24 de abril de 2011

The Adventures of Unemployed Man. Erich Origen, Gan Golan et al. (Little, Brown)

Haverá várias maneiras de combater, ou pelo menos construir algum tipo de resistência, as hegemonias, tenham estas formas políticas, económicas, sociais ou culturais. As mais das vezes, a hegemonia, sobretudo a das sociedades tardo-capitalistas globalizantes, engloba todas essas facetas num só “pacote”, que surge - em Portugal, que é o nosso caso - de uma forma que nos parecerá não apenas “normal” como “natural”; daí que seja “inevitável”, “incontornável”, e quaisquer alternativas pareçam sempre, da perspectiva dessa “naturalidade instituída”, “radicais”, “utópicas”, etc. É graças à disciplina (ou ultra-disciplina) dos Estudos Culturais que a cultura popular emerge como uma dessas formas de resistência. Os seus modos de criação, de recepção, de uso, de apropriação, podem conter estratégias perfeitamente adequadas à resistência daquela cultura que parece ser central e inatacável.
A banda desenhada, mormente a de super-heróis, é ela mesma um produto acabado dessa mesma sociedade, não apenas enquanto produto propriamente dito (Kauftware), mas como instrumento de veiculação da ideologia dessa sociedade, ora de modo óbvio, revestindo-se assim de formar propagandísticas (veja-se o estudo de Strömberg, Comic Art Propaganda, de que falaremos em breve), ora de modos mais ou menos subtis (as leituras que se podem fazer de títulos tão díspares como 300, The Authority, The Dark Knight Returns, Identity Crisis, etc., já para não falar das próprias personagens de raiz). Todavia, como se aventou, uma das possíveis estratégias de resistência da cultura popular é a reapropriação, o desvio irónico, a desconstrução interior, dos próprios produtos ideológicos. The Adventures of Unemployed Man é uma dessas formas.
Não se este trata de um livro que se possa arrumar na mesma prateleira que os livros de Squarzoni ou de Sue Coe, por exemplo, nem tampouco daqueles livros “para principiantes” que surgem de quando em vez nos mercados. Mas estará nas suas redondezas, ainda que procure mais carregar no pedal do pastiche irónico, na reapropriação de formas anteriores para as re-narrativizar de maneiras diferentes do que na construção de um discurso directa e metodologicamente informativo (como os casos de Squarzoni e Coe, precisamente). Tendo já falado neste espaço sobre o modo como uma instância superior e mais profunda do que o simples par forma-conteúdo, ou pelo menos esse mesmo par pensado de um modo simplista, poderemos dizer que a ironia deste livro reside mais exactamente na capacidade dos seus leitores verem a sua forma como mais adequada a outro tipo de conteúdos, e descobrirem o seu conteúdo como jogando num território desaguisado em relação à sua forma. Estamos perante um caso de aparente disjunção entre a narrativa e as imagens que a figuram. O livro é escrito por Erich Origen e Gan Golan, cúmplices de uma outra obra que segue a mesma ideia de unir um modelo formal infanto-juvenil para veicular matérias controversas, Goodnight Bush. E é ilustrado por mais de dez artistas, entre os quais Rick Veitch (ele próprio autor de vários livros que desmontam as agendas políticas e éticas dos super-heróis, com The One, Brat Pack, etc.) e Thomas Yeates (que também trabalhou como Veitch em Swamp Thing), entre outros artistas que trabalham na indústria.
Em todos os seus sentidos, este livro fará recordar as experiências de autores tais como Alan Moore, que ajudou a fundar com títulos tais como 1963, Supreme e outros, a ideia de integrar o pastiche para alargar a rede narrativa dos seus universos, ou R. Sikoryak, que agrega versões de clássicos literários com formas de banda desenhada narrativa mais comercial para provocar disjunções divertidas, e novos modos de comunicação e expressão.
The Adventures of Unemployed Man segue a vida de um super-herói, The Ultimatum, que é na realidade o milionário Bruce Paine. O seu papel é espalhar a ordem de “pensamento positivo” a todos os cidadãos, principalmente aqueles que são derrotistas por natureza: “heróis” (essa é a palavra utilizada para todos e quaisquer cidadãos, que andam com uma outra espécie de uniforme à la super-herói) desempregados, negros das “inner cities”, asiáticos que “roubam e esmolam” (comida de caixotes de lixo), sobretudo porque não aprenderam as lições mais importantes, a de que “a pobreza é um sintoma de falta de higiene mental” e que “não é a economia, és tu, estúpido!”. Porém, quando este paladino de um capitalismo agressivo imbuído e/ou cego por um estranho código de ética pseudo-protestante se apercebe que parte do problema (uma fábrica de brinquedos com mulheres a trabalhar por uma ninharia) é ele mesmo (os brinquedos são propriedade de Paine e efígies de The Ultimatum), e resolve alterar as formas de redistribuição dos lucros, ele é despedido por aqueles que detêm o verdadeiro poder. Destituído, The Ultimatum torna-se numa personagem diferente, atravessa experiências que desconhecia e não compreendia de todo, até assumir a identidade do The Unemployed Man, procurando então uma defesa (vingança) daqueles que o haviam destruído, unindo-se a toda uma série de outras personagens representativas.
Aquilo que o livro quer desmontar é a promessa de crescimento económico e redistribuição da fortuna que havia sido feita pelo quase-contínuo crescimento económico e político dos Estados Unidos após a Grande Depressão de 1929 (e sobretudo depois da 2ª Grande Guerra), acompanhada por anos de total desgoverno, ou melhor, de desregulamento do mercado (há mesmo uma máquina kirbyana na história com esse nome). Este mercado afirmaria que é assim mesmo que ele deve funcionar, já que a economia de mercado ajustará os seus próprios ritmos de procura e oferta, de crescimentos e substituições de mercado, utilizando-se aquela famosa metáfora (ainda que abusada) de Adam Smith da “mão invisível” (nome de uma das forças vilãs deste livro). Todavia, as consequências mais recentes dessas (falsas) promessas foram a recessão de 2007 e todos os problemas que se lhe seguiriam ou que estavam integrados nela (tendo sido a mais publicitada a crise imobiliária, mas também o crescente desemprego, o aumento do crime violento, a crise escolar), consequências as quais ainda hoje se sentem, são aproveitadas por agendas políticas um pouco obscuras (o “Tea Party”), levando àquelas atitudes de misturar vítimas com os causadores da pobreza indicados acima, e que influenciam em parte a crise vivida na Europa, e agora aqui no nosso país (“em parte”, pois outras pertencerão à classe - que palavra inadequada - política governante dos últimos 20 anos)… Todos esses aspectos são tocados por este livro, sempre utilizando figuras reconhecíveis dos livros de super-heróis.
O protagonista, como se verá, tem tanto elementos do Batman como do Super-homem. Encontrar-se-ão a Wonder Mother (v. abaixo), ou a verdadeira Mulher Maravilha, que tem de lutar mais que qualquer homem pelo seu posto de trabalho e cuja gravidez é vista pelo patronato como um factor de perda de produtividade; o Master of Degrees, um herói com formação superior a mais para empregos regulares e que se tem de desdobrar em várias escolas para poder viver; White Rage, um trabalhador comum alimentado pelo lixo radioactivo da propaganda de direita da Fox News e que se torna uma criatura ultra-irritada e com ódio por aqueles que vê como a ameaça à felicidade e desenvolvimento dos EUA: estrangeiros (“aliens”, o que brinca com trocadilhos extraterrestres), homossexuais, quaisquer ideias que pareçam comunistas (um plano de saúde universal, por exemplo), qualquer intervenção do governo, etc.; Fantasma, ou, uma mulher sul-americana cuja cultura agrícola foi arrasada pelas multinacionais norte-americanas e se vê obrigada a atravessar a fronteira para trabalhar como empregada de limpeza nocturna, onde ninguém a vê…
Não é só nas personagens principais que se encontrarão toda uma série de trocadilhos com os nomes, características, propriedades, nomenclaturas, etc., idênticas a super-heróis famosos (The Unthinkables, The Desimpowered Rangers, The Broker - v. acima-, The Free Marketeers e outros membros da Just Us League), ou realidades associadas à economia norte-americana, ou expressões mais corriqueiras mas que tocam nessas mesmas esferas referenciais (The Pink Slip, The Boot, The Silver Lining, Optymistique, Kollectus, Down Sizer, Loop Hole, The Outsourcer, Laissez Fairey, Fantastic Forclosure, etc.). Repare-se ainda em empresas fictícias como “Golden Sack”, “Shitibank”, “Fias Co.”, etc. que mimam responsáveis reais. Em grande parte dos episódios - que mimam estratégias narrativas já conhecidas, com capas de revistas imaginárias, episódios curtos, referências a aventuras passadas - reciclam-se elementos conhecidos de outras personagens.
Os próprios desenhos e estrutura do livro, quase todos unidos por uma certa clareza de figuração, ou simples flutuações de estilos reconhecíveis, toda a panóplia de estratégias típicas dos livros de super-heróis, inclusive piscares de olho a episódios famosos de outras narrativas, os anúncios a produtos fictícios, as cores vivas e simbólicas, contribuem para transformar este pastiche num exercício de reconhecimento que recompensa aqueles leitores que melhor conhecerão o universo dos super-heróis. Essa é mesmo uma das fontes de prazer do pastiche, o qual pode ser desfrutado pelo leitor “comum” - que se concentrará mais nos conteúdos do que na forma - e pelo leitor “informado” - que provavelmente se centrará mais na forma do que no conteúdo. E é aí, no seio dessa eventual distracção, que poderá residir um problema.
Nalguns momentos citam-se números reais, mas uma vez que não se apresentam fontes ou bibliografias para extensão dessas informações, poderá incorrer-se no perigo desses factos (aliás, “factos fantásticos”) se perderem no ruído superficial da ironia. O mesmo ocorrerá com os nomes que parecem indicar pessoas e empresas verdadeiras - Allen Greenspan, Robert Reich (este visto como um dos “bons”), a Goldman Sachs, a Fitch Ratings, entre outras - mas que, não o sendo, podem ser vistos como aproveitamentos somente dos nomes, e não uma crítica directa às acções ou opções dessas mesmas pessoas e instituições, enquanto agentes e responsáveis pela situação que se pretende desmantelar.
Como se disse atrás, há uma aparente disjunção, mas a verdade é que a própria trama, centrada sobretudo no protagonista, mesmo que ele se alie a outras personagens, mantém alguns dos aspectos estruturais das próprias narrativas que pretende combater: o culto da personalidade, a centralidade de uma personagem que representa mais proximamente o modelo hegemónico do “agente” (homem, branco, heterossexual, com algum grau de educação e estatuto social, etc.), a teleologia de causa-consequência linear e desenvolvida em torno de um eixo de oposições “eles-nós” ligeiramente dicotómico (se dizemos “ligeiramente”, dever-se-á ao facto de a própria narrativa abordar essas estruturas e querer desmontá-las). Descobre-se a razão dos problemas, por exemplo, na captura que o grupo de vilãos Just Us fizeram do antigo herói Everyman (reminiscente do New Deal de Roosevelt, visto como um modelo positivo), transformando o seu significado de luta “por todos os cidadãos comuns” para “cada um por si”. Há, no fim de contas, uma ideia de solicitação à acção que é positiva, mas que talvez queira fazer crer que a resolução passa por opções nítidas e um caminho eventualmente conquistável (através de esquemas alternativos políticos de representação, de regulação dos mercados, de acção e opções de compra, da aceitação de um espírito novo). A verdade é que este humor, apesar de funcionar perfeitamente, não aborda a realidade nua e crua dos modos como funciona o capitalismo contemporâneo, a densa trama sócio-económica que ela implica, a forma diluída das responsabilizações (e, logo, a “fácil” desresponsabilização de cada um dos intervenientes) e a economia financeira que se dedica a especulações selvagens. Claro está que todos os defensores do sistema dirão que o capitalismo em si mesmo sabe-se auto-regular (a tal “mão invísivel” de Adam Smith), que as crises são provocadas por abusos individuais, e que nem toda a especulação é intrinsecamente negativa e muito menos criminosa. Terão razão. O problema é que essa mão é não só ciclópica - investindo sempre na mesma direcção - como onanista, e é bem provável que seja a sua raiz profunda - agora entendida como “natural” e “inevitável” - a própria causa das falhas. E contra ela não haverá super-herói que aguente.
Contudo, talvez tendo em conta o seu público específico e primário - jovens norte-americanos?, da sociedade globalizada -, esta seja uma estratégia mais acertada do que abordagens mais factuais e directas como as de Squarzoni e Coe, que serão talvez apenas lidos pelos já “convertidos”, ou pior ainda, do que um certo tom proselitista, dogmático e panfletário de certas produções afectas a plataformas específicas.
Nota: agradecimentos a Gan Golan e à editora, pelo envio do livro.

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