas parece mimar uma cena específica do filme, mas ao mesmo tempo cria como que um enunciado particular, que pode ser lido por si mesmo e criando uma linha encaixada de sentidos: vemos imagens a emergir do grão gráfico de Luís Henriques, personagens a surgirem dessas sombras, manchas a adensarem-se, talvez buscado as formas figurativas a que almejam mas ao mesmo tempo sendo sugadas de novo para o informe. O Espírito da Colmeia explora o fascínio do cinema numa pequena aldeia da Espanha franquista sobre o imaginário de uma pequena menina, Ana, cujas experiências - sobretudo a de se cruzar com um soldado republicano em fuga - são transmutadas à luz dessa outra luz projectada. O filme dentro do filme, Frankenstein, traz uma camada adicional a esse fascínio e à projecção secundária de Ana. O filme é todo composto de passagens, mal-entendidos, expectativas, segredos, transformações, e talvez a cena mais emblemática destas passagens seja aquela em que Ana vê o seu reflexo transformado no do monstro de Frankenstein, introdução ao gesto de aproximação que se segue. Luís Henriques tira partido da própria paginação e formato do livro para mostrar essa transformação de um modo bem diferente, e mais efectivo na transformação que deseja.
Regressar a um texto e a um significado, alterando esses elementos de um modo subtil, garantir a sobrevivência de algum grau de narratividade. Humildade e variação.
Eu não reino. Pedro Nora. Pedro Nora, pelo contrário, elege uma colecção heteróclita de imagens singulares, todas sem elos imediatos entre si, raríssimas vezes repetindo elementos comuns (visuais, contextuais, temáticos, ou figurativos), sendo os únicos elos elegíveis então a sua co-existência num mesmo objecto - o texto - e a partida de um substrato fílmico. O regresso deste autor à criação de banda desenhada e ilustração, de que esteve afastado durante algum tempo, é pautada, a nosso ver, por um regresso duplicado, uma vez que mergulha novamente nas suas pesquisas gráficas idiossincráticas para responder aos desafios específicos da circunstância.
Cada imagem destas páginas oscila em termos de grau de figuração - de composições abstractas geometrizantes a figurações mais ou menos claras -, de estilo - desde o que parecem ser impressões a carimbo ou stencil a desenho a traço a densas manchas a pincel (supomos) - , de organização diegética - da representação de personagens num episódio narrativo (apenas um caso com texto, o caso mais declaradamente narrativo) e pequenos pormenores dos seus corpos ou acções -, de centralidade de sentido - do que podem parecer símbolos diagramáticos ou sintéticos a pequenos retratos/traduções de cenas do filme. É como se esta opção por concentrar num mesmo espaço (o livro) todas estas estratégias diferentes quisesse apontar para um paradoxo, uma impossibilidade. Talvez mesmo aquela impossibilidade de regressar ao “mundos dos anões” que o realizador apontou numa entrevista, isto é, um mundo em que ainda se poderia crer em organizações lineares da fantasia, da imaginação e do significado das coisas.
A propósito de Where the wild things are, encontrámos uma forma de explorar a língua portuguesa em que “reinar” era um verbo que tanto servia para o acto do comando de um território específico, o reino, como o de brincar, aberto a territórios mais alargados (de novo encontramos a possibilidade de encontrar espaços encaixados uns nos outros neste livro, se bem que Nora complique mais do que Luís a teleologia desses encaixes). Eu não reino parece assim ser uma afirmação paradoxal - considerada apenas enquanto título da obra de Nora - uma vez que o autor reina sim, neste seu pequeno reino. Todavia, ao mesmo tempo, pelo ataque que faz às estruturas clássicas de significado, Nora abdica a esse reino e regras da brincadeira (que razão se poderá ler com uma coroa caída no chão, ao lado de uma bicicleta?).
Sendo este o último filme de João César Monteiro, há muitos aspectos em que se o poderia ler como testamento (mas isso é disparatado por duas razões: primeiro pois ninguém tem as chaves da sua própria morte, e raramente executa gestos artísticos com a intenção inegável de uma herança nítida; depois, porque toda a obra de um artista se pode considerar sua herança, e no caso de Monteiro, os seus filmes-diários ficcionais estão ainda mais próximos desse diálogo). A passos tantos, o protagonista, João Vuvu, no centro de uma diatribe contra o Cristianismo e as suas farsas, afirma que “Só o problema é interessante, nunca a solução”. São assim os filmes de Monteiro. É preciso dizer que Nora constrói um problema e não uma solução?
Nota: agradecimentos à editora pela oferta dos livros.

2 de julho de 2011

Nemesis. Mark Millar e Steven McNiven (Icon)

A re-leitura de alguns textos de Fernando Guerreiro, nomeadamente a reelaboração de textos sobre as relações entre o papel eventual daquilo que passa pela vanguarda das artes nos nossos dias, o terrorismo, e o fantasmático no acto literário (e, por extensão, artístico), no recente Teoria do Fantasma (Mariposa Azual: 2011), fez emergir toda uma série de ideias e imagens - com precisão, aquelas que o crítico e teórico desenvolve em torno do conceito de terrorismo como último bastião da ideia de “vanguarda” - que por sua vez nos remeteram ou fizeram retornar a um texto lido: Nemesis, de Mark Millar e Steve McNiven. Este texto será um conjunto pouco coeso de notas em torno dessa obra, e não uma apreciação crítica linear da mesma.
Os super-heróis são, a um só tempo, um dos mais afortunados géneros de banda desenhada do mainstream norte-americano, que ocupam um tal espaço no imaginário que muitas vezes se fazem confundir com todo o território, e a produção mais problemática em termos de apreciação, por suscitar paixões contrárias e muitas vezes incapacitantes. Talvez parte dessa fortuna se prenda com o facto de ser o único género cuja origem se encontra exclusivamente no meio da banda desenhada, e mais exclusivamente ainda no formato dos comic books, numa relação a que Peter Coogan, autor de Superhero: The Secret Origin of a Genre, talvez a monografia mais completa de estudo desta parcela da banda desenhada, chama de “simbiose”. A fortuna passa também pelas suas transformações intermediáticas (cinema de animação e cinema de imagem real, programas de rádio e televisão, jogos de computador, incursões em artes plásticas, moda e mesmo literatura) e, no que diz respeito à circulação comercial, por aquele modelo a que Marco Pellitteri, no seu estudo da mangá e animé, apelida de “binário”, em que o merchandising mais vasto explora esses textos originais nos mais diversos bens (veja-se o documentário Look, Up in the Sky: The Amazing Story of Superman, para aprender parte dessa fortuna no seu caso mais paradigmático).
As paixões a que nos referimos expressam-se ora pela mais fanática das defesas, que cria uma cegueira quase total aos problemas ideológicos que esse género faz implicar, e por vezes à protelação de uma adolescência insuportável, por outro, a ataques desmedidos e desinformados, que arrola toda a produção genérica e a reduz a um denominador comum que não existe.
No entanto, não deverá existir género que tenha sofrido mais transformações internas, inclusive daquela espécie a que se viria a chamar “desconstrução”, e estamos em crer que não foi preciso chegar a Watchmen de Moore e Gibbons para encontrarmos esses exercícios (ainda que esse título seja o seu mais completo e inultrapassado gesto; repetimos, como noutras ocasiões, que a leitura do livro de Geoff Klock é fundamental para essa história de sucessivos desvios: How to Read Superhero Comics and Why). Essas desconstruções continuariam sucessivamente, e uma das linhas que estenderiam a pesquisa de Watchmen é aquela que diz respeito à ambiguidade dos super-heróis face às realidades humanas e à esfera do político. Aí temos projectos tão diversos quanto os de Warren Ellis (The Authority), Mark Waid (Irredeemable) e Mark Millar (desde The Ultimates ao seu “run“ em The Auhority, passando por Wanted e Superman: Red Son). Outra das linhas é aquela a que se pode dar o nome de “versões”, em que uma conhecida história atravessa uma qualquer alteração, e o seu desenvolvimento, também conhecido, se pauta sob a luz dessa diferença: na Marvel é o “What if?”, na DC “Elseworlds” (ou outras nomenclaturas). Nemesis é como que a confluência dessas linhas, como veremos.
Mas antes de irmos ao cerne da questão, e sem nos podermos aprofundar (estas considerações querem apontar sempre numa direcção que é difícil cumprir na totalidade sem tempo e argumentação sustentada), há algo de intrinsecamente malévolo na própria natureza dos super-heróis. Fredric Wertham, o detractor incompreendido dos anos 1950 dos comic books, não teria razão ao apontar ao latente fascismo do Super-Homem? É fácil hoje desconsiderar essas afirmações como um disparate. Pois como é possível dizer tal coisa de uma personagem que é a própria encarnação dos grandes princípios da democracia e da liberdade e da justiça? (suspendamos “a via americana”, adição bem posterior). Mas a verdade é que é de facto possível, pois a fascização da sociedade não tem apenas caminhos mais claros (hoje seriam mais claros), mas bem insidiosos nos papéis que os super-heróis fazem crer ser o mais correcto (brawn over brain, vendetta pessoal versus justiça processual e distributiva, etc.; poder-se-ia imaginar algo sob a dimensão de “terrorismo de Estado”). Nemesis é uma das formas de levar ao extremo a ideia de que “com grande poder, vem uma corrupção imensa”.
Nemesis, o protagonista desta série de quatro comic books (o que se conhece por mini-série, ou série limitada, que pretende criar um universo diegético fechado e controlado pelos seus autores, e não faz parte da economia de marcas registadas das maiores editoras comerciais), é, para todos os efeitos, um homem que se preparou da melhor forma para ser o mais fantástico vilão da sua realidade. Inteligência, dinheiro e salero espectacular são os seus elementos formativos. A vingança é o seu mote. Depois de ir preparando o terreno matando vários polícias-estrela à volta do mundo, ele regressa à sua terra natal para se vingar do melhor polícia do mundo, o inspector Blake Morrow, razão última da sua origem. A forma teatral como se faz anunciar e as medidas de dimensões fantásticas que toma para o fazer tornam-no num super-vilão, um super-terrorista.
É aqui que a ideia de terrorismo parece fazer sentido numa sua acepção - controversa, sem dúvida - de espectacularidade da experiência. Todas as experiências da nossa sociedade são re-integradas, incorporadas, absorvidas, normalizadas no seu funcionamento. Não há quebra, choque, ou desvio que não ganhe rapidamente espaço na circulação dos signos, seja essa circulação directamente comercial (Mondrian como fundo da Garnier, Vivaldi como banda sonora de anúncios de televisão, o body-piercing ou as tatuagens como must das estrelas mais comerciais) seja nos comportamentos sociais (o louco na rua não incomoda, o sem-abrigo é parte da mobília urbana). Por vezes há até a mistura dos dois: o despropósito de Futre torna-se anúncio publicitário, expressão popular, palco de reabilitação de atenção mediática.
Onde se encontram então experiências que ainda tenham um valor de realidade, isto é, que não sejam assimiláveis? A “crise dos sistemas de representação e simbolização” leva a que as lutas sígnicas, pela des-simbolização, remotivação e refundição dos signos não opere somente nos espaços classicamente circunscritos (museus e galerias, artes), mas antes em toda a sorte de espaços, palcos e termos: “Um novo look ou modo de vestir, a ficção imaginante de um filme ou o gadget do momento, podem ser mais significativos do que o que se passa nas galerias, bibliotecas ou centros de cultura” (pg. 11 da plaquette Teatro Dubrowka, que vem com o livro de Guerreiro). Citando Don DeLillo, Guerreiro escreve, “enquanto figura imaginária e simbólica de referência, o terrorista ocupa hoje o lugar do escritor, ao mesmo tempo que, no quadro da perda de valores do simbólico e do sagrado na civilização ocidental, o terror tende a aparecer como o único acto com significado: não só porque intervém, produz real, mas também por lidar com proto-formas (sacrificiais) do sagrado” (pg. 14). Estando essa discussão integrada num contraste entre a produção (vanguardista) das artes, é muito curioso que Nemesis seja na verdade (spoiler alert!) revelado não como um mero vilão individual - o homem da máscara - mas antes todo um projecto articulado por uma espécie de vilão intelectual, actuando nos bastidores e em tempos alargados, que apenas descobrimos no fim e de esguelha (preparando a sequela, claro), com a capacidade financeira e recursos logísticos para colocar em funcionamento tal operação extremamente complicada. Ele planeia e produz, ao passo que o papel físico e teatral de Nemesis é cumprido por actores (os “ricos e aborrecidos” que contratam os serviços desse manipulador que prepara “os “super vilões do próximo ano”). Misto de jogo de xadrez, performance, instalação/destruição. Nemesis (o manipulador) é uma mescla de Blofeld, de Selznick, de Duchamp (artista e jogador de xadrez) e de anarquista.
Um romance de Tom McCarthy, Remainder (traduzido em português pela Estampa como Remanescente), tem como protagonista um homem que sofreu um acidente que fica por explicar, um trauma que lhe oblitera grande parte da memória, mas lhe coloca uma fortuna enorme nas mãos. Com esse dinheiro, a personagem, nunca nomeada, dará início a operações extremamente complexas de performances que o tem apenas a ele como público, uma vez que visam reconstruir aquilo que ele sente como memórias que deseja recuperar. Mas é mais do que isso. Ele quer recuperar os momentos em que ele se sentia totalmente uno com os seus movimentos, tal como os actores dos filmes - a imagem é dele -, que observa depois do acidente, executavam cada movimento com a maior das naturalidades e sem o atrito da gravidade da realidade. Poderíamos imaginar que o vilão último de Nemesis seria uma possível consequência do protagonista de McCarthy (cujos elos à banda desenhada foram revelados em Tintin and The Secret of Literature). (Guerreiro ainda fala de Glamorama, de Bret Easton Ellis, e talvez houvesse aí outro paralelo explorável, já que em muitos momentos, Nemesis tem afirmações tão vulgares, pouco profundas e insensíveis como as personagens de Ellis, mas isso seria outra dimensão).
“A quem levamos a sério?”, pergunta DeLillo em Mao II, “Apenas o doente letal, a pessoa que mata e morre pela fé. Tudo o mais é absorvido. (…) Apenas o terrorista se mantém à parte. A cultura não descobriu como assimilá-lo. Confundem-nos quando matam o inocente. Mas é essa precisamente a linguagem que se faz notar, a única linguagem que o Ocidente compreende” (apud. Guerreiro, 14).
Claro está que o terrorismo real que nos rodeia no mundo neste momento opera no interior de uma ideologia (política, radical, transcendente), num conjunto de interesses específicos. Os terroristas ficcionais - os negativos, os positivos e os ambíguos - quase sempre têm também propósitos explícitos - Fu Manchu usa o seu intelecto para conquistar o mundo, Ozymandias (Watchmen) quer a paz mundial pelo choque, V (V for Vendetta) quer o regresso de um sistema político mais justo. Muitas vezes os vilões surgem representados de uma forma de “mal absoluto”, em que não há dúvida dessa maldade - são tão capazes de assaltar um banco como empurrar uma velhinha na estrada, ou atirar os caixotes dos vendedores de laranjas à rua… uma forma básica de operar na economia das emoções da ficção. Ozymandias e V têm um papel menos primário, Nemesis parece querer levar - na ficção, repitamos - a ausência ideológica ao máximo, de forma a fazer uma emergência de um super-terrorismo, absolutamente esvaziado de ideologia, de fito.
Essa dimensão pode, ainda e novamente, remeter à história particular dos super-heróis enquanto género com especificidades formais e semânticas. A comercialização de Nemesis partiu, numa primeira fase logo depois corrigida (até por represálias legais eventuais da DC Comics), com uma frase e uma imagem bombásticas: “E se o Batman fosse o Joker?”. A associação era clara. Por um lado tínhamos uma personagem similar a Bruce Wayne, um playboy com uma fortuna imensa e tempo nas mãos, mas cuja missão, em vez de ser combater o crime, seria abraçar a psicopatia total idêntica àquela do maior inimigo do guardião de Gotham. O Joker é uma personagem curiosa no sentido em que, logo na sua primeira vida, com Bob Kane e Bill Finger, em 1940, surgia como um criminoso com propósitos estranhos, idiossincráticos e um modus operandi bizarro. Nesse sentido, estava imediatamente uns pontos afastado da também visualmente fabulosa galeria dos inimigos de Dick Tracy (em larga medida, um dos modelos centrais para a saga de Batman), pois esses estavam subsumidos à economia do género a que pertenciam - a tira policial -, logo, a uma criminalidade com uma teleologia mais simples e linear. Joker não, os seus propósitos eram mais caóticos, sem programa (“sem esquemas”, repetiria o Joker de Ledger na última versão cinematográfica, que influenciaria a tal imagem censurada, aqui reproduzida).
Outro paralelo diegético, simples, é a forma como Nemesis faz anunciar as suas acções futuras, através de cartões de visita, recordando assim um outro acto do Joker. Mas também o poderíamos aproximar de outro inimigo de Batman, a saber, o Riddler/Enigma, mais directamente citado no segundo episódio.
Porém, pensamos que essa estratégia comercial faz apenas sentido num sentido imediato e superficial. Em primeiro lugar, porque inscreve Nemesis numa linha de trabalhos (de género) que é o território sobre o qual Mark Millar deseja trabalhar. Um dos prazeres de ler histórias de super-heróis é ver repetidas as fórmulas e clichés, mas procurar as pequenas diferenças, os desvios significantes, o maneirismo (no seu sentido mais estrito vasariano). Se Millar experimenta parte do prazer dessa leitura no escapismo e fantasia adolescente de nos podermos tornar super-heróis em Marvel 1985, Kick-Ass e mais recentemente, Superior, ele explora um maneirismo que tinta os super-heróis pela “maldade” em The Ultimates e Wanted e Nemesis. É nesta última obra, porém, que ele exacerba esses princípios. Muitas pessoas julgaram Nemesis uma mera e crassa e hedonista orgia de violência sem sentido (com o vilão a explodir prédios inteiros, descarrilando comboios cheios de passageiros, assaltando à mão armada e sozinho o Air Force One e matando uma centena de polícias dentro de uma prisão à mão desarmada, etc.), mas é precisamente essa a razão pela qual Millar sublinha essa tal entrega do seu protagonista a um prazer quase totalizante do absurdo e mais esvaziado terrorismo.
A estratégia comercial do anúncio serve, portanto, para, por um lado, associar Nemesis a um imaginário reconhecível pelos seus leitores, mas por outro, para eventualmente disfarçar as outras tradições a que mais deve. E essas tradições estão ainda no campeonato da cultural popular, mas com contornos mais politizados: terrorismo e anarquia. Pensamos em Diabolik. Não é de todo original esta associação entre estas duas personagens, outros críticos notaram nas semelhanças (nas acções, no uniforme, na “caverna-esconderijo” state of the art). Diabolik é um dos casos-charneira dos fumetti neri, e sobre o qual já havíamos discorrido a propósito de Démoniak (e não resistimos a mostrar esta imagem de Paul Pope de algumas dessas personagens). Estamos sempre em círculos aqui, pois se a banda desenhada deve mais a toda uma tradição de vilões-heróis (os filmes de Feuillade), a adaptação cinematográfica de Diabolik por Mario Bava (1968) bebe substancialmente da série televisiva Batman com Adam West. A inflexão está no grau de violência (semi-séria, semi-camp) e nos contornos anarquistas das acções do protagonista, sobretudo a cena de destruir o edifício e arquivos das Finanças e o ataque com gás hilariante numa conferência de imprensa da polícia… Batman+Joker, novamente.
Nemesis não tem qualquer dimensão romântica, porém. Não há interesses românticos, não há justiça poética propriamente dita, não há sequer uma exploração de uma razão que nos levaria a “compreender”… Há um recontar de uma origem, uma desculpa por uma vingança, mas descobriremos no fim que se trata talvez de um engodo, de uma saída fácil (e falsa). Nemesis é um programa que apenas pretende ser, encaixar-se nos movimentos das suas acções e no presente dessas mesmas acções.
Quem experiencia a experiência Nemesis? O policial atacado? O vilão que mexe os cordelinhos? Os homens que preenchem o papel de Nemesis? Talvez todos. Em cada um deles, dá-se essa experiência real.
Poderá o terrorismo de Nemesis ser assimilado? Claro que sim. Não cremos, aprendendo a lição de Guerreiro e DeLillo, que o acto poético - aqui no seu sentido de “feitura”, não de valorização estética, de língua outra no interior de uma língua-mesmidade, pois como vimos o território dos super-heróis é como a caligrafia chinesa, em que a beleza nasce das infinitesimais variações, não do brusco diferenciamento - proporcione uma experiência do real inassimilável como o verdadeiro terrorismo histórico. Nem sequer estamos num terreno do simulacro: estamos na ilusão ficcional. Mais, se a versão cinematográfica se confirmar, com estrelas do maior calibre, os efeitos desta pequena obra podem até ser mais minorados ainda (como o foram no caso de V for Vendetta, de Wanted, etc.). Todavia, durante a sua leitura, a sua fruição - fugaz - e mesmo que encerrado apenas naquelas páginas coloridas, há um momento em que esse terrorismo produz um real.