18 de outubro de 2010

L'Afrique de papa. Hyppolite (Des bulles dans l'océan)

A primeira leitura deste livro levará a um confronto imediato com Le Photographe, de Emmanuel Guibert, Levèfre e Lemercier. O mero facto de se tratar de um livro de banda desenhada que emprega a fotografia como parte integrante da sua linguagem sequencial, na fluidez do seu relato, implica essa mesma comparação. Não se trata de integrá-la enquanto ferramenta de trabalho visual, que poderia tomar muitas determinações e formas, desde base (de Jean Teulé a Ricardo Cabral) a campo de recolha e colagem, de embelezamento, interrupção documental, ou outros empregos. Trata-se de facto de procurar uma eficácia narrativa e gráfica colocando desenhos e fotografia num mesmo espaço, não oposicional, de expressão.
É preciso salientar a diferença crucial entre o programa de Le Photographe e deste livro. Nesse outro projecto, tratava-se de um encontro no interior de uma obra nova de um desenhador e autor de banda desenhada (Guibert) e de um fotógrafo profissional (Lefèvre), em que o primeiro reconta as memórias do segundo, devolvendo-lhe a voz através dos desenhos e integrando as fotografias (as provas de contacto, melhor dizendo), toda a matéria dessa visualização anterior, nessa mesma memorização. No caso deste jovem autor, há apenas um corpo, ainda que duas vozes. Hyppolite assume-se, desde logo, como desenhador e fotógrafo de um modo separado ou separável. Essa informação é explícita no prólogo, onde afirma que leva “o meu bloco de desenho e a minha máquina fotográfica sempre comigo. A segunda numa abordagem mais artística que o primeiro, mais longe da tomada de notas. Mas sempre ao meu lado. Perto. No caso de.” [sic]. A própria construção do livro demonstra-o: as guardas estão ocupadas por uma montagem de fotografias em ponto pequeno, depois da história apresenta-se um mini-portfólio com 10 fotografias que ocupam a página inteira, oblongas, algumas das páginas iniciais com reproduções dos seus blocos (Moleskine, passe a publicidade), pejados de uma minúscula escrita, apontamentos, e esquissos brutos, desenhos breves, aguarelas simples, apontamentos também, algumas das folhas desses blocos ocupadas apenas pela imagem, outras só pela escrita, a maior parte delas por ambas em convivência. Ou seja, o autor revela-nos com tudo isso um método de trabalho, autónomo para cada área, e revela assim também que o encontro possível nasce apenas no interior da necessidade específica a este livro.
É preciso, igualmente, explorar antes a diegese, já que tudo aqui se subsume a ela, não se procurando tergiversações, abandonos ou metalepses que a coloquem em crise. Bem pelo contrário, há alguma preocupação em manter uma coerência e clareza narrativa, ainda que se empreguem duas linguagens aparentemente diferentes (o desenho e a fotografia). Tratando-se de uma autobiografia, mas em que menos importa o “eu” do que as impressões de uma viagem, ou melhor, um filtro e vínculo que aborda um espaço que se deseja ver de um modo diferente de uma outra perspectiva já instalada, L'Afrique de papa é antes um exercício de confronto. Hippolyte visita o Senegal, a cidade de Saly, onde já lá vive o seu pai reformado, vivendo o sonho dourado da “neo-colonização” que os ricos brancos podem fazer a uma África hospitaleira (porque reduzida aos seus serviços turísticos seguros). O pai está sistematicamente a mostrar-lhe o “tesouro” daquele local: comida barata e à fartazana, serviços de luxo ao preço da uva mijona, cerveja fresca sem fim, festas em cada esquina e, mais importante, raparigas jovens dispostas a passar a noite com quem bem puder pagar, o que não é difícil para o capital branco. Hyppolite, no entanto, quer enquanto personagem do seu próprio livro quer enquanto autor, contraria essa atitude de formas várias. Ele entende que ali há pessoas, dignas, com desejos humanos e para além da miséria em que nascem. Nada disto, é preciso compreender, é muito directo, quer dizer, não existe aqui qualquer tipo de diatribe ou discussão directa (por exemplo entre pai e filho), mas são as próprias estratégias do livro que fazem essa perspectiva diferente.
É raro que o pai surja representado de frente, revelando o rosto. Nunca há grandes planos. Se há planos totais de um rosto, são utilizados de forma esparsa e que se deseja significativa num momento particular (o homem branco que se empanturra enquanto observa “catorzinhas”). Quase que poderíamos dizer que há uma procura por um certo grau de despersonalização das personagens brancas, inclusive o pai, como se estas fossem reduzidas a meras presenças simbólicas, de um poder instalado e que nem sequer se apercebe da violência que representa ou exerce. O único homem que vê o seu rosto surgir várias vezes é Omar, um habitante local que sonha em ser lutador (a luta livre – parece-nos ser essa a modalidade – é um desporto amado em Saly, e é um leit motiv do livro), mas se entrega à prostituição com mulheres brancas e velhas (espelho do papel do pai de Hyppolite). Este Omar tece uma história paralela à de Hyppolite que acompanha o seu pai por um dia. Hyppolite-a-personagem é testemunha do mundo do pai, cicerone de Saly (daí que seja “a África do papá”), mas também, já sozinho, e de pequenos desvios pela cultural local (a matança de uma vaca, as lutas, detalhes da cidade). Todo o livro parece estar encerrado num só dia, dois talvez. Esta oposição segue as linhas densas e clássicas de branco/negro, rico/pobre, primeiro mundo de férias/terceiro mundo sobrevivendo como pode, distracção e divertimento/crise ética e sacrifício. Mas também se expressa a nível da matéria visual (que compõe o texto).
A fotografia, é discutido, é um meio indicial, no sentido em que tem uma relação directa com o fenómeno que captara mecanicamente. Quer o desenho quer a fotografia transformam impressões captadas no mundo real, a três/quatro dimensões (ou mais) e as projectam num suporte a duas dimensões, se bem que a passagem da luz da fotografia seja mediada por um meio tecnologicamente determinado (o que leva a uma limitação substancial de expressão e discursividade, como indicara Flusser, se bem que seja sempre importante ressalvar que a fotografia é um discurso, isto é, mesmo mecanicamente, há uma série de opções e estratégias que atravessa), ou mais determinado, se preferirem, do que o desenho, cujo grau de traduzibilidade e influência emocional, física, acidental, pode ser mais visível (claro está, há toda uma substância complexa nestas questões que não se esgota nesta dicotomia débil). O desenho de Hyppolite, mesmo nas pranchas de banda desenhada, mantém o seu carácter nervoso, de esboço, dos cadernos; linhas rápidas, riscos a comporem sombras ou texturas, aguarelas de cores submissas ou comporem ambientes. As fotografias, por suas vez, revelam uma vontade de mostrarem pouca profundidade de campo, nitidez das formas centralizadas, contrastes agudos, e cujo preto-e-branco requer desde logo uma distanciação da fotografia mais corrente (“de férias”) a que a modernidade nos habituou.
Ou seja, procura-se, à superfície das formas de cada meio, uma diferenciação vincada.
Hyppolite não procura, então, qualquer tipo de disrupção, de deslocação, de desterritorialização da própria fotografia, ou dos seus conteúdos, na sua integração em L'Afrique de papa. Não o faz a esse nível. Essa deslocação existe, mas a nível ético, como veremos. As páginas em si tanto se apresentam de um modo fragmentado/coeso típico da banda desenhada (em que as fotografias fazem as vezes de algumas das suas vinhetas – mas não como continuidade da sequência, mesmo nos locais onde isso parece acontecer; são sempre comentário), como em ilustrações ou construções mais livres que integram uma parte de fotografia, como ainda, muitos casos, surgem apenas com os desenhos e vinhetas, classicamente de banda desenhada. A fotografia, portanto, não faz as vezes tão-somente de continuidade da acção (falar-se-ia de uma “banda fotografada”) ou explicitação dos conteúdos e/ou muito menos de ancoramento na realidade empírica do que havia sido tecido pelo desenho, mas quer fazer-se valer de um valor ético e ontológico diverso. Se as fotografias de Hyppolite-o-autor são “mais artísticas”, nas suas palavras, essa arte é aqui utilizada, no interior da narrativa, com um valor social, de correcção das impressões tintadas pela condução (pobremente ética, distraída pelo discurso do conforto branco) do pai e pelo pessimismo da realidade da vida de Omar. A fotografia surge quer como indício dos indivíduos, da vida real, verdadeira, genuína, como da força efectiva dos combates, escape mais digno das gentes do Senegal.
A página que mostramos na íntegra é aquela onde poderá parecer que há uma simples continuidade entre as acções capturadas pelas fotografias – homens a correr, duas velhas brancas a passearem na praia – e as imagens desenhadas. Tudo aponta para uma transição suave, sem complicação de maior. Os jovens lutadores correm pela praia, vemo-los de perto, os rostos, duas mulheres brancas passam por eles, e parecem olhar para eles, mas estes continuam a correr, são observados por outra branca, em topless, perto de um homem refastelado, ao lado do qual se encontra um empregado, negro, provavelmente da estância, que continua a sua ronda, perto mas afastado dos lugares de lazer. Será esse o final da interpretação? Estes dois grupos, negros, por um lado (mesmo que no seu interior tenhamos os corredores, supostamente de uma classe social mais baixa, mais entregue à sorte dos fados, e o empregado fardado), e brancos de férias, por outro, ocupam a mesma estreita faixa de areia e água, mas encontram-se, cada qual, de um dos lados opostos de uma barreira invisível, social, económica, quiçá intransponível (ou apenas numa direcção, através da prostituição ou da luta, as duas soluções “pelo corpo” dada a Omar e os outros habitantes de Saly; nunca haveria a possibilidade dos brancos atravessarem esse muro “para baixo”, já que se caíssem na miséria, não seria em Saly, mas já/ainda em França). Há toda uma série de contrastes e de simetrias a operar nesta página que reforçam sempre essa questão de proximidade física e distanciamento social. Distanciamento do fotógrafo e dos seus objectos de observação, proximidade do desenhador das personagens que quer representar/criar/moldar. Maior atenção visual ao grupo de corredores, versus personalização pelo desenho (e ainda com a inclusão do som, tornando-os mais vivos), e menor em relação às mulheres, quase reduzidas a uma caricatura. Onde os corredores são vistos em número, mas posições iguais, uma espécie de amálgama do número e diversidade, também as mulheres parecem ser reflexo uma da outra, num só plano (a quase todos os movimentos do corpo). A parte de cima (8 imagens, 1 delas desenhada, encerra um “corpo” das personagens que correm), a tira seguinte é apenas a da vivência venereante dos brancos, praticamente inertes (pois têm tempo para descansar – o que contrasta com o epíteto de sempre do pai em relação aos senegaleses, “faz-nenhum”), e o último duo mostrando a relação contrastante entre o empregado e o venereante: no desenho parecem estar lado a lado, na fotografia distanciados. Qual deles transmite a “verdade”? Qual das linhas procura restituir-nos a “realidade” do Senegal, ou mesmo a realidade do Senegal do papá de Hyppolite? Não sabemos se a resposta é apresentada cabal e finalmente, mas ela vai-se compondo...

Entrevista na Zeszyty Komiksowe # 10

A revista Zeszyty Komiksowe ("Cadernos da Banda Desenhada") é uma publicação polaca dedicada a artigos de fundo sobre banda desenhada, de um modo aparentada ao projecto da Quadrado, sobretudo no período em que esteve associada à Bedeteca de Lisboa. Este número em particular, de Outubro de 2010, é dedicado a algo como os limites formais e temáticos da banda desenhada, com artigos sobre experiências artísticas relativamente inéditas, linguagens específicas (a caricatura, a mangá), ou artistas em particular. Infelizmente, não o poderei ler, e presumo que a esmagadora maioria dos leitores do lerbd tampouco.
No entanto, aquilo que desejaria partilhar é uma longa entrevista que o Jakub Yankowski - um dos mais activos agentes da representação na Polónia da banda desenhada portuguesa - nos fez, em torno de temas recorrentemente afectos à nossa escrita e posicionamento. A entrevista saiu em polaco, claro está, mas tendo sido conduzida em português, deixo-a aqui acessível a quem por ela se interessar. Não a coloco neste post, pelo tamanho tremendo, mas está disponível sob a forma de Word doc para quem quiser ler, aqui.
Nota: agradecimentos ao Jakub, pelo convite, a entrevista, a força na edição e depois o envio da revista.

6 de outubro de 2010

Subway Life. António Jorge Gonçalves (Assírio & Alvim)

Se a memória não nos falha, por volta de meados dos anos 90, quando das obras no metro da Alameda, os tapumes da construção eram compostos por imensas reproduções de desenhos de António Jorge Gonçalves. Nesse tempo estávamos do lado de fora, da estrutura preparativa, ao passo que este livro agora nos mostra a arqueologia por dentro.
Essas imagens dos tapumes eram variadíssimas figuras de pessoas, uma espécie de misto de caricatura, retrato, comentário social, criação de tipos. Eram “lisboetas” (chegou a ser mesmo editada uma colecção de postais com essas imagens, da Bedeteca de Lisboa, salvo erro). Essas imagens eram pautadas por uma critividade que António Jorge Gonçalves fez exercer em A Arte Suprema, sobretudo, com um grau de distorção e exagero das formas físicas aparentadas a linguagens humorísticas, e não tanto da poeticidade primeira da trilogia de Filipe Seems ou das imagens realistas de Rei, que afagam o rosto das personagens com uma sensualidade extrema (o rosto feminino de Teresa, o masculino de Tano; na sua leitura, falámos dos signos de Barthes, hoje encontraríamos ecos do encontro entre Resnais e Beauvoir de Hiroshima, mon amour).
Por dentro é a perspectiva de Subway Life. Quem conhece o site, sabe que a promessa de um livro se arrasta há anos, logo é com prazer que vemos surgir este objecto. Talvez esteja na senda de uma cada vez maior abertura para com publicações de desenhos livres, sketch books, carnets de voyage, etc. mas este livro contribui com uma visão muito particular, como veremos.
A experiência em si, quase programática (exposta no livro: desenhar sempre quem se sentar dentro do ângulo de visão nas suas viagens de metro pelo mundo fora), é análoga a algumas outras por nós conhecidas, como a “pessoa por dia” de Jorge Colombo em Nova Iorque, por exemplo, ou as mais diversas experiências “monitorizadas” pelos Urban Sketchers. A diferença está no facto de não haver quase qualquer preocupação pelo anedótico, pelo contextual ou relacional. Com a excepção da breve referência à cidade/linha de metro em que foram “capturados” as pessoas apresentam-se isoladas, na sua personalidade o mais completa possível no interior de linhas desenhadas. Essas introduções são, em si mesmas, belíssimas explorações: as brevíssimas linhas de texto – a de Lisboa é um poema completo – e os magníficos mapas-crescendo de cada cidade, amalgamando as percepções numa única memória-objecto.
O título explica-se. “Subway Life”. Vejamos o segundo termo, “vida”. António Jorge Gonçalves não parece estar muito interessado em revelar-nos o quanto conhece uma cidade, o quanto aprende em dois dias e consegue transformar em matéria a devolver a um interlocutor (o leitor, o espectador). As explorações sociológicas de Marc Augé sobre os “não-lugares” levaram, há uns anos, ao projecto Cimêncio, de Diogo Lopes e Nuno Cera, um exercício sobre os subúrbios. Mas onde o gesto político de Lopes e de Cera era, a um só tempo, positivamente o de acusar a desumanização dessas novas tramas urbanas e, negativamente, falhar em encontrar as vivências das pessoas que os habitam (pois encontram-se do lado de fora do muro dos subúrbios, não o habitam, muito menos o vivem), o de Gonçalves mergulha na potencialidade de um lugar de trânsito impessoal e desromantizado como o metropolitano (não é o comboio, não é um eléctrico, um barco, um cacilheiro) para perscrutar e retratar a vida que por lá passa e se guarda nos desenhos. Há uma carga de sensualidade inerente ao desenho à vista, que contorna os corpos das pessoas, sensualidade essa que tem a ver com um encontro, um diálogo, uma tensão. Centram-se eles, os desenhos, nas pessoas e nada mais. Como dissemos, as pessoas retratadas são-no num fundo branco, sem referências, todas elas sentadas no vazio, mostrando apenas os seus corpos, vestes, expressões, gestos e objectos como signo do que deixam ver de si, ou que deixam que o autor consiga traduzir e dar a ver deles mesmos.
Se bem que o movimento previsto seja o do metro, e a paginação procure a constância de uma direcção, com as fileiras destas pessoas sentadas, é curioso observar com atenção para entender quais os movimentos humanos ainda fossilizados no desenho do artista: um pé que se moveu, outra perna que se cruza, um bolo que se termina de comer e um café que se beberica (é o verbo exacto), um olhar de soslaio que se faz à vizinha, um sobrolho levantado e outro carregado por uma leitura nada indiferente, um telefonema atendido (ou entretanto desligado), e a observação directa, olhos nos olhos, com o artista e, depois, com o leitor. Alguns empáticos, outros desconfiados. O autor explicita pelo menos uma dessas histórias.
Num tempo que Gonçalves tem desenhado particular e quase exclusivamente por meios digitais (e até mesmo passageiros, como nas performances de desenho ao vivo), e apesar deste livro recuar a um tempo passado, é como que um regresso também a uma gestualidade que não se perdeu, mas apenas se transformou. Um rápido cotejamento aos desenhos mais realistas, menos estilizados (e, a nosso ver, mais belos) de Rei, fará emergir precisamente os traços onde se encontram os micro-gestos que ainda pertencem à memória do pulso de António Jorge Gonçalves. Essa dimensão está presente também nas linhas diversas dos desenhos, respeitantes aos instrumentos utilizados, às margens incompletas dos desenhos que corresponderão ao limbo do limite do papel, a maior ou menor grau de acabamento de um retrato, que se associará à velocidade “de exposição” ao modelo. Nessa óptica, a “vida” vem à tona em todas estas vertentes: gesto, velocidade, cumplicidade, circunstância, observação e exploração da pessoa...
Já no segundo termo, em inglês, é curioso que se utilize em “subway life” algo de imperfeito, já que nenhuma destas figuras revela uma vida “subway”. Bem pelo contrário, são todas elas vidas acabadas acima de qualquer uma das linhas que se quisesse ver como delimitadora ou baixa. Esta é a via de cima.
Nota: agradecimentos ao autor e ao editor pela oferta do livro. Fiquem aqui com o trailer feito pelo próprio artista:


5 de outubro de 2010

Destruição! AAVV (Chili Com Carne)

Os gestos editoriais de Marcos Farrajota são sempre dotados de certas características que tornam as suas edições muito particulares. Num panorama em que não se pode falar com propriedade da existência de um “mercado”, a existência de publicações que se esforçam por uma fasquia mais alta, ou até mesmo por uma fasquia diferente, são raros. Mesmo nalguns casos de projectos editoriais revestidos de princípios comerciais (penso, por exemplo, na VitaminaBD), ou na fundação de uma nova forma de olhar a possível distribuição nacional (os exemplos da Kingpin ou de El Pep/The Lisbon Studio), há sempre uma dose substancial do factor da dedicação pessoal, do risco, da aposta, o vulgo “carolice”. E depois existem projectos outros, ditos “sérios”, estabelecidos, com distribuição profissional, com contratos internacionais, etc., mas que as mais das vezes estão presos a fórmulas desinformadas e deslocadas nas novas realidades sociais da banda desenhada, acabando por serem mais contra-producentes do que verdadeiramente formadoras de novos públicos (os quais não têm necessariamente de ser “jovens leitores”). (Mais) 

A fórmula da felicidade 2. Nuno Duarte e Osvaldo Medina (Kingpin Books)

Uma vez que havíamos traçado algumas considerações sobre o anterior volume, a elas remetemos para evitar repetições. Esta opção, logo à partida, revelará algo que merece uma nota: é que a sua produção respeita princípios profissionais e mantém o mesmo nível de expectativa no que diz respeito a todos os seus elementos (se não se nota mesmo alguma melhoria). A sua junção enquanto projecto acabado não mostrará desuniões.
Como se imaginava na leitura do primeiro volume, é aqui que se adensam algumas tramas e se resolvem outras linhas descosidas no início (descosidas propositadamente, de maneira a que o fio se desenrolasse, corresse, dobrasse e dobasse). A elipse entre a publicação de um volume e o outro é curiosamente explorada pelos autores, como se ela se ressentisse na própria cronologia da diegese, abrindo-se para nós nestas primeiras páginas um tempo (“três anos depois”) que corresponderia a uma espera e à mudança na vida do protagonista Victor. Nesse tempo, desdobram-se características menos felizes de Victor, atingindo-se a expectável miséria que vem intimamente associada à glória superficial que ganhou através da “fórmula”, e a sua correspondente venda, comercialização, ou melhor, prostituição... O leão Abraão, aliás, recorda todos os fáusticos pactos da história, e o preço daí advindo. Arco perfeito, segue-se a redenção possível. Final, drástica, melodramática, sempre justa.
Curiosamente, este outro livro vem pôr em causa o que havia avançado o anterior: a fórmula revela a sua verdadeira face, menos própria, negativa, falsa, fraca; a própria “felicidade” desperta como errónea e passageira, porque enganadora, e nalguns casos tremendamente cruel; todas e quaisquer personagens desvendam as suas facetas mais mesquinhas e interesseiras, contribuindo para aquela imagem afastada da aparente fábula e exercício de auscultação do teor humano a que apontámos anteriormente.
Se exemplo de antecedente houver, e ainda que A fórmula da felicidade não cumpra o mesmo papel de exploração literária, da linguagem da própria banda desenhada e de um grau de filosofia mais complexo como do autor francês, penso que é a obra de Régis Franc aquela que mais pautaria este livro. Claro, existem as soluções de Sokal (Canardo), de Veyron-Rochette (Edmond, o porco), Canales-Guarnido (Blacksad), mas essoutros títulos estão demasiado subsumidos a géneros mais estreitos (e o grande exemplo de Maus é uma classe à parte, em que a questão da representação funda uma crise e uma metalinguagem especiais). Em a Fórmula, a modelação das personagens antropomórficas com cabeças de animais não procuram empregar as características desses mesmos animais senão de um modo telegráfico, rápido, quase de um modo como certos budistas adivinham o animal que uma pessoa era numa vida anterior, sem que se explorem de imediato quais os traços de comportamento sobreviventes... Algo para além da fisiognomia à la Le Brun , algo aquém da metempsicose.
A construção do livro, com toda uma série de chamadas de atenção à geografia cultural portuguesa, torna esta experiência de um interesse marcado, sobretudo no que diz respeito à sua dimensão editorial, que prova a possibilidade de apostas em textos capazes de seduzir um público relativamente alargado, sem a necessidade de se procurarem outras fórmulas – de género, de desenho, de humor, etc. É até como que uma espécie de exercício de resistência perante o nosso próprio panorama da banda desenhada narrativa. Nuno Duarte cria, não obstante as faces dos animais, algo totalmente credível no interior da sua fantasia, e passível de revisitações, até, por outros meios (se bem que alguns desses outros meios, por melhor que o texto de partida seja, esbarram sempre nos obstáculos da mediocridade dos seus instrumentos; a televisão é composta, por vezes, apenas de obstáculos). Os diálogos são quotidianos, as “vozes off” mais dadas à introspecção e reflexão, justas em relação ao protagonista, o moralismo é ausente (com a pequena excepção do “retorno à simplicidade”) e o “final feliz” equilibrado naquele mundo. E Osvaldo Medina, que tem aqui o seu melhor trabalho de banda desenhada, demonstra a sua capacidade (cultivada na animação) de adaptar os seus muitos instrumentos às necessidades da narrativa, abrindo espaço para a sua liberdade de um modo curioso. A nitidez, legibilidade e adensamento do mundo gráfico que cria pautam-se no interior de géneros facilmente reconhecíveis, é certo; todavia, isso é uma força, um ancoramento seguro desta novela.
O jogo de A fórmula da felicidade é um tabuleiro simples, e com um objectivo claro, mas todo ele, e as suas peças, estão esculpidas de uma forma perfeitamente ajustada e acabada. Como não sei ler a fórmula do Victor, não atinjo o grau de felicidade que parece prometer, mas a leitura do livro em si traz uma outra, num grau talvez menor, talvez suficiente.
Nota final: por teimosia tecnológica, as imagens deste post foram retiradas a outros blogs (As leituras do Pedro e Leituras de bd). As minhas desculpas e agradecimentos.

2 de outubro de 2010

Os Positivos. The Roadtrip # 1. VM (autoedição)

A utilização da banda desenhada enquanto instrumento de propaganda ou de consciencialização política (não são sinónimos, mas antónimos éticos) é algo que tem uma vetusta história, conforme estudada por David Kunzle (por exemplo, a peça de Francis Barlow a que nos referimos aqui), ou reconfirmado no artigo de Alan Moore no primeiro número de Dodgem Logic. Mais recentemente, a banda desenhada é utilizada tanta como instrumento de publicitação de comportamentos ou de direitos (como lavar as mãos, como fazer o registo eleitoral), como intimamente associada a certos movimentos políticos (usualmente associados às esquerdas várias). No site desta série, encontrarão o seu historial, a sua vida mais recente enquanto obra digital (que acompanháramos intermitentemente mas, fraqueza nossa, é raro citarmos trabalhos online), e o seu perfil político, exposto enquanto “d.i.y. punk rocker de propaganda veggie anti nazi com humor e depressão quanto baste”. A publicação que gratamente recebemos destina-se aos “saudosos do papel”, uma edição print-on-demand disponível a todos os interessados. Nesse sentido, esta publicação portuguesa estaria muito bem entregue às mãos de uma plataforma como a Active Distribution, a qual tem uma secção considerável de banda desenhada de “resistência”, resistência essa feita contra uma certa hegemonia unívoca de princípios partilhada no mundo ocidental tardo-capitalista.
Este livro é um objecto curioso a vários níveis, sobretudo nos cruzamentos de linguagem que nele encontramos. Se por um lado está pejado de descrições de acção directa e de métodos de guerrilha urbana afectos ao anarquismo contemporâneo [leiam parte dos comentários para "correcção"] (assalto a uma capoeira industrial, utilização de telecomunicações obsoletas de forma a escapar a um controlo banal pelas forças da autoridade, estratégias de “confusionismo” para escapar às malhas legais, e, importantemente, certos princípios éticos no combate a fazer), elas estão, por outro, subsumidas a uma narrativa ficcional, divertida até, em torno de um grupo de amigos, activistas, e as suas actividades (prevê-se ser este o primeiro de dois volumes). Logo à partida, isso permite uma certa fluidez em que a indoctrinação não é feita através de fórmulas ou de uma apresentação da espécie do “manual” ou da “gramática”, mas de uma história. Porém, essa mesma escolha pode fazer incorrer no perigo de, ao não se encontrar algum grau de simpatia para com as personagens e as suas acções, o objectivo segundo, de apresentação desse ideal bem vincado, acabar por se dissipar.
Um outro nível de mistura está no nível da sua representação. O estilo de desenhos, a figuração simplificada e sem olhos, a composição de páginas, a utilização de tipos de letra variados recordará mais uma banda desenhada infantil ou de tiras comerciais de jornais (digamos algo desde a Turma da Mônica a Dilberts-Cathys) do que aqueles estilos mais usualmente relacionados com a sua família política-estética mais natural, com autores maiores como Seth Tobocman, Peter Kuper, Philippe Squarzoni ou Gord Hill. Tratar-se-á de uma estratégia de sedução pelo traço fácil, rapidez de execução e leitura, como se se tratasse de uma estenografia mínima para veicular a história? Não se entenda, ainda assim, que se trata de um livro simplista: o equilíbrio entre páginas estratificadas e bem geridas nos tempos das acções e aquelas que estão ocupadas por uma mais alargada presença de texto, porque expositivo, senão mesmo doutrinário, é justa. Recorrem-se a muitos elementos e estruturas clássicas, mas o seu propósito é precisamente a clareza de exposição para que o sentido não se atrapalhe.
Finalmente, o último cruzamento que identificaremos é ao nível da própria língua, havendo uma distribuição quantitativa quase idêntica entre o português e a língua inglesa. Todavia, aqui surge desde logo um problema relativo. É que o inglês utilizado – se bem que retrate um uso absolutamente natural em toda uma geração – não são mais do que frases feitas e bastas vezes repetidas em toda uma série de plataformas culturais, do cinema à música popular, do youtube à banda desenhada... “dude, u fucked up”, “can of whoopass”, “da fuck?!”, etc. O aspecto algo paradoxal desse uso é que também é necessário qualificar que a geração a que me referia, que utiliza de facto nas suas conversações em português essas expressões, citações, e chavões em inglês, é uma geração com determinações sócio-económicas que lhes permite ter acesso a uma certa cultura contemporânea advinda da produção norte-americana, precisamente aquela produzida na tal hegemonia que, à partida, todo Os Positivos parecem querer combater. I'm just saying...
The Roadtrip parece-nos ser um bom ponto de partida para dar a conhecer estas personagens (mesmo que desconheçamos os trabalhos anteriores, e se as pequenas indicações de “aventuras” anteriores tenham sido alvo desses mesmos trabalhos), assim como entender um universo de acção directa anarquista que pugna pelos direitos dos animais (não só pelas acções retratadas como pela citação do filósofo Peter Singer, autor do controverso Libertação Animal e do fundamental Ética Prática, publicados entre nós pela Via Óptima e Gradiva, respectivamente, e cunhador do termo “especismo” - aliás, seria interessante explorar, na história, a exposição do posicionamento anti-exploração animal dos Positivos), expõe uma agenda de resistência ao capitalismo liberal (cruzando-nos com os tais conselhos práticos, e as citações de Jeremy Bentham, Theodore “Unabomber” Kaczynski, e uma banda que parece cantar algo saído das bíblias do anarquismo, talvez Bakunin?, Kropotkin?), e mostra o total desprezo, humorado, de tudo o que cheirar a extrema-direita (participa neste livro, e imaginamos que também no próximo, uma chusma de nazis tão débeis quanto ridículos, e sobre os quais chove um chorrilho de piadas de lavabo).
No entanto, perguntar-nos-emos se não se tratará de algo que apenas “prega aos conversos”ou “ensina a missa ao padre”, uma vez que toda a sua linguagem e agenda apenas poderá chegar àqueles que desde logo partilhem ou simpatizem com as mesmas causas. Por exemplo, nesta parte da aventura, o tal grupo visita o “Cavaquistão”, apontando tratar-se de um território do interior cheio de gente de mente fechada, parola, “hillbilly cunt-tri”, “redneck paradise”, onde se encontram “religiosos, homofóbicos, salazaristas”, etc. A nosso ver, porém, esse tipo de discurso coloca logo à partida a ideia de uma total separação e discriminação em relação a uma outra vivência que não a dos jovens amigos, votando-a necessariamente a uma experiência menos progressista, logo, politicamente conservadora e “inimiga”. No entanto, uma forma mais equilibrada seria entender as distâncias de inscrição cultural e as circunstâncias que permitem uma maior ou menor circulação cultural, participção educativa e democrática, e procurar soluções de aproximação e integração nos tais discursos contemporâneos e progressivos desejados. O confronto directo entre duas ideologias totalmente adversas – por ambas serem pautadas por uma intransigência obrigatória – terá de levar a um impasse inultrapassável. A “vitória” dos anarquistas Positivos só é natural por ser deles mesmos o discurso que nos é entregue... Esse mesmo discurso, por exemplo, mostra o tal grupo de nazis retratados como homens-porcos descerebrados, o que é cómico, mas nada sério e até mesmo impedindo, talvez, de retratar verdadeiramente os movimentos de extrema-direita reais que existem em Portugal, mais preocupantes do que as caricaturas apresentadas neste livro.
The Roadtrip pode ser lido como um livro relativamente leve sobre um grupo de amigos, jovens, influenciados por toda uma panóplia da cultura homogénea em vigor mas também por princípios políticos desviantes das normas. Mas se a primeira camada, superficial, é de fácil entendimento e consumo, o seu propósito mais profundo vê-se encurralado numa forma de comunicação algo deslocada e paradoxal. A lei de Thelema, porém, deve estar sempre salvaguardada, e se o pode ser feito, feito está.
Nota final: agradecimentos ao editor/autor pela oferta do livro. Adenda: leiam, por favor, a zona dos comenntários, para ver uma resposta/discussão com o autor.