29 de julho de 2010

A Máquina Encravada. Bruno Mendes da Silva (Novembro)

Esta é, como se explica na introdução, uma “súmula alargada da dissertação de doutoramento em Literatura/Literatura Comparada/Literatura e Cinema, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve”. A tese original intitulava-se “Eterno presente, o tempo na contemporaneidade”, e este livro, em termos simplificadores, constitui-se, à partida, num estudo comparativo entre o filme Taxandria, de Raoul Servais (1994), e Souvenirs de l’éternel présent, livro hors-série de As Cidades Obscuras, da dupla Benoît Peeters e François Schuiten, e que se associa directamente ao filme, para criar um corpus cujo foco principal é o conceito do tempo, numa sua propriedade muito específica – a sua suspensão – e sua relação com outras categorias conceptuais, sendo a do espaço a mais imediata, mas passando igualmente pelas noções de modernidade, corpo, velocidade, estrutura, simulacro, corpo-ciborgue... Essas duas obras, irmanadas em termos de produção e diegéticos (apesar da mútua independência), constituem o ponto de partida para a reflexão de Bruno Mendes da Silva, não só numa primeira instância procurando encontrar quais as pontes de contacto entre os meios do cinema e da banda desenhada, como numa mais central e desenvolvida camada, utilizá-los como ponto de partida de reflexão sobre a condição humana na contemporaneidade.
Não estamos aptos, de maneira alguma, em tecer comentários sobre o cerne da tese em si. As observações que o autor faz sobre a contemporaneidade, desde a forma de vivermos as relações interpessoais através das novas plataformas digitais (as redes sociais, os meios de comunicação, e até mesmo os jogos ou ambientes de avatares) até à forma como reinscrevemos os corpos na vivência diária, a própria “formatação” da personalidade e o modo como comunicamos na sociedade da informação, tudo isso é alvo das reflexões de Bruno Mendes da Silva, auscultando conceitos fundados por pensadores mais ou menos na “moda” dos discursos associados a esses temas: Baudrillard, Virilio, Deleuze, Lyotard, Pierre Lévy e Sherry Turkle, entre outros (de um mesmo modo, as ficções de Borges e Calvino são citadas num mesmo plano que essas obras teóricas o que, revelando liberdade intelectual, não constrói, a nosso ver, uma perspectiva equilibrada entre os conceitos empregues). No entanto, tendo em conta o subtítulo deste livro, “A questão do tempo nas relações entre cinema, banda desenhada e contemporaneidade”, que foi precisamente – confessemos – a razão imediata pela qual nos levou à sua leitura, estávamos à espera de encontrar um novo e bem-vindo estudo académico que trouxesse um contributo substancial ao diálogo possível entre este modo de expressão que é a banda desenhada e o pensamento contemporâneo, a arte e a cultura em geral. Digamos desde logo, sem titubeações, que essa expectativa saiu gorada.
O problema maior, em relação à banda desenhada, é, a uma só vez, a brutal generalização e a instrumentalização verificadas nesta obra académica, colocando de lado totalmente o facto de se tratar de uma disciplina artística com centenas de anos (ou se quiserem, com 150 anos) e uma amplitude considerável, ainda que não totalmente visível, de níveis de produção, impactos sócio-culturais, géneros, etc. Por exemplo, bastas vezes surge o contraponto entre a banda desenhada “ocidental” com a “Manga”, dita “banda desenhada oriental” (sic), sem quaisquer tipo de qualificações ou explicitações de maior. Aliás, chega-se mesmo a generalizar que há temas e formas recorrentes na banda desenhada “oriental”, inclusive a forma/direcção de leitura (jamais se procurando as especificidades que diferenciam o Japão, a China e a Coreia do Sul, já para não se falar de outros círculos, quer tão específicos como Hong Kong quer em termos de diferenciações nacionais, da Tailândia à Índia). Um outro exemplo é quando, a dado momento, se generaliza a banda desenhada como “sexista”. Não se trata de querer aqui dizer que não o é na sua maior parte, mas o mesmo argumento poderia ser utilizado em praticamente qualquer outra área criativa, e o facto de não se apontarem exemplos contrários aos que são avançados (Hergé, que apesar de recordar o trabalho de Ana Bravo, não é citado nesta tese, e de resto é tema sem grande desenvolvimento, e os Estrumpfes de Peyo, com a agravante de confundir as histórias originais) leva a temer por um equilíbrio final e digno de uma discussão académica a este nível.
Essas generalizações e a pouco desenvolvida análise estrutural em relação a essa área é explicada, em parte, pela quase ausência de literatura especializada apontada quer nas notas de rodapé (já de si em pequeno número para uma tese de doutoramento, mesmo simplificada, e também pouco claras, como veremos abaixo). Com a excepção do livro As Cidades Visíveis, esse fantástico exercício de João Ramalho Santos e João Miguel Lameiras em torno da série de Peeters e Schuiten, e que aborda questões que, fictícias, abrem espaço a um questionamento mais verdadeiro e desenvolvido, e de Understanding Comics, de Scott McCloud, o qual corre o risco de parecer a palavra final no estudo teórico da banda desenhada para muitos leitores, nada mais surge no panorama bibliográfico. Ora, mesmo não se esperando – e mesmo assim, porque não o desejar no círculo académico? – citações de ensaios e papers que se encontram disponíveis no meio académico especializado, e que abordam questões tangencial ou mesmo directamente relacionadas com aquelas abordadas por Mendes da Silva, a total ausência de outras fontes (para já, os livros teóricos do próprio Benoît Peeters) leva a crer que o estudo da banda desenhada se deixou por uma breve incursão, e não uma resposta continuada a muitos dos estudos existentes em torno do tempo e da banda desenhada, de Jan Baetens a Neil Cohn, passando por Groensteen, Morgan e Fresnault-Deruelle. Por exemplo, na página 36, citam-se “alguns estudiosos deste meio” sobre a forma como se “preenchem” os espaços intervinhetais, mas não há qualquer nota, nome, estudo citado, e também não é essa “ideia” identificável na bibliografia. Outra questão ainda, e aqui centralíssima, é a da relação entre o cinema e a banda desenhada, bastamente estudado, de formas mais ou menos interessantes, mas a ausência dos estudos fundamentais dessa relação não abona a favor de um trabalho bem conduzido (a última frase deste trabalho é “este fim das coisas surge, assim, como apanágio da condição pós-moderna (...), a condição temporal que Servais, Schuiten e Peeters arquitectam para Taxandria e que é, afinal, a condição temporal de toda a narrativa do cinema e da banda desenhada” (pg. 148, itál. orig., negrito nosso). Logo, apercebemo-nos do gesto de total generalização e instrumentalização da banda desenhada – neste caso exemplificada, modelada e presente em apenas um título (não-canónico, o que até poderia ser um aspecto positivo, mas é abordado muito superficialmente).
Existirá algum problema, à partida, nessa instrumentalização? Aqui, apenas as convicções poderão dar lugar a respostas. Se acreditarmos que o que importa é o avanço da exploração conceptual, e que qualquer corpus, por mais reduzido que seja, é espoletador desse mesmo instrumentário, aplicado e resultante, então tudo é permissível e conseguido. Se, porém, estivermos em crer que toda e qualquer área é digna da atenção do filósofo, como dizia Baudelaire, mas essa atenção deve ser pautada pelo rigor e a amplitude, então essa instrumentalização apenas cria metáforas, de breve e problemática aplicação, e que pouco contribui para um entendimento real dos seus objectos, e muito menos da área criativa a que pertencem numa primeira inscrição.
Dito isto, aquilo que é o cerne deste trabalho é explorado substancialmente, como não podia deixar de ser. Quais os modos de representação temporal neste filme e nesta banda desenhada, tendo em conta que na cidade (do mesmo nome, Taxandria, mas com pequenas diferenças entre cada texto, seja em termos estruturais, seja de focalização, seja de papel actancial) o tempo é um “presente eterno”, cidade cuja legislação obrigou o tempo a ser banido, ou pelo menos ter a sua passagem marcada. É nesse sentido que autores como Deleuze, sobretudo com os seus volumes sobre o cinema, se torna operacional. No entanto, ainda aqui parece-nos que a instrumentalização deste e de outros autores citados é feita sem que haja, em primeiro lugar, uma explicitação cuidada dos conceitos que se pretendem citar, transformar em ferramentas e empregar, nem, em segundo lugar, que haja uma procura por um requilíbrio desse mesmo conceito ao objecto em estudo. Ou seja, corre-se o risco de se pensar que há apenas uma interpretação consensual desses mesmos conceitos. Isso ocorre, por exemplo, com a ideia de “modernidade”, conceito multifacetado e que ganha empregos variados, paradoxais e contraditórios conforme estejamos a falar de Baudelaire, Calinescu, Marshall Berman ou Habermas (um excelente ponto de partida, mas não único, desta problemática é o texto de João Barrento, “Que significa ‘Moderno?’”, incluído em A espiral vertiginosa). O mesmo ocorre num momento em que se comparam de forma directa e sem contextualização os conceitos de “virtual” em Baudrillard e Deleuze-Guattari, os quais, a nosso ver, partem de pressupostos diferentes – no primeiro, relacionando-se por oposição ao real (que “desertifica”), nos segundos co-participando com o “actual” na tessitura de todo o real – e levam a consluões e aplicabilidades também díspares. Por outro lado, e não obstante o ridículo que é apontar dezenas de exemplos que não foram utilizados, pois um investigador não pode falar de tudo mas sim do que for pertinente na circunferência dos seus objectivos, a ausência de outros exemplos estudados com maior desenvoltura torna qualquer generalização da categoria do tempo em qualquer das áreas problemática (pois poderíamos olhar para Here, de Richard McGuire, ou The Cage, de Vaughn-James, ou as estruturas diagramáticas de Ware, ou as tramas heteróclitas de tempo e marca em Baudoin, David B., ou outros, para encontrarmos crises dessa organização temporal – e a suspensão é ainda organização – na banda desenhada; no cinema, e ainda para mais no de “animação”, em que Servais se pode inscrever, poder-se-iam colher exemplos desde Cohl a Richter ao Chronopolis de P. Kamler, para encontrarmos explorações curiosas e produtivas dessa mesma categoria neste território).
Essa falta de sistematização é notável pelo titubeante, espraiado mas jamais aprofundado exame das relações possíveis entre a série da dupla Peeters/Schuiten e este livro em particular, um estudo da questão da vivência nessa pólis, um contraste sistemático entre as personagens e elementos-chave entre o filme e o livro, etc. Numa fase final, “O simulacro de Irina”, proliferam os exemplos, os modelos, as máquinas, os comportamentos contemporâneos (desde o Second Life aos RPGs) para ilustrar a ideia multifacetada e multímoda da contemporaneidade que é estudada, mas que, a nosso ver, precisamente graças a essa proliferação, se neutraliza numa flutuante constelação pouco atomizada, e assim inanalisável: não sendo analisável, não retribui portanto com instrumentos moldados e novamente aplicáveis.
Haveria alguns pontos interessantes a discutir, mas que não têm a ver propriamente com o estudo da banda desenhada (e cinema), e entram em temas menos sólidos para nós. Sendo leitores de Deleuze-Guattari, e crentes na frase programática “isto caga, isto fode” de O Anti-Épido, independentemente das plataformas digitais (este blog!), sentimos o peso do corpo, dos corpos e encontramos ainda aí desejo; não há ainda nenhuma conquista inevitável do corpo-ciborgue. O autor explora essa parte, sobretudo relacionando-a com as dicotomias sexuais (de associação género-social) típicas em Servais e Peeters-Schuiten, de uma forma acabada.
A questão das fontes é sempre uma forma relativamente interessante e segura de encontrar elementos externos à obra, mas os quais, tornando-se disponíveis enquanto pontos de contraste e/ou comparação, podem despertar pistas de interpretação. Todavia, é preciso algum cuidado para não as tornar como que chaves últimas dessa mesma interpretação, sobretudo se não se procura escavar nelas para encontrar os fios vermelhos, as afinidades electivas, as cinzas de um no fogo do outro, e se se reduz a uma espécie de alegria em encontrar pontos de contacto superficiais, derimindo as diferenças a um mero acaso. Ora, num ou noutro ponto, é o que acontece. Por exemplo, o pintor surrealista belga Paul Delvaux é citado várias vezes, dado o seu papel (assumido, documentado) sobre o filme de Servais. Mas quando se comparam as paisagens de um (nas telas) e de outro (nos filmes) para apontar a falta de personagens no segundo como uma circunstância no realizador, penso que se incorre no perigo de querer reduzir precisamente os espaços representados a paisagens neutras, quase como células de animação que pudessem vir a ser reutilizadas em contextos diferentes. Mas nas telas de Delvaux o cenário não é somente um espaço habitável. Veja-se L’âge du fer: o espaço, a paisagem, o fundo, é uma força dialogante com a figura feminina, criando todo um espaço associativo de contrastes que se presta a uma leitura relativamente aberta, ainda que circunscrita a um fantasma delimitado de temas, circunstâncias históricas, oposições sexuais, etc. No filme Taxandria, há inevitavelmente uma redução do espaço a “fundo”, por vezes inexpressivo, o que não é de surpreender nas mãos de Schuiten, cuja maior fraqueza é precisamente a falta de expressividade das suas personagens (a sua substituição por actores com Servais, curiosamente, actua num mesmo sentido, pela sua exploração “deadpan” à Nouvelle Vague).
O problema está em que em nenhum momento essas afirmações mais generalistas se mostram disponíveis a qualificações ou determinações, querendo fazer-nos crer, portanto, que o autor pondera-as como universalistas, de aplicação transversal, lei. Ora, a falta de rigor nesse passo é corroborada por outras ausências: ausências de outros exemplos de textos primários, ausência de diálogos com estudos e/ou autores de uma bibliografia mais especializada e que avançaram profundamente nestas questões, ausência até mesmo de uma hesitação do autor, a qual se revelaria um método de tactear um corpus inapreensível e, assim, revelar também um cuidado perante toda uma área artística.
Que a banda desenhada venha a ser progressivamente fazer parte dos textos culturais disponíveis na abordagem de todas e quaisquer disciplinas, sobretudo das ciências sociais e humanas, inclusivamente enquanto mero território de temas, personagens-tipo, pequenas aplicações de conceitos, é uma das formas de a própria banda desenhada ganhar direito de cidadania, é ganhar um lugar nesse imenso diálogo contínuo que constitui a cultura. Não obstante, qualquer outro objecto artístico vive já num círculo de conceptualização relativamente rico, e num quadro de referência considerado imperativo e básico para qualquer discussão. A banda desenhada não é excepção, mesmo que esse círculo e esse quadro não esteja tão divulgado na Academia como o das outras áreas. Seja. Mas tal como o desconhecimento da lei não é argumento para a não cumprir, o desconhecimento desse manancial conceptual em torno da banda desenhada (e, já agora, da animação, igualmente, ou outras fontes relativas à produção cinematográfica) não nos impede, porém, de sermos exigentes na construção dos diálogos que se desejam.
Por último lugar, fica apenas a chamada de atenção para a revisão científica das notas de rodapé, a qual é muito deficitária. As notas repetem inúmeras vezes os dados completos dos livros indicados, mas em largos casos sem jamais se citarem os números de página, e sem quaisquer comentários lateriais ou adicionais. Algumas dessas notas servem ainda para indicar um qualquer exemplo ou anedotas, mas sem deixar quaisquer pistas que permitissem ao leitor uma pesquisa já conduzida, como se desejaria num trabalho desta natureza.

28 de julho de 2010

Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo. Pedro Franz (edição do autor)

O mercado brasileiro de banda desenhada vive um tempo de grande produção e, graças aos vários certames, encontros e grupos mais ou menos organizados que parecem existir em várias cidades, está-se a viver eventualmente um momento dinâmico, mesmo que isso não signifique um grande sucesso comercial e conquista de públicos alargados, como noutras áreas. Nesse sentido, talvez seja análogo ao que ocorre em Portugal, cuja cena da banda desenhada é bastante dinâmica, mas obriga o público interessado em perseguir os momentos correctos, os encontros e as produções. Isto é, o público da banda desenhada contemporânea tem de ser obrigatoriamente activo, e não somente esperar que os meios de comunicação social ou as livrarias mais estabelecidas lhe apresentem o que se produz. No entanto, fique o aviso de que estas considerações são apenas impressionistas, superficiais, uma vez que seria necessário uma perspectiva mais informada e moldada para perceber este fenómeno de uma maneira mais completa, quer em Portugal quer no Brasil, para depois fazer uma comparação efectiva. Os ecos que chegam do Brasil não são constantes, nem panorâmicos, pelo que nunca poderemos – aqui em Portugal – estar seguros de como é que um determinado livro poderá ocupar o seu nicho naquele país. (Mais) 

Projecto Zona. AAVV (Zona)

Mais do que falar de cada uma das revistas que compõem este projecto, e dos trabalhos singulares que nelas estão reunidas, interessar-me-á olhar para ele como um todo, uma vontade contínua de procurar soluções sustentáveis de editar, publicar e distribuir uma produção de banda desenhada feita por autores portugueses (e além), no interior de uma lógica relativamente comercial e com preocupações de conquista de leitores de uma forma ampla.
Até à data, este projecto, que começou individualmente pela vontade do autor e editor conhecido por Fil, mas rapidamente angararia o trabalho de André Oliveira (que tem aqui uma forma de apresentar muitos dos seus argumentos realizados, e que atravessam vários estilos e humores), conta com cinco publicações, a saber: Zona Zero (datada de Maio de 2009), Zona Negra (Setembro de 2009), Zona Fantástica (Março de 2010) e Zona Gráfica Vol. 1 e Vol. 2 (ambas de Maio de 2010). Todas elas apresentam-se no formato de revistas, com o interior colorido (à excepção da Zona Negra, a preto-e-branco, procurando uma exactidão com o género que aí visitava, o horror), flutuando pela centena ou as duas centenas de exemplares, em impressão digital e uma distribuição que vive dos festivais e feiras ou dos circuitos bloguísticos. Ou seja, trata-se não tanto de um projecto com uma estrutura comercial alargada, mas sim uma espécie de fórum de autores mais ou menos com propósitos comuns que aqui encontram uma maneira de publicar em papel (o fim último da banda desenhada ainda de acordo com muitas perspectivas), dar-se a conhecer e se cruzarem com outros autores.
Este tipo de projecto faz-nos recordar outras tentativas mais ou menos intervaladas nos últimos anos que tentam recuperar a ideia de revista de banda desenhada, depois da derrocada desse sistema ou modelo de publicação pelo início dos anos 90. Se durante décadas, sobretudo aquelas vividas na infância de muitos dos leitores actuais de banda desenhada, existiu uma permanência do modelo da revista semanal com um excerto curto de uma história, que se espraiava na expectativa de meses para depois coalescer num álbum, com o desaparecimento das revistas Tintin, Jornal da Bd, Selecções BD e outras quejandas, esse modelo viria a ser derrotado. Cabe à sociologia, ao estudo de mercado, à entrevista aos autores, editores e público o estudo das razões dessa alteração, que foi vista por alguns (nostálgicos) como o fim do único modo sustentável de criação de banda desenhada, por outros como um fim natural a uma certa forma de estar cultural da própria ideia de banda desenhada, e que entrara em crise. Esse modelo, seja como for, seria revisitado por muitos projectos, quer por círculos alternativos (que mais do que um fanzine auto-sustentável, procuravam fórmulas de sustentabilidade com a permanência de autores/personagens, temas, etc.) como nos casos da Hips!, da Ai-Ai, da Bizarro, quer por círculos preocupados com uma divulgação ampla do campo cultural que lhe era próprio, sendo o exemplo da Epitáfio o mais consolidado, pensamos. Nesse “modo de ataque”, também existiram gestos que procuravam a criação de bandas desenhadas redondamente inscritas em géneros reconhecíveis, sem grandes problematizações e que procuravam portanto conquistar estratégias criativas mais atreitas àquilo a que se pode chamar de banda desenhada comercial (sem que haja uma verdadeira conquista comercial, expectável por essa palavra). Aí tanto surgem exemplos de fanzines de círculos reduzidos (a título de exemplo, a 9 Gunas, de Aveiro) como tentativas mais arrojadas em termos de distribuição, como a Art Nove. Porém, quase todos esses projectos vieram sempre conhecer um qualquer fim e, na esmagadora maioria dos casos, um quase total esquecimento. Mais perto dos nossos dias, outras tentativas mais ou menos irmanáveis encontram-se em projectos como a Blazt ou a Sketchbook.
As bandas desenhadas incluídas nos projectos da Zona inscrevem-se nesse território a que dei o nome de “comercial” apenas no seu sentido de géneros, de tipologias de escrita e de desenho, ou de vontades criativas. Em termos pragmáticos de financiamento, edição e distribuição, o projecto arranca de uma forma humilde, mas sustentada, segura e associada a outros eventos (MotelX, um festival, etc.), de forma a querer talvez assegurar uma maior continuidade.
Os trabalhos que apresenta são muito variados, como é de esperar. Não podemos dizer –foco especial neste espaço – estarmos perante experiências inéditas em termos de escrita ou de desenho; os objectivos comuns e gerais destes autores são a criação de bandas desenhadas legíveis por um grande público, em géneros já estipulados (o humor, a ficção científica, o fantástico, o horror, nas suas variantes contemporâneas em torno de vampiros e lobisomens e ainda zombies...). Quase todos são pautados por uma construção mais ou menos convencional, e muitos procuram efeitos de uma espectacularidade relativamente simples. Nota-se como fundo idêntico uma atitude que se vê repetida vezes sem conta em toda uma série de projectos desta natureza, que é a da reprodução de formas de criação idênticas àquelas verificadas em certos circuitos de banda desenhada internacional, sobretudo norte-americana, provinda de projectos economicamente “alternativos” à Marvel, à DC e à Kodansha, mas que mergulham à mesma nas mesmas fontes de fórmulas. Ou seja, não se procurará na Zona outras naturezas da banda desenhada, experiências contemporâneas, explorações alternativas mesmo no interior de certos géneros, mas sim formas de respostas directas, de continuidade, de diálogo com essas construções.
Dito isto, é preciso ler estas publicações no interior desses limites. E, nesses limites, é um projecto que conquista o seu espaço de uma forma digna. Não apenas pelo visível ensejo em se apresentar com a melhor qualidade gráfica possível, que as tecnologias modernas de impressão digital tornam mais acessíveis (com a excepção de uns poucos acertos, a impressão é boa), mas pela reunião de autores portugueses, e alguns brasileiros e argentinos, como ainda pela forma de publicação a que nos referimos acima.
Repetindo, dada a natureza diversa entre cada número, é natural que se encontrem trabalhos de diferentes tons entre eles, e de várias valências. Uma das recorrências são as histórias curtas, que respondem ao tema em questãoora seriamente, procurando o “shock finale” do costume, ora de modo humorístico; outra são os “teasers” ou inícios de histórias, que se prometem continuar algures, mas raramente encontram esse desfecho e/ou desenvolvimento (Hugo Teixeira é o único que abre e fecha uma sua história, mas aquilo que abrira não desemboca da forma mais encaixada no fecho). Em termos de escrita, são variadíssimos os autores que pretendem auscultar aqueles temas recorrentes da crise existencial da suas personagens através de monólogos sofridos, usualmente acompanhados por acções extremas pelas mesmas, revelando um qualquer segredo ou trauma que está fora do nosso alcance, e deveria funcionar como isco para desenvolver essa personalidade, adivinhada a agir em futuros episódios. Mas as mais das vezes soam a promessas que jamais encontrarão a sua satisfação, precisamente porque se encostam em demasia em premissas banais, à trailer, mas que não revelam elementos suficientemente elaborados para virem a ser desdobrados numa história mais paudada e modelada. Fica a promessa, mas há um limite para promessas.
Em termos da dimensão visual, encontram-se todos os espectros: desde o fotorealismo de Man e Eduardo Monteiro (mais dado a pin-ups), às formas de alta legibilidade de Pedro Carvalho, Filipe Andrade, Carla Rodrigues, José Pinto Coelho e Rui Alex e o trabalho da dupla brasileira Matheus Moura e Caio Majado, a trabalhos mais expressionistas como os de Filipe Coelho ou Joana Afonso, a abordagens mais ilustrativas como a banda desenhada de Bruno Bispo e Victor Freundt, ou a desenhada por João Ataíde, ou ainda de contornos mais pessoais como Luís Lourenço (que recorda sobremaneira o trabalho de Pedro Morais nas tramas). Como um objecto de integração estranha, Richard Câmara também participa num dos números (ZG 1) com um pequeno exercício gráfico, quase oubapiano. Hugo Teixeira, talvez o mais conhecido deste grupo de autores, participa, como dissemos, com uma história em duas partes, relativamente afastada do seu traço mais regular, mas ainda assim próximo em termos de imaginário de autores como Tsutomu Nihei ou algo do género (ambientes pós-apocalípticos, pós-humanos, sem razões explícitas e abertas a uma exploração emotiva das razões que levariam a esse mesmo desastre).
Tudo isto constrói um cartão de visita suficientemente alargado para abrir alguma curiosidade e levar a uma convergência de autores que queiram conquistar um público interessado em abordagens mais convencionais e comerciais (em termos de criação) da banda desenhada. Alguns dos trabalhos sofrem de abordagens menos conseguidas, em termos artísticos, ou mesmo de escrita, mas não deixam de contribuir para essa mancha de sustentabilidade.
Para todos os efeitos, a Zona está criada.

Nota final: Agradecimentos a Fil, pela conversa. Para mais informações, seguir autores e aquisição, ver o blog da Zona.

12 de julho de 2010

Harvey Pekar. 1939-2010.

Ficam os teus livros, Harvey.
(desenho de Crumb, foto da net)

8 de julho de 2010

The Box Man. Imiri Sakabashira (Drawn & Quarterly)

Notas de Verão 1. Introdução: uma vez que estamos cientes da tortura de fazer scroll down para a leitura de textos gigantescos (independentemente da sua consequência e características), e sofrendo o abafado calor que nos assola, seguem aqui tentativas de abordagens resumidas e concisas de quatro textos de banda desenhada.
Sakabashira é uma das grandes mas fugitivas referências da revista Garo, é um daqueles nomes que surgem de quando em vez nas entrevistas ou artigos, mas não são alvo de estudo directo dos manuais e enciclopédias da mangá, e muito menos da edição dos seus livros por plataformas mais acessíveis entre nós. Mais uma vez, o esforço da D&Q ajuda-nos a aproximarmo-nos de uma visão mais ampla da banda desenhada moderna japonesa.
The Box Man é uma viagem cinética (de novo, um dos temas que recorrentemente temos vindo a apontar – o que não deixa de ser um exercício muito fácil, esta identificação de acções lineares e fechadamente causais) de um homem na sua motocicleta, no que parece ser uma missão de entregar uma caixa algures. Nessa viagem, junta-se-lhe uma pequena criatura, entre o rato, a tartaruga e o duende, e que serve de ponto de entrada para o leitor. O espaço que se atravessa é absolutamente claustrofóbico, no sentido em que a focalização de quase toda a história nos impede de ter uma visão geral desse mesmo espaço: tratar-se-á de uma cidade ou de uma vila, como manda a lei nipónica da ficção, pós-apocalíptica, ou tão-simplesmente é já o underground, o bas fond, o transmutado mundo obscuro do crime, dos lupanares, das casas baratas de pernoitar e soba?
Há um episódio intervalar, quando o homem e a criatura ficam apeados e são obrigados a atravessar um complexo de apartamentos, no interior de um dos quais se dá um espectáculo de wrestling a que assistem sempre às escondidas. Esses combates são feitos entre toda a espécie de monstros (os Kaiju das séries japonesas heróicas de televisão, de Ultraman aos Power Rangers) e vários humanos, passando por muitas mulheres em trajes e poses que, por mais sofredoras que pareçam, não escondem a sensualidade doentia que lhes subjaz, recordando por exemplo um livro de imagens de Toshio Saeki, ou outros mestres do ero-guro. Sakabashira é também um artista activo noutras frentes, como se pode ver no seu site, e muita da sua arte figurativa bebe precisamente dessas fontes para a criação de estranhas combinações de culturas (desencadeando alianças quasi-surrealistas à la Woodring ou os autores do movimento desconexo e variado do “pop surrealism”).
A resolução final, isto é, o desvendamento do conteúdo da caixa, que é feito de modo paulatino, não é apenas absurdo, mas muito informativo em relação a uma certa tradição, ou peso cultural no Japão para com os progenitores. E isso é unido ao espaço a que chega, o objectivo máximo da "aventura": um barco imperial, abandonado nas margens de um mar, e transformado numa espécie de limbo ou aterro sinatário de espectáculos de variedades de gosto duvidoso. Há bandas de rock, dejectos de parques de diversão, bonecos gigantes de animais e outros objectos estranhos da cultura japonesa. Tendo em conta a geração a que Sakabashira pertence, perguntamo-nos se não é uma crítica velada a uma certa tradição empedernida do seu país. O que é corroborado, transversalmente, pelo sítio em que deposita o tal conteúdo da caixa: um navio ... O conteúdo? Se o posso desvendar, fá-lo-ei: o pai.

Meat Cake. Dame Darcy (Fantagraphics)

Notas de Verão 2. Antologia dos primeiros 11 números do comic book do mesmo título, reunindo alguns dos trabalhos aí publicados, este tomo permite encontrar ou reencontrar as personagens recorrentes de Darcy (Effluvia, Richard Dirt, Wax Wolf, Hindrance e Perfidia, Strega Pez, Campi the Selfish Shellfish, Granny, e outros) – as quais, o mais provável, serão transferências ou decalques fantasiados de conhecidos e amigos da própria autora, ou até de facetas dela mesma, com Richard Dirt assumindo claramente a vez e a voz da própria Darcy. Dame Darcy é uma das autoras que compõem o leque diversificado e magnífico do “boom” dos alternative comics dos anos 90 nos Estados Unidos, mas apesar de certos possíveis elos a alguns dos seus colegas, esta autora não se lança/lançou a histórias autobiográficas de um modo tão directo como Debbie Drechsler, Julie Doucet, Chester Brown ou outros autores com quem poderemos encontrar algumas afinidades... Mesmo quando Darcy fala de si mesma na primeira pessoa, num abertíssimo pacto autobiográfico, isso ou serve para desviar a atenção para um estranhíssimo episódio fabuloso e delirante, ou então para recordar uma qualquer raiz de estranheza do seu passado.
Pois a matéria com que Darcy trabalha é aquela de que os pesadelos são feitos. Aliás, a sua província é mesmo a do estranho, do fabuloso, recuperando tanto tradições antigas (contos de terror, canções de pirata) como de novas plataformas de expressão dessas mesmas pulsões antigas (bruxaria moderna, culto da terra, etc.).
O desenho de Darcy, as mais das vezes apenas a traço negro, quase esboçado, e que procura uma imitação impura, quase ao acaso, de tramas mais seguras, quer trazer à baila um ambiente vitoriano por demais óbvio, mas, do ponto de vista narrativo, sempre uma época vitoriana vista pelas lentes de algumas distorções criativas, sejam elas o afunilamento pelos penny dreadfuls, as baladas tenebrosas da época, os contos de L. L. Clifford ou toda a óptica de terror gótico ou do romantismo suicida (Poe, Mary Shelley, Byron, etc.), e, claro está, a figura tutelar das ficções de Gorey. Essas referências ganham também maior corpo ao vermos a quantidade de pequenas histórias baseadas em contos tradicionais, cantigas e lengalengas, ambientes que recordam filmes mudos, e até o convite feito a Alan Moore para escrever uma história, presente neste livro, que cria um círculo coeso entre os habituais elementos de Moore, Darcy e Gorey.
No entanto, sem querer tornar a questão do género uma bandeira desfraldada sem qualquer razão e ao desbarato, há também uma busca por termas femininos. Não é só por ser uma autora (esse seria o último argumento), nem as personagens serem femininas – com a excepção do erradamente galante, misógino e doido Wax Wolf (será este uma corruptela actancial, adulta, do Max de Sendak, Max-enquanto-lobo, mas já morto?)… mas por todas as questões que se levantam na representação dos corpos dessas personagens, o foco particular na fatídica fortuna de toda a classe de mulheres, a expressão de poder que elas exercem sobre os demais, mesmo que ganhem contornos violentos (há muitas princesas, rainhas, mulheres que simplesmente abandonam os maridos e os filhos por uma felicidade totalmente autónoma, etc.) E também Effluvia é o espelho dessa personagem, maléfica sereia que puxa marinheiros excitados contra as rochas (de certa forma, e no estrito círculo da cultura popular de massas a que pertence, é algo que Lady Gaga tenta cumprir nos seus vídeos: mulheres já não há beira de um ataque de nervos, mas que o controlam e dirigem contra os homens ou as mulheres que as impedem expressar esse mesmo nervosismo).
Nalguns momentos, o desenho de Darcy ganha um nível de maior complexidade, apenas a traço, tornando possível a associação a Tony Millionaire, por exemplo, nalgumas vinhetas. Neste volume existem ainda dois trabalhos de tiras ou desenhos reversíveis, recordando Gustave Verbeek. Ainda, incluem-se outros pequenos exercícios, tal como o da inclusão de bonecas de papel para vestir com as suas personagens, uma tentativa de materializar de uma forma mais desdobrada o seu trabalho (e aqui próxima do que Ware faz nos seus livros).
Estas várias dimensões da autora provam-se pelas outras actividades pela qual é conhecida, e que passam por disciplinas variadas como a música, o cinema, ou o fabrico de bonecas de pano. Todas essas actividades confluem-se no seu estilo de vida e de arte, que constrói uma constelação de referências mais ou menos coesas, como se foi vendo.

Nota: agradecimentos à autora, pela simpatia e troca de palavras no Festival de Beja. Tivemos a oportunidade de fazer uma entrevista em vídeo a Dame Darcy, da qual daremos notícias quando for caso disso; agradecimentos a Paulo Seabra, João Figueiras, Manuel do Espírito Santo, Paulo Monteiro e Filipe Abranches por todos os gestos que permitiram essa entrevista.

Black Blizzard. Yoshihiro Tatsumi (Drawn & Quarterly)

Notas de verão 3. Esta é a edição de uma das primeiras novelas de longo fôlego de Tatsumi, criada e desenhada (de acordo com o próprio, em apenas vinte dias – mas, diga-se de passagem, nota-se; estamos longe do estilo maduro de Tatsumi, com as suas figuras bem delineadas e arredondadas, estranhamente cândidas para o tipo de histórias que constrói) em 1956, precisamente um dos períodos visitados pelo autor na sua autobiografia, A Drifting Life, de que falámos aqui. Este livro jamais tinha sido republicado, inclusive no Japão, pelo que é mais uma forma de entendermos o tipo, natureza e valor do trabalho recuperativo que Adrien Tomine, editor específico dos livros de Tatsumi para a a D&Q, assume.
A história é devedora da cultura cinematográfica norte-americana, não só em termos da trama em si e as suas referências, que de tão diluídas e gerais tanto se poderiam passar no Japão de então como nos Estados Unidos (ou noutros locais?), mas também em termos de perspectivas e ângulos das vinhetas, que tiram partido de um cardápio extremamente amplo (recordando algumas das experiências apontadas por Dan Nadel no seu Art in Time). Numa breve entrevista ao autor no final deste volume, há ainda outras pistas apontadas, como o Conde de Monte-Cristo de Dumas e uma história obscura e esquecida de um romance pulp.
Se bem que não se trate de um volume particularmente forte e interessante para quem procure uma obra acabada, totalmente desassociada de outras áreas artísticas, e que procure no interior da banda desenhada a exploração das formas que a existência humana assume (e as facetas da angústia, da solidão, da incompreensão, temas favoritos de Tatsumi), a verdade é que este é um objecto que nos ajuda sobremaneira a inteirarmo-nos do que significou a emergência e a evolução da gekiga no Japão, e a lenta modelagem do seu mercado. Ainda devedor a Hollywood está o seu ”final feliz”, mecanismo o qual o autor parece ter abandonado nas obras que se seguiriam e que o tornam um autor fundamental para o panorama da banda desenhada adulta do seu país.

Março Anormal. Tércio de Vina (El Pep)

Notas de Verão 4. Este livro é composto por três partes, três capítulos que e centram em três personagens diferentes: aquela que dá, enviesadamente, o nome ao livro, um Marco que acaba vítima de experiências estranhíssimas sobre o seu membro viril, Freaky Fred, cujo rosto está na capa, uma espécie de cultor de BDSM de cabaret, mas uma alma simples e romântica no fundo, e Óstro, misto de Conan o Bárbaro e Conan o homem-rã… Penso que a simples contagem destas personagens, e sua mínima descrição, molda de imediato a natureza humorística e subversiva de Março Anormal.
Na apresentação do livro no Festival de Beja, o autor mostrou concordar em parte com quem descreveu este livro como um corolário da adolescência, uma mescla bombástica de referências herdadas desses anos, provavelmente continuada nesta bola de humor, boa disposição, nostalgia e pura e simplesmente um desejo de não ter quaisquer tipo de vacas sagradas, ou então tê-las para que possam melhor ser conspurcadas. É certo que algum do humor é relativamente banal e taberneiro, mas é como se fosse um gesto de exorcismo contra as expectativas de uma abordagem bem-comportada e, enfim, é esse o métier a que a El Pep nos tem habituada: ser “suja” para que outros não o tenham de ser. A “ligne crasse” tem aqui os seus cultores.
Dessas referências apontadas, talvez algumas mais ou menos óbvias sejam as dos autores brasileiros Angeli e Laerte, entre uma mão-cheia de outros (o que prova que a passagem da Chiclete com Banana e outras revistas associadas fez mossa entre os autores portugueses, e ainda bem, já que os Piratas do Tietê é uma obra-prima desses tempos). Quer pela dimensão gráfica, com figurações das personagens lembrando a mais moldável das borrachas, um dinamismo hiperbólico, e cuja coloração ajuda a essa ilusão de textura e volume, quer pela trama alucinada e bebendo de todas as referências da cultura popular possível, aproxima o trabalho de Tércio de Vina dessa veia iconoclasta. Aliás, se olharmos com atenção a última vinheta, aqui mostrada, poderemos pensar tratar-se de uma homenagem desviante aos banquetes da aldeia de Astérix, sim?
Nota: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro.

2 de julho de 2010

Café Falado: Banda Desenhada e Ilustração. CCVF, Guimarães. 6JUL2010

Por convite do Centro Cultural Vila Flor, na cidade de Guimarães, na próxima Terça-feira, dia 6 de Julho, pelas 21h30, participarei no "Café Falado", que se apresentam adiante. Esta presume-se ser uma das primeiras conversas sobre banda desenhada e/ou ilustração que decorrerão com regularidade nestes encontros, a par das outras áreas artísticas discutidas.
Da minha parte, tentarei encetar uma breve discussão sobre as formas como se pode hoje discutir a banda desenhada e a ilustração na cidade das artes e da cultura, procurando apontar às suas especificidades mas também que forças as ligam às outras áreas criativas. O autor convidado é o Miguel Rocha, que surge como um exemplo equilibrado entre uma pesquisa séria a nível gráfico e narrativo, mas com preocupações de legibilidade e comunicabilidade junto a um público potencialmente amplo.
Se estiverem na cidade ou perto, apareçam. Será um belo café (para mim, descafeinado, por causa das horas...).
"Café Falado A palavra enquanto matéria que dá forma às ideias.
Encontros semanais com o objectivo de estimular a criação e promover a reflexão do panorama sócio-cultural, tendo a palavra como ponto de partida para acções de debate sobre diversas temáticas contemporâneas (literatura, teatro, arquitectura, cinema, ilustração, etc)."
Nota: agradecimentos ao pessoal do CCVF, pelo convite, sobretudo Rui Torrinha.

Oficina do Cego. Jornal.

Apesar de ter tido a obrigação de ter dado esta notícia há algum tempo, apenas se tornou possível fazê-lo agora. Em Outubro do ano passado, foi fundada a Oficina do Cego, uma associação cultural sem fins lucrativos dedicada às artes gráficas, e da qual sou um dos associados fundadores, juntamente com uma mão cheia de pessoas que se dedicam há alguns anos à edição, publicação, gravura, desenho, ilustração, banda desenhada, tipografia, estudo dos livros, etc.
O blog da associação contem muito mais informação, quer sobre como um vós se pode tornar associado (e porquê), como apresentar uma candidatura ao Projecto anual de edição da Oficina do Cego, quer sobre a nossa bolsa de formação (que abarca várias das áreas sobre as quais desejamos trabalhar).
Até à data, sairam dois pseudo-projectos da Oficina (digo-o dessa forma pois foram produzidos fora de um Plano de Edição oficial), o Canções Usadas, de que já se falara (aqui) e o Isilda, um livrinho de poemas de Manuel de Freeitas com ilustrações tipográficas de Luís Henriques. Outro projecto foi o primeiro número do jornal oficial da associação, que sairá entre duas a três vezes por ano. O primeiro número teve o L. Henriques como editor e designer-em-chefe, uma intervenção plástica e serigráfica do Pedro Cabral Santo, artigos escritos por vários dos associados e amigos, uma entrevista ao Vítor Silva Tavares, da & etc., intervenções gráficas dos vários ilustradores cúmplices do costume e uma gravura da Maria João Worm, autora do logotipo da associação, que agora se brande neste blog.
O jornal tem uma distribuição sui generis, como é típico destes projectos, e enquanto não temos poiso oficial, mas é grátis, a menos que queiram apanhar um dos 150 exemplares serigrafados e assinados pelo Cabral Santo, que custará 4 Euros.
Esperamos vir a dar mais notícias sobre as publicações deste grupo, mas também que mais gente se junte à festa e aventura, procurando produzir sempre mais e cada vez melhor objectos gráficos na nossa praça.

Art in Time. Unknown Comic Book Adventures, 1940-1980. Dan Nadel, ed. (Abrams ComicArts).


O editor desta nova antologia, Dan Nadel, referindo-se à anterior experiência com Art Out of Time, explica que este volume não pretende ser um seu complemento ou continuação, mas antes um “companheiro”. Se em relação à outra publicação o propósito de Nadel era “ampliar a discussão sobre a história e possibilidades da banda desenhada [e...] aquilo que ficou de fora das várias histórias ‘oficiais’ da banda desenhada”, desta feita pretende focar o próprio meio em si, como veículo físico (atentando aos empregos da cor, da linha, etc), como plataforma de trabalho (focando histórias de autores mais conhecidos por outros títulos ou personagens, como no caso de John Stanley ou Bill Everett), e como domínio dos géneros (explorando exemplos profundamente enraizados neles). Ou seja, não se estará aqui a perscrutar a obscura história gigantesca da banda desenhada dos Estados Unidos à procura de pérolas que tenham ficado esquecidas pelo brilho ofuscante de outras referências, mas antes à procura de exemplos que, apesar de menos brilhantes, contêm em si um qualquer valor que Nadel compreende como digno da nossa atenção.
Alguns destes autores e trabalhos têm expostas, de uma forma muito visível, na sua superfície, as razões pelas quais não pertencem àquela linha de obras recuperadas pela tradição, pela referência histórica, pela memória da banda desenhada. Ora pela fraca arte, ora pelas narrativas derivativas ou nem sempre bem geridas, e sobretudo pela sua natureza profundamente enraizada no seu tempo, de um modo que não as torna sobreviventes para além dessa circunstância – daí ser uma “art in time” –, há sempre um domínio qualquer de fraqueza que lançara estas obras no esquecimento. O que o editor nos pede, porém, é um esforço suplementar. Em cada um dos pequenos textos de introdução a cada autor ou história, Nadel apresenta uma meia-dúzia de linhas, algumas analíticas, que nos fornecem os instrumentos e as razões da escolha, de forma a que compreendamos esse gesto e nos apercebamos do que pode ser (ainda) recuperado. Apenas a título de exemplos, não se trata de uma reintegração intelectual, como sucede com a obra de Masereel, nem “fora”, como com a de Hank Fletcher (aliás, Nadel não se pauta por géneros únicos, como ocorre em algumas antologias de banda desenhada de segunda categoria, como Supermen! The First Wave of Comic Book Super Heroes; ele percorre-os a todos), ainda que sublinhe o factor ou o prisma da “aventura” comum a todo o material aqui reunido. Trata-se mesmo de enfrentar a história da banda desenhada norte-americana com tudo aquilo que ela tem de cultura popular inscrita no tempo e insustentável com o avanço permitido pelas sucessivas conquistas sociais. O racismo, o machismo, a apologia da violência estão aqui presentes, mas também a ingenuidade hippie, e a confusa amálgama das culturas e dos espiritualismos associados à geração de 1968-69 de São Francisco. Também um entendimento do típico anonimato ou mero trabalho da “indústria” é exposto, ao discutirem-se autores que ou são obscuros (por vezes em extremo, ainda que esta questão seja discutível, uma vez que existem artigos, fanzines e livros de história que mencionam estes autores – simplesmente não estão na “linha da frente”) ou que não assinavam os trabalhos ou cujas obras noutros locais eclipsavam outros. É um olhar sem desculpas sobre estas obras obscuras, mas o mesmo permite, talvez, uma pequena reinscrição, uma imagem ligeiramente diferente, talvez mais ancorada na realidade, do que uma atenção exclusivamente marcada pelos “Mestres”, a qual aliás leva a uma visão ahistórica e desequilibrada.
O livro está dividido em quatro secções, cada qual dedicada a um prisma em particular, mas isso não impede o editor de vogar por entre eles, chamando a atenção, através desse prisma, para essa mesma dimensão num trabalho apresentado numa secção anterior. Encontrar-se-á, portanto:
Uma primeira secção intitulada “Demand and Supply” (“Procura e Oferta”) mostra-nos dois exemplos de comics no seio da indústria comercial e genérica, cujos autores tentavam, de uma forma ou outra, providenciar com uma visão mais pessoal. Em primeiro lugar temos duas histórias do obscuro Harry Lucey, dois casos de Sam Hill (de 1950), um detective algo bruto e com um rosto parecido com o de Robert Mitchum. Em segundo, um super-herói criado por H[arry]. G. Peter (mais famoso por desenhar a primeira Wonder Woman/Mulher Maravilha, de Marston), e chamado Man O’Metal (três episódios consecutivos de 1942), cuja origem e poderes poderão eventualmente parecer mais ridículos do que o habitual, precisamente por força do hábito em relação a outras personagens mais famosas. Misturando os géneros do super-herói e do detectivesco, e com uma trama onde o recurso ao deus ex machina é imperioso, e onde parece que as surpresas e continuidade da história são imparáveis e infindáveis, o interesse reside no seu estilo gráfico, misturando nitidez de figuração, contornos grossos e composições dinâmicas, o que influenciaria sobremaneira Jack Kirby (nestes anos ainda com o seu desenho “esquálido”).
A segunda secção, “Where they were drawing from” (“Onde encontraram inspiração?”), foca numa mão-cheia de artistas muito diversos, mas tornando-os como uma espécie de “mediadores”, ou “vasos comunicantes”, quer associando-os a autores anteriores (fontes) e posteriores (descendentes), complicando ou matizando a história das fontes, uma das linhas ainda hoje mais fortes da investigação da banda desenhada. Assim, temos o Golden Lad (1946), um super-herói adolescente com uma história tão cómica como heróica, da autoria de Mort Meskin, que se encontra numa linha que vai de Milton Caniff-Noel Sickles e de Joe Simon-Jack Kirby para desembocar em Steve Ditko e Alex Toth (de uns herdando o chiaroscuro e o diálogo com o cinema, por um lado, e o dinamismo da acção, por outro, e aos outros oferencendo perspectivas cinematográficas radicais – parece que Meskin estudou cinema e viu 15 vezes Citizen Kane/O Mundo a seus pés, o qual trouxe à oferta visual um grande espectro de experimentação –, conceitos estranhos, um sentido integrado do design, incluindo a utilização de padrões e cores).
Pete Morisi também parece estar muito próximo de Toth, mas não atinge a candura e souplesse desse artista. Inscrever-se-ia na mesma família de autores que se poderia apelidar de “linha clara americana”, no interior da qual se procurava a maior clareza possível na figuração... O que aqui é apresentado seu é um detective duro, de pala no olho e cigarro no canto da boca, que dá pelo nome de Johnny Dynamite (duas histórias de 1954), devedor de toda a literatura policial do costume e com algumas soluções gráficas curiosas, mas sem grande lustro, a não ser o cinismo com que abraça a violência necessária das suas tarefas.
Sam J. Glanzman está presente com um homem das cavernas – literalmente, uma vez que é um sobrevivente Neanderthal – cujo nome é, acreditem ou não, Kona (história de 1962). Nadel associa-o às ilustrações pós-vitorianas de Joseph Clement Coll, e sublinha o dinamismo e a figuração poderosa das suas personagens, aparentando-o a Joe Kubert. Apesar de ser mais uma dessas figuras que cabem no saco com Tarzan, Ka-zar, Conan, Sheena, e outros, e apesar ter um limitado conhecimento da gramática do inglês contemporâneo, Kona revela-se uma espécie de filósofo cheio de Angst, com comentários sobre a natureza violenta do homem, a incompreensão da guerra, e observações sobre a violência do homem em comparação aos restantes animais. As pranchas são também extremanente curiosas, pois Glanzman procura toda a espécie de combinações e arranjos gráficos para poder compor esta história, claramente parte de um arco maior.
Um autor relativamente afastado desse território “pulp” é Michael McMillan, influenciado por alguns dos artistas do movimento Hairy Who e criando histórias que cruzam a alucinação poética contemporânea com os géneros de outrora – ficção científica, super-heróis e aventuras – para criar estranhos objectos que teriam todo o lugar nos circuitos alternativos de hoje. Chegaram mesmo a aparecer em publicações como a Funny Aminals (“corrigido” para Funny Animals na nota deste livro), Arcade e Short Order Comix. Não fosse o seu interesse não se prender somente a essa área criativa, encontraríamos mais trabalhos de McMillan, mas fez pouco e esporádico trabalho. Aparenta-se com alguns trabalhos de autores dos anos 80 de algumas bandas desenhadas em circuitos mais estreitos, com ideias e presenças fortes, mas que encontrariam noutros caminhos artísticos maior apelo.
Encontra-se nesta mesma secção a pièce de résistance de todo o volume, na nossa opinião: Adventures of Crystal Night, de Sharon Rudahl. Esta autora pertenceu à geração de artistas femininas associadas ao movimento do underground comix dos anos 1960-70, participando em projectos como Wimmen’s Comix, Snarf, e Bizarre Sex. Em 1980 publicou este one shot comic-book, pela Kitchen Sink, uma espécie de ópera espacial que reúne preocupações sociais, políticas, ambientais, raciais, etc. Apesar do desenho solto, quase despreocupado (Aline Kominsky e Trina Robbins participam da mesma dscontracção, mas Rudahl publicaria um livro maior recentemente, A Dangerous Woman), o resultado é uma história densa, que atravessa décadas através de uma cadeia bem estruturada de nós narrativos e elipses, que parte dos pressupostos da ficção científica para criar um comentário ao seu próprio tempo (como, aliás, quase toda a ficcção científica, melhor ou pior). No entanto, como escreve o próprio Nadel, o problema foi ter publicado este trabalho depois dos tempos gloriosos do underground e antes do advento a ferro e fogo dos alternative comics; aparecendo num interregno de atenção e companhia, acabou “abaixo do radar crítico”. Aqui está recuperado.
Segue-se a secção “It’s All in the Routine” (“Faz parte da rotina”), revelando trabalho de autores mais conhecidos por outros territórios em géneros mais espartilhados e dentro das convenções que lhes pertencem. O que se encontra aqui é mais da ordem da “curiosidade” associada a esses autores, ainda que cada um deles revele formas muito particulares de expandir o género em que operaram.
Em primeiro lugar, temos duas histórias de John Stanley (mais famoso pelas suas histórias da Little Lulu/Luluzinha e outras séries infantis) de terror (ambas de 1962), uma desenhada pelo próprio e outra por Tony Tallarico. Se bem que ambas se pautem pelo “final-choque” expectável (e cujo desfecho é apresentado na página da direita, tirando um pouco do choque permitido pela splash page final), o que importa reter é a forma como em tão curto espaço/tempo Stanley consegue construir um ambiente adequado e personagens “redondas” correspondentes.
Incluem-se duas histórias de Matt Fox (de Adventures into Terror e de Uncanny Tales, ambas de 1953), mais famoso pelas suas capas da Weird Tales. As histórias em si nada têm de surpreendente, e roçam mesmo o demasiado previsível, e até o ridículo, mas a forma como preenche cada vinheta – sobretudo na primeira história – com texturas carregadíssimas de traços paralelos e estratégias visuais antiquadas – mantendo sempre a mesma distância em relação às personagens – e outros pormenores, tornam-no um estranho achado. Essa primeira história é quase como se fosse uma imitação de Alexandre Alexeïeff, se bem que Nadel aponte antes a ilustração vitoriana e o cinema mudo.
John Thompson é conhecido pela edição do título Yellow Dog, um jornal/revista de banda desenhada do underground de 1968, mas não era um dos melhores autores presentes. No entanto, é a publicação em 69 do seu Cyclops Comics que o editor recupera. Trata-se de uma espécie de Promethea avant la lettre, no sentido em que é uma história que tenta fazer convergir as tabelas de correspondência de livros místicos (anjos, pedras, o zodíaco, os escritos bíblicos, várias personagens historicamente relevantes para o misticismo ocidental) com a história possível dos ciclopes. É uma amálgama confusa desses princípios, apresentados com soluções gráficas quer próximas de Crumb (a figuração das personagens, a criação de volume com pontinhos) quer de Moscoso (formas livres psicadélicas), com composições quase de design de posters de concertos, recorrendo mesmo aos alfabetos grego e hebraico e outros sistemas inventados, mas sem atingir jamais a clareza eventualmente alcançável desses outros autores (ou a verdadeira alucinação que lhe permitiria outra força). Nadel explica como foi a dislexia de Thompson que o colocou na senda da banda desenhada como forma de comunicação liberta das regras da linguística, e talvez seja aí que reside a razão desta massa amorfa de imagens e texto. No entanto, é precisamente essa falta de forma que o torna hipnótico e ressonante.
A quarta e última secção é dedicada às “Expansive Palettes”, nas quais, de uma forma ou outra, os autores reunidos demonstram as capacidades exploratórias e expressivas que se conseguem atingir com os comic books, no que diz respeito à cor e às texturas, mesmo a preto-e-branco.
É por demais a forma como o trabalho de Pat Boyette (uma história da Charlton Premiere de 1967) recorda a figuração de Alex Toth, já várias vezes citado aqui. Mas a razão disso é explicada por Nadel, que o coloca como discípulo desse artista e ainda de Steranko; mais, o facto de “Children of Doom”, uma dessas histórias de ficção científica admonitórias à la Ray Bradbury, ser escrita por Denny O’Neill (sob pseudónimo), torna essa malha de referências ainda mais apertada. O aspecto sublinhado pelo editor é o uso generoso de retículas e os apontamentos de cor de quando em vez. Se bem que estejamos longe de uma experimentação ou níveis de expressão permitidos pela cor, no interior da banda desenhada, de um Conefrey, Mattotti ou Breccia (cada qual a seu modo), o uso de Boyette não deixa de ser curioso, para mais no quadro limitado das técnicas de impressão da sua época.
Johnny Mack Brown é o nome de um cowboy originado num actor real de westerns semi-obscuros, e as histórias dos comic books com o seu nome são da autoria de Jesse Marsh (este exemplo é de 1950). Este autor não tem a capacidade de oferecer às suas personagens uma expressividade ou dinamismo muito felizes, e mesmo a história em si tem algumas deficiências de ritmo e carácter, mas “os locais, as paisagens e o design eram [as suas forças]”, segundo Nadel; já nas palavras de Toth (outra vez!), este autor “era o epítome da arte da banda desenhada da costa oeste, pela sua forma descomplicada de contar as histórias, através de vinhetas e páginas equilibradamente compostas”. O editor sublinha a cor das cenas nocturnas, em que as personagens são iluminadas pelo brilho da fogueira, mas pergunto-me porque é que o protagonista é iluminado em todas as cores e matizes dessa luz e o companheiro “mexicano bronco” está todo amarelo... Uma questão de estratégia narrativa-visual ou uma opção de representação política, até então “invisível”?
Bill Everett é obviamente conhecido pelos “seus” Namor e Daredevil/Demolidor, mas a história aqui escolhida (“Tidal Wave of Terror”, da revista Venus, de 1952) também mostra painéis cobertos pelas formas voluptuosas de violentas ondas às ordens de uma personagem fantástica. Herdeiro da tradição realista dos ilustradores norte-americanos da sua era, Everett seria igualmente influenciado pela dinâmica cinética e caricatural permitida pela banda desenhada, procurando misturas de estilos que melhor transportassem as histórias (basta contrastar a heroína desta história com a vilã). A história em particular poderia desaparecer esmagada por tantas outras, mas de facto uma rápida vista de olhos demonstrará o prazer e trabalho que o autor deve ter atravessado para construir estas vinhetas pejadas de texturas aquáticas, onde as personagens se perdem de um modo quase luxurioso.
A última história desta secção, e do livro em si, é da autora Willy (Barbara) Mendes, retirada do seu comic book de 1971 Illuminations. Trata-se de uma fábula hippie, fazendo convergir temáticas e elementos como a entrega à natureza, a importância da imaginação e da acção, o amor livre, a espiritualidade da família e o misticismo, e uma forte dose de fantasia informada pelo budismo, ou outras fontes não-ocidentais. Nadel aproxima esta história, “Johnny, Julie and Harpo” ao trabalho de Thompson incluído em Art in Time, mas ao passo que esse autor “tenta explorar e perceber a linguagem e a simbologia, [o trabalho de] Mendes é uma tentativa de explorar a nova paisagem mental e física que se tornou (brevemente) disponível no anos 1960”. Se bem que Nadel não o cite directamente, este trabalho de Mendes recorda-nos uma espécie de percursor do Frank de Jim Woodring: os padrões e texturas criados pelo alto contraste de pretos e brancos, cobertos de tramas e num equilíbrio entre expansões de preto aqui, áreas a branco ali, e um paciente trabalho de volumetria, subsumido aos conteúdos onírico-espirituais da história, aparentam-se com a exploração de Woodring, ainda que este último tenha conseguido atingir o nível de mestria plástica que se sabe. Há um pequeno momento em que as personagens de Mendes estão prestes a experimentar um balão, e os pássaros que volitam à sua volta convidam o leitor a colori-lo... Uma forma curiosa de expandir a fantasia hippie, o objecto “passivo” do livro e ainda procurar formas de interacção mais entregues entre leitor e autor.
O propósito do livro é assim cumprido da melhor forma, não estabelecendo uma linha condutora totalmente coerente ou subsumida a um só princípio organizador, estanque, indiscutível, mas precisamente deixando em aberto toda a porosidade possível, avançando sobre as fraquezas e falhanços, providenciando dessa forma um corpo bem mais heteróclito e dinâmico. Não nos quer parecer que o objectivo de Nadel seja conquistar todo um público amplo, se bem que o livro em si seja um objecto que não convida qualquer diletante à sua compra. Pensamos que será mesmo o de apresentar uma forma alternativa, mais livre, estranha, nada consensaul, em procurar dimensões outras, negligenciadas (e talvez negligenciáveis?) da história da banda desenhada, muitas vezes uma arte do seu tempo.
Nota: agradecimentos à editora pelo envio do livro.

1 de julho de 2010

Barrigada de livros ilustrados.

Por ocasião de vários encontros, certames, exposições e cruzamentos, fomos acumulando uma pilha de livros de literatura infantil ilustrada, picture books (com excepção de Lendas e Toadas); todos eles mui diversos entre si, oh, sim, mas cada um com os seus prazeres próprios, olarila. Vamos a eles, com notas brevíssimas sobre cada qual...

Lágrimas de crocodilo. André François (Bruaá)
Amigo de Prévert (com quem fez o maravilhoso Lettres des îles Baladar) e de Ronald Searle (de quem foi colega brevemente na Fortune, por exemplo), e parente gráfico de Saul Steinberg, André François foi um conhecídissimo ilustrador e cartoonista, tendo umas cinco dezenas de capas da New Yorker assinadas por ele, e esta sua experiência no campo infantil é informada pela mesma verve sarcástica de outros trabalhos mais adultos. Este livro pretende explicar uma expressão corriqueira mas, como um mecanismo de Rube Goldberg, a explicação procura o caminho mais longo e absurdo. O mais fantástico deste livro nem sequer é a própria história, tão estrambólica como divertida – as “escovas de dentes” dos crocodilos são um ponto alto –, que bebe do fantástico para criar situações curiosas, nem dos desenhos em si – em que rápidos apontamentos a verde e a laranja (lápis de cera?) fazem as cores todas desse mundo –, mas antes do formato de todo o livro, que a editora portuguesa respeita tal qual o seu original de 1956. O formato é inusitado, pois o volume vem dentro de uma caixa que se assemelha aos antigos sobrescritos de correio aéreo, com todas as informações usuais de um livro, e uma janelinha. É na leitura do livro que, aprendendo como se capturam crocodilos, ficamos a saber ser necessário uma “longa caixa para crocodilos” e os serviços dos correios. Assim, se bem que a descoberta do interior comece com estranheza e maravilha, após a leitura, apercebermo-nos-emos da necessidade imperativa desta caixa-capa, uma vez que é o próprio objecto explicado no interior, e torna-se a caixa que traz o nosso crocodilo. Esperemos que não precisemos de aprender o que são as suas lágrimas do modo como é descrito...
There was an old lady who swallowed a fly. Jeremy Holmes (Chronicle)
Baseando-se numa lengalenga em língua inglesa, Holmes cria um livro que é muito simples no que diz respeito à representação da narrativa em si, mas por outro é muito complexo e belo pela mecanicidade... ou mãocanicidade, como já havíamos antes discutido. O livro, pare ser ler, tem de dispensar o invólucro, rectangular, que faz as vezes de casacão da “velha”. Depois, é apenas a “barriga” dela que se folheia, descobrindo, à vez, os animais que ela foi comendo e que certamente a levariam à morte (citamos a partir da lengalenga): por ter engolido uma a mosca, tem de lançar outro animal que a possa apanhar e outro para apanhar o novo animal e assim sucessivamente: a aranha, o pássaro, o gato, o cão, a serpente, a vaca (que ocupa tanto espaço que precisa de uma página adicional) e, finalmente, o cavalo, que a mata. Cada nova imagem revela o novo animal fazendo algo ao anterior, e apenas o cavalo é que não tem direito ao mesmo tipo de imagem, uma vez que leva à morte da “velha”. O mecanismo do livro faz com que, ao virar-se a última página, os olhos dela fechem, para que rime com os braços cruzados dela, munidos de um ramo de flores e um mata-moscas, pronta a ser “fechada” e “vestida” novamente, reescrevendo o s gestos do princípio com um novo significado, mais macabro. De certo modo, não é mais do que o que se faz a um qualqer livro: abre-se o livro por estar vivo, fecha-se o livro por já ter morrido (até viver de novo). O encontro entre o texto e as imagens e os gestos associados é certeiro. Mais complicado que o Crocodilo de François, mas é a simplicidade deste último que torna esse encontro mais forte ainda do que este livro de Holmes.
Love. Lowell A. Siff e [Gian Berto] Vanni (Canongate Books)
A edição original deste livro é de 1964 (França: Pierre Tisné), logo remeterá este livro para toda uma série de experiências de livros ilustrados infantis dessa época que procurava explorar todas as capacidades expressivas, comunicativas e poéticas (de maneira alguma sinónimos) na materialidade própria do livro, isto é, considerá-lo não apenas como mero veículo passivo (o que nunca é verdadeiramente, na verdade) mas como palco activo e mutável na construção da narrativa que transportará. Como com André François (ver adiante) ou Bruno Munari. Vanni é artista plástico e passeia-se nos circuitos adequados; este é o seu primeiro livro, e único “infantil” ou “narrativo”, composto de desenhos, serigrafia e papel recortado. A narrativa é relativamente simples e com um intuito moralista: uma pequena rapariga, abandonada pelos pais, que não é particularmente bonita, de um olhar intenso, acaba por viver num orfanato, onde é mal-compreendida e mal-amada. Depois de uma mão-cheia de mini-peripécias que a vão diminuido ao olhar dos restantes colegas e mentores da instituição, ele esconde uma mensagem num local secreto, a qual é descoberta pelo director. Ao revelar-se essa mensagem quer ao director quer aos leitores, descobrimos que apesar de toda a dor e crueldade em torno da menina, ela tem a esperança da redenção de todos... As imagens surgem em camadas das folhas multicoloridas, com recortes vários, alguns dos quais encaixando-se sucessivamente. No entanto, para além de jogos geométricos e de texturas, nenhum desses dispositivos estabelece um nexo de necessidade ou de entrosamento imagem-texto, e acaba por surgir como uma espécie de exercício curioso, mas pouco mais. Não estamos perante os objectos de Munari ou de Komagata, nem da necessidade a que aludimos a propósito dos livros de François e Holmes: nesses, toda e qualquer dimensão concorre e converge para um significado coeso e comum. Ainda assim, Love está revestido de alguns princípios que poderão vir a conquistar os leitores de, por exemplo, O Principezinho.
Lendas e Toadas do Nosso Povo Singelo. Ana Saldanha/ Samuel Mahaffy de Sousa Rodrigues Sampaio e Melo, ilustrado por Daniel Silvestre da Silva (Caminho)
Ana Saldanha é uma autora contemporânea que transforma a sua pesquisa da literatura infanto-juvenil numa escola para a sua própria reinvenção, informada historicamente. Este livro é montado – destruo aqui parte do seu fascínio – como se fosse a recuperação de um património antigo, as supostas histórias populares recolhidas por Samuel Mahaffy de Sousa Rodrigues Sampaio e Melo no fim do século XIX, um pouco à semelhança de Adolfo Coelho e Teófilo Braga. Para além dos contos, o livro mostra alguns esboços de imagens, que seriam planificações do próprio punho de Sampaio e Melo, que depois Daniel Silvestre da Silva cumpriria nos nossos dias. Há dois aspectos ou linhas de força a reter, um textual e outro visual. Em termos de texto, e que apenas poderemos convidar à sua descoberta pela leitura, é a camada mais ou menos oculta e hilariante de sentidos que não serão os mais expectáveis na literatura adocicada infantil da nossa era (ou daquela já ultrapassada), mas que mergulha nas construções subtis dos contos tradicionais, que alertavam para toda a espécie de perigos e encolhos da vida humana. O vocabulário e sintaxe ricos e enredados da linguagem colhem da história e da amplitude do português, e o seu desvendamento – lento para quem não partilha de imediato essa língua antiga, como confessamos ser – torna-se uma outra aventura. Quanto às imagens, e ainda no seguimento de considerações anteriores sobre a impossibilidade de uma ilustração poder ser banal ou literal quando parte de um texto prévio, ao qual responde directamente, as imagens de Daniel Silvestre da Silva (quer aqueles esboços atribuídos ao investigador novencentista) quer as ilustrações mesmo são assustadoramente enganadoras. À primeira vista, elas poderão parecer inactivas, singulars demais, retratos quase chãos das personagens envolvidas nos contos, mas na verdade revestem-se de uma densidade tão alegórica como desviante. Por exemplo, no conto “A cabreirinha e o mal”, este “mal” que a protagonista sente jamais é descrito ou esclarecido, e em nenhum momento se diz o que leva consigo, a não ser um cajado e um farnel. D. S. Silva desenha-a com um enorme cesto de palha pejado de urtigas, florzinhas do campo e outras plantas. Será o “mal”? um símbolo, uma interpretação? Uma decoração que pretende ocultar outras florescências? São estes os sendeiros que estas imagens criam, deixando sempre espaço para o texto actuar de um modo livre, e obrigando o leitor a reler e rever, mais do que ler e ver só.
Sr. Pancas e os mal-entendidos no Zoo. Kevin Waldron (Horizonte)
A história do Sr. Pancas conta-se duas vezes, uma porque se engana, a outra porque se corrige, uma criando mal-entendidos entre todos os animais do jardim zoológico, outra desfazendo-os. Esta é um projecto sem grandes complicações, mas muito belo, que tira partido de toda a página, de várias perspectivas e focalizações, precisamente para tornar o mais densa possível (ainda que não indiscernível) a trama e o cruzamento do que se escuta, o que se entende, e o que se vê, e da presença do texto sob as mais diversas formas, tamanhos e tipos de letra, para trazer à consideração as flutuações de expressão que atravessa toa a história. Apesar do Sr. Pancas estar a falar para si mesmo, quem o ouve enfia a carapuça do que ele diz, “pancas” de cada animal. O único pequeno senão é a ideia do próprio jardim zoológico, que se mantém intacta, indiscutida, como o lugar privilegiado da existência dos animais e seu convívio com os humanos. Não há um questionamento desse espaço, nem uma procura das suas razões; todavia, não seria este livro que queria fazê-lo, contentando-se com uma trapalhada mais simples.
O Cuquedo. Clara Cunha e Paulo Galindro (Horizonte)
Criado como uma lengalenga, o Cuquedo é um monstrinho que não é revelado, mais, que ninguém na selva conhece, mas de quem todos têm medo e fogem, “de lá para cá e de cá para lá”. A história – textual – é muito pequena, assemelhando-se a uma anedota-brincadeira que se conta, e tal como A Casa da Mosca Fosca obrigará aos leitores adultos que o leiam aos ouvintes crianças uma predisposição para a teatralidade e a leitura-jogo, para que se ajude o Cuquedo a não ser apenas a endiabrada criatura que é nesta tontíssima história (no bom sentido) mas sim um efectivo diabrete. As imagens de Paulo Galindro ocupam o espaço que se lhes espera, e está recheada de toda uma série de pormenores divertidos que imitam o terrível medo sentido pelas criaturas, desde as listras e bolinhas que saltam dos animais, aos padrões alternativos que vão substituindo as listras das zebras aos objectos que alguns animais vão encontrando em seu torno... As palavras são impressas numa estratégia visual muito viva e pertinente, procurando que elas mesmas ganhem uma dimensão de expressão que é usualmente reservado apenas à imagem. Se tudo correr bem, há um grande susto no fim do livro.
O coração e a garrafa. Oliver Jeffers (Orfeu Mini)
Este é um livro sobre a ausência. Sobre a forma como a preenchemos à nossa maneira. Sobre as questões que não têm respostas simples. Sobre a curiosidade. Sobre a morte, se quiserem. Os livros de Jeffers anteriormente publicados, inclusive pela Orfeu Mini, tinham tido o seu sucesso graças à forma como encontravam um equilíbrio curioso entre forma e conteúdo, transformando o livro-objecto numa relação mais íntima que a de mero veículo à história que transportavam (muitas vezes, há quem pense que apenas no círculo dos livros de artista, das camadas mais intelectuais, etc., é que isso se dá, mas trata.se de uma cegueira habitual). Este novo título faz residir a sua força particular na própria história, uma poderosa e irresolvida metáfora de uma rapariga que, deixando de colocar perguntas, de exercer a sua curiosidade perante o mundo (a característica humana que mais leva à liberdade e ao crescimento), acaba por encerrar o coração num local que por mais perto que esteja é sempre uma distância. Há um equilíbrio muito curioso entre páginas com texto e outras sem texto, entre páginas ocupadas por uma imagem única e um momento longo e outras com uma sequência de acções rápidas, entre ilustrações despojadas, quase infográficas, e outras abordagens mais complexas, com colagens, fotografia, cruzamentos de registos (para os distraídos, retirem a sobrecapa para se revelar o coração da curiosidade da menina). A importância está no facto da metáfora ser, como dissemos, “irresolvida”. Isto não significa que não se possam avançar soluções, mas antes que elas são múltiplas, e que devem ser os leitores que as devem procurar sempre que lerem: não perguntando “o que é?”, mas “porquê?”.
Gastão, vida de cão. Rita Taborda Duarte e Luís Henriques (Caminho)
R.T. Duarte e L. Henriques são um daqueles casos, raros no panorama português (ainda que não inédito), de uma colaboração continuada entre uma escritora e um artista para a construção dos seus livros ilustrados. Num mercado em que a esmagadora maioria dos escritores selecciona o artista por uma necessidade de mercado e não de criação propriamente dita (se é que a escolha não é feita somente pelo conselho editorial), são as pequenas editoras e os editores fortes que ainda garantem a existência de projectos condignos de colaboração, livros que são belos e coesos. No entanto, é necessário apontar o facto de que Gastão é um certo retrocesso em relação aos dois autores, quer em termos individuais quer em termos de equipa. Depois de dois projectos fortíssimos como A Família dos Macacos e Os Piolhos do Miúdo/Os Miúdos do Piolho, em que se tirava partido da estapafurdice, das macacadas, dos pinotes e velocidade, e de uma destreza gráfica estonteante e dinâmica, a acção deste livro parece demasiado estática, teatral (em termos de espaço e desenrolar da acção). O trabalho de Luís Henriques mantém-se pormenorizado e texturado, mas há uma qualquer desinspiração que torna as acções do cão Gastão mais em acidente do que na necessidade da obra. A opção pelo preto-e-branco e o vermelho num “fio vermelho” ao longo da obra é bien trovato, mas perguntamo-nos qual a sua pertinência numa história desta natureza, uma vez que não há alteração de personagens, espaços ou épocas. Os textos também apresentam alguns momentos algo trôpegos, quer em termos de ritmo (leitura em voz alta) quer em termos de clareza nos acontecimentos... mesmo pela perspectiva de um Gastão exasperado, haveria caminho mais certeiro.
Migrando. Mariana Chiesa Mateos (Orfeu Mini)
A frase feita “uma imagem vale mais que mil palavras” é utilizada, as mais das vezes, em contextos fracos, tornando-a numa patetice que não quer dizer nada senão a incapacidade da pessoa encontrar as palavras mais acertadas para descrever, expressar, comunicar, fazer o universo que lhe cabe. Mas há vezes em que as palavras que um determinado assunto despertariam seriam tão alongadas e complexas e tão pejadas de armadilhas de mal-entendidos, que é o silêncio eloquente das imagens que melhor pode tecê-lo. É o caso deste livro. Como se verá pelo vídeo, o livro é duplo, podendo ser lido a partir de qualquer uma das pontas/capas, até se atingir a imagem-paisagem central. A migração humana não é apenas um evento milenar, é mesmo condição própria humana. Em termos da história da humanidade, só muito recentemente é que se passou a considerar o sedentarismo e, mais tarde ainda, as ideias de nacionalismo, títulos sobre a terra, e todos os perigos, crimes e problemas que daí advêm... Por outro lado, há também os abusos que se fazem à própria terra, obrigando os que lá vivem a abandoná-la, para que procurem não apenas uma outra vida, mas uma verdadeira vida. O livro tem dois começos, mas apenas um fim, e ambos a mesma estrutura de olhar. Se começarmos por um lado, acompanhamos uma jovem mulher partindo de avião para, presume-se, um outro país (onde vai estudar, viver, trabalhar), e o seu testemunho de um jovem surfista salvando alguém que caíra de um pequeno barco improvisado, uma balsa; se pelo outro, vemos uma sequência de uma rapariga num automóvel, depois uma sua breve fantasia, o relato da sua mãe ou avó da guerra, que expulsara muita gente de navio, e a construção de uma nova cidade. A paisagem central, no meio do livro, mostra como que duas margens de um percurso, onde as duas protagonistas (a mesma, em idades diferentes, como querem dar a entender os prólogos?) se miram uma à outra, enquanto os pássaros-migrantes voam à volta. Em ambas as metades, apresentam-se imagens de uma fileira de pessoas, de “outros”: numa fileira, com o horizonte maríimo ao fundo (da guerra e a figa de navios), vemos o que parecem ser paisanos, italianos, judeus, na outra, com uma cerca de metal como cenário (o percurso da balsa, do saltar a cerca), vemos gentes do sudoeste asiático, árabes, negros, indianos, paquistaneses... Generalizamos, claro, pois a ausência de palavras quer tornar o fenómeno da migração universal (o que, historicamente e a longo, longo prazo, é verdade), mas há esta diferenciação em dois momentos e duas circunstâncias diferentes: a fuga da guerra e a fuga da pobreza. Há uma gigantesca diferença entre quem viaja em “primeira classe” para assumir um cargo relativamente seguro noutro país (um emprego à espera, o papel de estudante ou de professor, uma missão com prazo) e quem se arrisca para outro local para poder sobreviver seja no que for. Este é um livro que obrigará a uma leitura com muito cuidado e com muitas explicações, é um livro que deverá servir de passaporte para outras visitas, leituras e conversas, uma leitura que aponte todas as diferenças e matizes (inclusive de cor de pele, de tempero das comidas, de timbre das vozes e das línguas), para depois se descobrirem onde estão as margens que há que atravessar.
A Manta. Isabel Minhós Martins e Yara Kono (Planeta Tangerina)
A escritora desde 2004 tem mantido, na sua casa-mãe, uma actividade contínua, e é possível que uma apreciação global da sua obra revele algumas linhas contínuas, sobretudo aquelas que dizem respeito ao fortalecimento das redes familiares, talvez um dos fundamentos para a leitura perfeita destes livros (sem com isto querer reduzir “família” a uma unidade monolítica pautada por princípios político-sociais conservadores; recordemo-nos de um livro-ode à família que foi O Livro do Pedro). Desta feita, este livro ronda em torno de uma herança, uma manta de retalhos deixado pela avó, sendo cada um desses retalhos um resquício, um traço sobrevivente de um outro qualquer objecto entretanto desaparecido: um forro, uns calções, uma saia. O livro é assim, duplamente, sobre a morte, de um modo diferente do de Jeffers. Todavia, cada um desses quadradinhos é também a desculpa para a história do objecto original (um exercício muito benjaminiano), ou seja, a da emergência e sobrevivência da memória, a transformação do passado, esfumado, em história rediviva e, com esse acto, a redenção da memória da própria avó, da família, e a promessa de que continuará a sua expansão. Assim, o livro é também sobre a vida que sobrevém a morte. Os desenhos de Yara Kono, outra das peças centrais da Planeta Tangerina, procuram devolver através da sua abordagem pouco naturalista (alteração de escalas, abolição de prespectivas, utilização de diagramas) e estilizada (redução a esquemas de certos objectos, personagens desenhadas geometricamente, emprego de uma reduzida gama de cores planas e sóbrias) o tom concreto, simples, muito terra-a-terra, do modo como desdobrar uma manta de retalhos e recontar cada passo será na vida real.
25 poemas ilustrados. Miguel Hernández et al. (Kalandraka)
Esta é uma antologia de poemas do poeta popular (em ambos os sentidos, no de fama e no de cronópio) espanhol Miguel Hernandéz, que acabou nas mãos e na morte das prisões franquistas, não sem antes ter visto a sua fuga e liberdade cerceada pela polícia salazarista. Se procuro estas ligações entre Portugal e Espanha, finas, é o facto da editora Kalandraka servir de ponte também entre os dois países nas suas edições, mas talvez esta edição não seja alvo de tradução para o português. Há que lê-los na sua simplicidade e brilho originais... Há linhas que os cosem junto às tradições do Siglo de Oro, outras aos companheiros de combate poético Neruda e Aleixandre (citados mesmo num poema); e a maioria dos poemas sempre versando sobre terrenos como os da amizade, o da morte, o da ausência, a guerra e suas feridas, coisas chãs da terra e de todos os dias calcados. As imagens que acompanham os poemas, de mais de uma vintena de artistas, alguns deles muito famosos (Isidro Ferrer, Xosé Cobas, Gustí), outros menos, vogam todas as águas possíveis nos diálogos com a palavra de Hernández. Cada qual procurando cada um a seu modo responder ao mot juste com a imagem certeira. Será um exercício de análise interessante, profícuo, lê-los, aos poemas, com a intenção de captar novamente a ideia-semente que levou à imagem do artista, ou lê-las, às imagens, com a intenção de regressar ao texto informados de modo diferente. Uma vez que existem tantos projectos pedagógicos sob a forma de livros ilustrados, sob a noção de que a sedução a bela palavra e da imagem bela melhor veiculam o que há a aprender, talvez este volume seja um exemplo acabado de uma pedagogia ainda mais ampla: “Siempre fuimos nosotros sembradores de sangre./Por eso nos sentimos semejantes del trigo. (...) Agredimos al tiempo con la feliz cigarra,/con el terrestre sueño que alentamos”. (Llamo a los poetas).
Nota: agradecimentos a Bárbara Rocha pelo empréstimo de Love, a Carla Oliveira, pelo de Old Lady... e pela oferta do livro de Jeffers, a Luís Henriques e à Caminho pela oferta de Gastão, e à J., razão pela escolha de muitos dos títulos.