23 de junho de 2010

Leal da Câmara: pequenas adendas.

Tendo tido a oportunidade de trocar umas quantas impressões com António Antunes a propósito do catálogo de Leal da Câmara, cuja leitura suscitou algumas correcções e chamadas de atenção, gostaria de alertar-vos para umas quantas notas adicionais ao texto anteriormente publicado, aqui. É com alguma pena que não tivemos oportunidade de alargar a conversa, já que cada frase suscitava uma nova investigação e aprendizagem, podendo ter levado a uma mais profunda apreciação do trabalho de Leal da Câmara.
Aqui ficam os agradecimentos e a promessa de encontros futuros, para novas aprendizagens da nossa parte.

16 de junho de 2010

120, Rue de la Gare. Léo Malet e Jacques Tardi (Casterman).

Como já o havíamos indicado noutra ocasião, uma das regras não-explícitas deste espaço é a de falar de livros com não mais do que dois anos desde que foram editados, numa procura algo paradoxal pela “novidade” sem com isso querer cair na mera divulgação dos escaparates. Sempre que se trata de trabalhos que remetem a tempos mais recuados, prender-se-á com uma edição que é importante em termos de recuperação da memória ainda fraca deste modo de expressão, ou uma edição crítica ou antológica de uma qualquer produção historicamente revelante ou um gesto recreativo da percepção/recepção de um determinado título. Uma mera reedição não é de todo o alvo da nossa atenção. Ora, a edição que nos traz aqui não se reveste de nenhuma dessas anteriores linhas de força, mas de quase um mero “repackaging”. A Casterman é uma das mais destacadas, importantes e maiores editoras de banda desenhada do espaço francófono europeu (sendo belga, ocupa parte substancial do mercado francês, naturalmente). Não quer com isto dizer que seja aquela que mais arrisque em termos de reinvenções de linguagem, de educação de públicos mais atreitos a linguagens hodiernas e dialogantes entre a banda desenhada e outras áreas criativas, e até mesmo de fundação de novas abordagens comerciais. E, apesar de haver algum grau de preocupação em manter viva a memória e o (seu) património, esses gestos poderão obfuscar outras visões alternativas. No entanto, não se lhe pode negar o papel histórico que foi tendo ao longo dos anos com alguns projectos, tendo dado a conhecer a um público alargado na Europa (francófilo) toda uma bateria de importantíssimos – quer se goste quer não – autores, das décadas de 1930 a 80: se num primeiro momento, é Hergé quem comanda a linha da frente, mais tarde, e graças à revista (A Suivre) (cujo dedos disparadores são de Étienne Robial, editor da Futuropolis e Métal Hurlant) e a associada e importante colecção Les Romans (A Suivre), surgirão os nomes de Régis Franc, Hugo Pratt, Peeters e Schuiten, Sampayo e Muñoz, Comès, F’murr, Francis Masse, Boucq, Bourgeon, Servais, entre outros, e o Jacques Tardi que aqui nos traz); nos anos 90 e actualmente, o seu papel de linha da frente talvez nasça do movimento começado noutros locais, como está patente na acusação de J.-C. Menu, mas a verdade é que com as suas colecções Sakka, Écritures e, mais recentemente, KSTR, tentam acompanhar pelo menos certas tendências modernas da banda desenhada, inclusive internacional.
Mas, voltando atrás, e precisamente pelo papel e destaque que esta editora tem no seu mercado particular, é-lhe possível também fazer apostas que têm a ver com a repetição da sua oferta de títulos através de estratégias que passam pelo “repackaging”, pela reformatação, associando cada um desses diferentes formatos a um nicho específico do mercado (sem que se entre na própria reformatação das pranchas, o que acontecia com colecções tais como J’ai lu, por exemplo, ou outras de bolso; quer dizer, esta estratégia não é nova, mas agora é mais rápida). A importância do formato para o que conduz é alvo de um estudo interessante de Pascal Lefèvre (“The importance of Being ‘Published’. A Comparative Study of Different Comics Formats”, in Comics Culture. Analytical and Theoretical Approaches to Comics, 2000). Os casos paradigmáticos encontra-se em títulos de grande sucesso comercial, os ditos “clássicos” e também outros títulos que, roçando a mediocridade, alcançam um grande público. Se nos primeiros casos, podemos olhar para o Corto Maltese de Pratt, que é alvo de variadíssimas edições (a preto-e-branco em formato de livro brochado, em álbum cartonado, a cores, uma nova colecção com dossiers introdutórios, uma colecção de bolso a cores, e agora esta nova versão BD/DT – idêntica à do livro aqui e discussão – , a preto-e-branco, mais barata, num formato pequeno), e se o próprio Tardi vê a sua colecção mais comercial, Adèle Blanc-Sec, com honras de álbuns de luxo por associação ao filme recente de Besson, nos segundos vemos o mesmo tipo de abordagens (livros da capa dura, em formato romance, “integral” ou pelo menos agregando vários volumes) a coisas inenarráveis como Le Tueur, de Matz e Luc Jacamon, ou... outras coisas. Como dissemos acima, a manutenção do património não terá nada de mal em si mesmo, mas é às custas do silêncio em relação a outros autores, títulos, atitudes, até mesmo da pertença do catálogo antigo da casa... Exemplos: Jean Teulé, Francis Masse, os quais, se foram recuperados, o foram por outras editoras mais atentas a linguagens verdadeiramente desviantes e modernas.
Retornando então ao livro em si, 120, Rue de la Gare é o segundo volume em termos de adaptação da banda desenhada com a personagem Nestor Burma da parte de Tardi (1988), mas é o primeiro romance (1942) com esse detective dos romances policiais de Léo Malet, ex-surrealista, e que partilha com Georges Simenon um certo gosto pelo bas-fond de Paris, fabricando um universo semeado por um “argot” por vezes intransponível sem ajudas externas, polvilhado de non-sense e cenas oníricas q.b., e ainda tintado por uma atitude de um cinismo quase absoluto, que apenas é impedido da derrocada final graças à existência de um humor negro incorrigível, aliando-se assim a um tipo de humor típico do policial francês, patente nos filmes de Clouzot igualmente, imitado por Hitchcock, mas que os americanos jamais conseguiriam imitar, fascinados que estão com os abismos da violência fetichizada e o culto do herói solar. Apesar da adaptação ser feita totalmente por Jacques Tardi, o escritor sempre acompanhou essa transformação, e até mesmo deu o seu aval, talvez sendo essa uma das razões pelas quais o seu nome surge nas capas dos livros, sem qualquer qualificação de especial, e até antes do nome de Tardi, o que não é habitual sequer nas duplas inseparáveis de escritores e artistas na Casterman (com a excepção de Une guele de bois en plomb, que Tardi escreveu sozinho). É neste livro que se faz uma apresentação da personagem a partir da sua libertação dos campos de detidos de guerra pela parte dos alemão nas II Guerra Mundial, o seu inusitado encontro com um amnésico que lhe lança uma misteriosa morada, a qual será repetida num também inusitado encontro com o seu colaborador de antes da guerra, lançando Burma numa situação que se vê obrigado a esclarecer, apesar de não se perceber muito bem qual o crime central ou a origem do problema... isto é, é menos um “whodunnit” do que um “who did what to whom”, tornando tudo muito mais complicado mas mais divertido, pois acabamos por desconfiar de toda e qualquer personagem que se atravessa à nossa frente (e de Burma), tal qual como nos filmes de Clouzot. Ainda na senda cinematográfica, há uma força superior nestes livros em relação à produção contemporânea. Nos nossos dias, sobretudo no cinema americano, todas as atitudes dos protagonistas têm de ser verbalmente expostas, onde a subtileza é atirada pela janela fora. Exemplo: é verdadeiro que The Departed é um dos melhores últimos filmes de Scorsese e que uma das mais pungentes frases é atribuída à personagem de Mark Wahlberg quando diz “My theory on feds is that they're like mushrooms: feed them shit and keep them in the dark”. Certo. Mas ao contrário da filosofia do “though guy” que tem de o afirmar o mais explicitamente possível, Nestor Burma não o é menos mas sem que se revele como tal... a forma como vai escolhendo as informações a revelar e a quem moldam-no como um detective frio e calculista, mais preocupado em perceber os contornos verdadeiros da “coisa” do que alimentar falsas alianças e amizades. Burma não tem aliados, mas antes peças que lhe convêm num ou outro momento. O que o torna mais gelado do que “cool”. O modo como reúne todas as personagens-peças num pseudo-Natal, e desmascara todo o enredo – ainda que passe por fintas, incriminando quase todos os convivas – prova-o.
Esta novela é um exemplo excelente daquela expressão “the plot thickens”, e tendo em cnsideração que o caso de desenrola e é investigado por Burma no período em que está em convalescença em Lyon, torna ainda mais as conturbadas pistas multiplicadas e falsas resoluções mais divertidas.
O estilo de Tardi é aquele que lhe era típido dos anos 1980, em que as personagens assumem um ar polposo, plástico (irmanável com outros autores da sua geração), contra cenários realistas e brumosos (o detective parece odiar a cidade de Lyon, onde se vê encafuado, amuralhado não só pelas regras da guerra mas pela neblina da cidade). As transições entre a vigília e o sonho são sempre paulatinas, e o leitor tem de ser atento para perceber o momento em que já caiu no interior dos sonhos do protagonista, os quais emergem lenta e insuspeitadamente, recuperando elementos que entretanto foram alvo da matéria narrativa anteriormente exposta... isto é, o autor procura que uma das funções do sonho – criar uma “ideia”, “organizar” o que se percepcionou no dia – seja partilhada entre protagonista e leitor. O equilíbrio entre as vinhetas com texto e as “mudas” é sempre de uma construção rítmica excelente, assim como o equilíbrio entre os diálogos e os monólogos interiores de Burma, o focalizador de toda a acção, como se espera numa novela policial. Outra forma de cumprir essas expectativas encontra-se nos retornos de vinhetas anteriores em novos contextos, não só como recapitulação da parte de Burma, mas muitas vezes como forma de repensar o mesmo evento ou desvendá-lo de modo diferente. A peça de resistência encontra-se na posição de Heléne, uma das peças centrais do puzzle, e muito parecida com uma actriz de então, levando a que surja reptidamente quer a imagem dela quer a da actriz de forma a confundir quem é quem ou que papel ocupa cada uma. Visualmente, a pesquisa de Tardi leva-o a incluir cartazes de cinema, políticos, anúncios publicitários, jornais, edições literárias ilustradas, e toda a quela parafernália de reinvenção histórica que tornam a experiência do livro mais deleitosa do que se despachasse o mesmo contexto visual com uma abordagem vaga. Por vezes, essa matéria toma contornos de “clin d’oeil” a extensões da obra: um cartaz fala de Le Cri du Peuple (jornal da França collabo, mas que nos recorda a adaptação que Tardi faria – décadas mais tarde – do romance de Vautrin), um dos detectives visitados (considerado “tonto”) tem o rosto de Malet, o magistrado Montbrison lê um volume de Edgar A. Poe ilustrado por Nicollet, relembrando o trabalho de Jean-Michel Nicollet, artista amigo de Tardi, o nome do autor surge como um perseguido do exército alemão, etc.
Essa consciência passa por vezes pela própria personagem, a qual se cruza ou emite ela mesmo o slogan da sua agência, “Nestor Burma, o homem que põe o mistério em K.O.”, assumindo totalmente os contornos de folhetim da sua actividade e vida.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro. Este volume foi recebido em conjunto com a edição na mesma colecção/formato que Le Grand pouvoir du Chninkel (1988), de Van Hamme e Rosinski, uma pobre derivação de outros textos anteriores, d’O Incal a 2001, passando pelo Senhor dos Anéis; um inenarrável Du plomb dans la tête, de Wilson e Matz; e A Balada do Mar Salgado (ed. livro, 1975) de Hugo Pratt, cuja releitura neste formato em nada vem reescrever as suas fraquezas nem as suas forças. Aliás, se o “polar” de Tardi se presta a esta maior intimidade do livro de bolso, todos os outros, inscritos numa banda desenhada que pretende maior espectacularidade e lições de moral, é o álbum a sua província mais correcta.

15 de junho de 2010

Naissances de la bande dessinée. Thierry Smolderen (Les Impressions Nouvelles)

Este livro reúne um conjunto de oito ensaios, numerados e integrados num discurso mais ou menos contínuo, que pretede investigar uma possível perspectiva da emergência da banda desenhada moderna, isto é, destas narrativas em imagens a que hoje sem grandes titubeações chamamos “banda desenhada”, ainda que nos seja permitida uma visão mais ou menos alargada para encontrar textos e exemplos para além da mais corriqueira das percepções sociais e produções comerciais. Thierry Smolderen é um nome importante no círculo dos investigadores e estudiosos francófonos, ainda que não – a nosso ver somente, claro está – atinja os graus de complexidade de um Jan Baetens, um Thierry Groensteen, Christian Rosset, Fresnault-Deruelle ou Bruno Lecigne. Poderemos estar redondamente enganados, mas o discurso de Smolderen parece por vezes querer atingir uma conclusão absoluta que não é sustentável enquanto tal. Não poderemos negar a importância dos seus argumentos, entregar-nos à sua apreciação para dar início à discussão em questão, mas há algo de definitivo que parece ligeiramente deslocado numa área cujos estudos académicos e intelectuais se encontram num franco desenvolvimento actual, mas desenvolvimento ainda assim. Isto é, não há qualquer princípio que lhe esteja relacionado que se considere encerrado e indiscutível. Como qualquer arte, e mormente uma que começou a pensar-se a si mesma há relativamente pouco tempo (se nos “esquecermos” das tentativas que foram surgindo ao longo de 150 anos, e apenas atentarmos a uma mais continuada e integrada investigação), tudo está em aberta negociação.

Este livro centra-se em meia-dúzia de nomes fulcrais no desenvolvimento desta arte: William Hogarth, os caricaturistas ingleses do século XVIII, Töpffer e os topfferianos, A. B. Frost, e McCay e, caso mais contemporâneo, Ware. Alguns dos capítulos centram-se quase em absoluto nesses autores, explicando as suas forças e contributos máximos, ou procurando os seus imediatos ou longíquos herdeiros; outros dissolvem-se numa questão de maior amplitude criativa e histórica, mas perseguindo um qualquer prisma que se quer ver como contínuo. De certa forma, Smolderen está a operar uma história da arte informada pela filosofia, e recorda-nos sobremaneira a metodologia inventada por Aby Warburg (re-apresentada contemporaneamente por Georges Didi-Huberman), a de eleger “formas sobreviventes” que se mantenham em vários estádios históricos, procurando qual o aspecto “fossilizado” – isto é, qual a parte que se constitui enquanto forma propriamente dita, perene, reutilizada, reempregue, aparentemente imutável – e qual a sua “vivência” – ou seja, o valor com que se reveste em cada nova utilização, contexto, qual o espírito que reanima essa forma. Algumas dessas formas são a linha serpentina – apontada por Hogarth como princípio mesmo da arte, no seu The Analysis of Beauty (1753) e reencontrada em Rowlandson (numa das suas imagens mais famosas) ou McCay – ou a capacidade da narrativa em imagens poder criar situações auto-referentes.

O autor não deixa de apresentar toda uma série de considerações importantes e acertadas, como, por exemplo, a questão da poligrafia da produção do século XIX. Com Cham, Doré [caso charneira, que aqui se exemplifica], George Crukshank, Caran d’Ache, Alfred Crowquill, Thomas Onwhyn, Schreiber, George “Christophe” Colomb, Wilhelm Busch, há uma procura por, mesmo no interior de um determinado texto (história, álbum, aventura), não tanto um estilo, entendido como algo de objectualmente fechado, mas uma flutuação entre as estratégias visuais que melhor servirem o propósito visual do que se pretende transmitir ou criar. Mas é precisamente essa razão que leva a associação demasiado inflexível à polilinguística – tal como preconizada por Bakthin – pouco moldável. Isto é, mesmo estando em crer que a linguagem é o sistema semiótico secundário que melhor consegue tornar visível ou claro os outros sistemas (afinal, este é um blog que utiliza os textos verbais para comunicar), não acreditamos que todas as inflexões desses outros sistemas possam ser traduzidas e transmitidas pela linguagem, sem que haja perdas: apenas é possível uma mais ou menos conseguida, mais ou menos inteligente aproximação. Mas nunca um completar esgotado. Há por vezes momentos em que parece que isso é possível, de acordo com Smoldereren.

Por outro lado, se a contextualização histórica, quer falando de desenvolvimentos tecnológicos aplicados à vida quotidiana e às artes quer se discutindo certos princípios sócio-políticos (isto sempre no palco europeu ou ocidental, compreendendo que se deixa em suspenso todas as restantes áreas do mundo), é completa, existem outros aspectos que gostaríamos de ter visto desenvolvidos de uma forma mais central ou esclarecedora.

A importância de um livro deste tipo está em oferecer de um modo acessível uma perspectiva mais ou menos alargada das origens da banda desenhada moderna, e suas relações com a restante produção cultural. Smolderen dá atenção aos desenvolvimentos contemporâneos nos campos da literatura e no teatro (sobretudo no que diz respeito à cada vez mais sentida, na época, exploração da expressão, e emergência da da psicologia), de tecnologias da imagem (reprodução, fotografia, cronofotografia, técnicas pré-cinematográficas e depois cinematográficas), para depois iluminar os trabalhos de certos autores, mostrando como Töpffer respondia tanto a Hogarth como a J.J. Engel (um teórico da gestualidade teatral, do melodrama [aqui exemplificado pelo trabalho de von Goez]) como ainda a Lessing, derrotando as noções deste de encerrar cada arte à sua espectificidade mediática. Ou como Frost se havia informado na obra semi-científica de Muybridge, por exemplo [aqui em baixo].

Cada um dos temas mereceria uma resposta crítica específica, o que está fora de questão neste espaço, por razões óbvias, não sendo a incapacidade ou falta de conhecimentos deste crítico as menores. O livro é mais complexo e rico do que as reduções que aqui estamos a fazer. Não obstante, poderemos tentar responder a dois dos problemas (no sentido de questões filosoficamente fortes e que devem ser colocadas), mais sob forma de questionamento que de contestação. A nosso ver, é o cineticismo de Töpffer que se molda como um dos aspectos mais marcantes da obra do autor suíço. Mais, é a marca mesmo que o destacará de autores imediatamente anteriores, quer famosos como Romeyn de Hooghe e Hogarth, e os caricaturistas ingleses (Rowlandson, Newton, William Heath), quer também outras referências mais obscuras, como o sueco Pehr Nordquist ou o livrinho que o poeta holandês Willem Bilderdijk fez para o seu filho em 1807. Por cinetismo queremos dar conta de uma diminuição do intervalo temporal entre cada vinheta (aquilo que McCloud chamará de transição “momento a momento” e “acção a acção”; logo, necessariamente, uma partição das acções em micro-gestos, algo que apenas muito mais tarde surgirá com a cronofotografia, discutida por Smolderen), e consequentemente uma ideia de criar num mesmo plano de composição uma integração relativamente diferente, mais entrosada, entre texto e imagem, entre as múltiplas imagens e o ritual estético e de fruição individual que emergiria com o “álbum”. É claro que há muitos outros aspectos que são herança de autores anteriores, influências inegáveis, mas há ainda uma série de estratégias visuais em Töpffer que, não sendo inéditas em absoluto, são por ele empregues, convergentemente, num mesmo texto narrativo visual (planos aproximados, coordenação visual entre vinhetas, marcas de cinetismo, cruzamento de dois eixos espaciais paradoxais, etc.). Se bem que Smolderen demonstre as relações directas e intelectuais que Töpffer estabeleceu com a discussão estética do seu tempo (Baumgarten e Lessing, sobretudo), estas e outras dimensões não são continuadas.

Outra frente é aquela que é composta pelo artigo, aqui incluído como capítulo, sobre os balões, que já havia sido publicado na Comic Art # 8 (e será em breve publicado em português por nós, num contexto que atempadamente será divulgado, e que demonstra a escrita por fragmentos desta obra). Smolderen tenta demonstrar como os verdadeiros balões de fala têm apenas uma superficial relação com outros dispositivos formal e aparentemente iguais – a filactera medieval e a legenda das caricaturas dos séculos XVII-XVIII: os mais antigos não estariam relacionados com a enunciação de um discurso directo, e seriam limitados à indicação ora de um nome, um título, ou então apenas representariam uma espécie de “fala-tipo”, ou de charge alegórica, ou de tirada auto-referencial (e não comunicativa, dialogal), uma vez que não contribuiria para o movimento e transporte temporal de uma narrativa, uma vez que não eram empregues em séries sequenciais. Esse uso – representação de fala, construção de diálogo/personalidade e uso em narrativa sequencial – seria algo que apenas surgiria mais tarde. Smolderen encontra em A True Narrative of the Horrid Hellish Plot, de Francis Barlow [acima], gravura datada de 1862, “uma invenção prototípica do género”. Passando depois pela “linguagem das paredes” (redutoramente: a publicidade colocada nas paredes das grandes cidades), é o que lhe permite falar da camisa de dormir do Yellow Kid [cujo exemplo, aqui, é sintomático desses cruzamentos)]e desembocar na famosa tira de 25 de Outubro de 1896, em que surge o balão de fala. Ora, mesmo tendo em conta que Smolderen chama a atenção que não está à procura, através do estudo deste dispositivo, por argumentos de definição, e mesmo citando os exemplos de Doug Wheeler que precedem essa mesma tira, a questão parece no entanto ser pautada pela visão da contemporaneidade “para trás”. Isto é, é a ideia moderna de banda desenhada que informa a própria visão do passado, encontrando nas produções anteriores “estágios”, necessariamente incompletos, até chegarmos à pura natureza, que é a do nosso tempo. Mas porque não recuar à Idade Média, onde se encontram filacteras utilizadas no seio de vários textos em que a imagem assume uma importância central e movedora, como demonstra um excelente artigo de Danièle Alexande-Bidon (que também será publicado em português), que preparou a exposição La Bande Dessinée avant la Bande Dessinée, na Biblioteca Nacional francesa (e que se pode visitar online, aqui)? Se é uma questão de ser “sobre papel”, poderia de facto recuar a esses tempos. Se era uma questão de reprodução, também teria toda aquela produção de broadsheets e ilustração de imprensa estudada por David Kunzle e outros investigadores. E se nada disso fosse central como qualificador-limitador no estudo das instâncias em que ocorrem dispositivos que pretendem dar conta de texto escrito representando o que uma dada personagem representada visualmente afirma, então poderíamos recuar muito mais atrás, pois existem exemplos de ânforas gregas com animais falantes, ou graffitis em Pompeia com diálogos entre companheiros de copos... Não obstante, o texto de Smolderen, quer neste quer nos restantes capítulos, levanta questões que merecem o estudo sério daqueles que se interessarão pela banda desenhada de uma forma académica, quer para se inteirarem de certas fontes e argumentos quer mesmo para perceberem quais as frentes de contestação possível, e pistas para perspectivas alternativas.

Mas, se é esse o caso e natureza de Naissances, porque é que se resolveu utilizar na capa uma imagem (de Frederick Opper) representando um homem das cavernas a lapidar qualquer coisa? Não servirá essa imagem paa uma espécie de promessa de se falar dos exemplos mais recuados possível da criação humana para aí auscultar processos ou objectos que pudessem ser resgatados para uma história alargada da banda desenhada? Seja como for, tal como a total acronia de um ser humano junto a um dinossáurio, também haverá por este volume alguns saltos de fé que eclipsam outras cronologias e linhas de desenvolvimento igualmente pertinentes.

Apesar de Smolderen contribuir para uma correcção de que a banda desenhada seria uma invenção acabada nascida nos cadinhos da imprensa moderna e popular norte-americana – ideia propagada sobretudo nos Estados Unidos mas que se esvai e continua a impor numa certa tendência americanófila (repetindo a importância de Eisner nas “graphic novels”, na preponderância do mainstream pela conquista em várias frentes populares a outras linguagens, etc.) - a atenção é ainda concentrada num espaço relativamente reduzido e concentrado de referências. Encontrar-se-ão aqui exemplos das estampas de Hogarth, exemplo forte de um encontro entre a popularidade e a mestria artística, dos bilderbogen alemães e das imagens de Épinal, e muitos outros exemplos de artes gráficas que se cruzam, polinizam, repetem em contextos diferentes, reinventam. A lição importante terá a ver com uma certa desmistificação em relação à invenção totalmente original, genial, dos artistas individuais, e demonstrar – a seu modo – a contínua e aberta negociação entre a experimentação gráfica, artística e técnica, a auscultação junto ao público (curiosamente, ou não, pelas formas rapidamente encontradas de divulgação massiva, sobretudo o jornal/revista, mas também as estampas populares, as caricaturas em folhetim, etc.), e as relações com outras instâncias da criatividade e desenvolvimento social. Se bem que pelo formato e edição material se assemelhe mais a um livro de celebração do que de exposição e argumentação académica, a profusa inclusão de imagens serve para sublinhar a perspectiva e ideias de Smolderen, e não somente surgir como uma colecção de “pequenas maravilhas”. Nesse aspecto, Naissances de la Bande Dessinée é um contributo condigno para a discussão sem fim sobre as suas origens, que deveria ser sempre pautada por aquela frase de Wittgenstein, em Da Certeza: “É muito difícil encontrar o princípio. Ou melhor, é difícil começar no princípio. E não querer ir mais para trás”.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

12 de junho de 2010

Jack Survives. Jerry Moriarty (Buenaventura Press)






Na Comic Art # 9 (Outono de 2007) surgiu um artigo anunciando a edição para breve de Jack Survives, uma mão-cheia de trabalhos de histórias curtas de banda desenhada de um dos mais interessantes, ainda que relativamente obscuro (em relação ao “grande público”, mas não a outros círculos) e de baixa produção, autores norte-americanos da modernidade, Jerry Moriarty. Os leitores conheceram-no através da mítica revista RAW, editada por Art Spiegelman e Françoise Mouly nos anos 1980, a qual se tornou num ponto de viragem importante que nasceu das cinzas dos underground comix, mais interessados em explorar temas de contra-cultura (sexo, drogas e rock’n’roll) do que na fabricação de projectos sustentáveis a longo prazo de banda desenhada (com a ressalva para um punhado de artistas maiores que sobreviveram), e desembocaria mais tarde na banda desenhada alternativa dos anos 90. Esse ponto de viragem foi também palco de toda uma série de experiências dirigidas sobretudo à estrutura da banda desenhada, ao experimentalismo gráfico e formal, à colação de novas ou pelo menos diferentes linguagens gráficas ao meio da banda desenhada, começando com o próprio Spiegelman, mas agregando muitos outros nomes. Moriarty, neste caso, está lado a lado com Richard McGuire no círculo da RAW, enquanto autor que, com a sua pouca produção, criou um trabalho de grande influência mais junto a outros autores do que entre o grande público (de certa forma como Saul Steinberg ou Kliban, todos eles “artistas de artistas”). Para além de um punhado de páginas publicadas (apenas) na primeira versão da revista de Spiegelman e Mouly, estes editores juntariam muito desse material num dos seus famosos “one shots” (o terceiro, datado de 1984), monografias de autores que lhe estavam associados e que não teriam a oportunidade de editar o seu trabalho noutras plataformas mais convencionais.
O artigo a que me refiro é na verdade constituído por um punhado de imagens (fotografias, reprodução de pranchas e telas de Moriarty, e outras curiosidades) acompanhado por umas quantas notas feitas pelo próprio autor: visita-se a sua infância, as suas primeiras influências e experiências artísticas e de banda desenhada, os primeiros trabalhos e aspectos mais recentes da sua obra. Esta nova edição (feita pela mesma equipa dessa revista) publica o material da RAW e mais algumas novas e inéditas pranchas, mas por razões que espero tornar claras, a exploração dos trabalhos apresentados na Comic Art são um importante complemento a este livro presente: são uma sua inflexão, expansão e material de interpretação.
De acordo com o artista, Jack Survives é composto por 35 pranchas, as quais lhe ocuparam um período de 5 anos. Estas são basicamente histórias curtíssimas, de uma ou duas páginas, em torno de uma personagem que conhecemos de modo elusivo, sem grandes introduções ou desenvolvimentos, e que parece poder preencher um espectro muito largo do “cidadão médio norte-americano”: branco, da classe média, vivendo nos anos 1940/50, com uma casa própria, vivendo com a mulher. Trabalha num escritório qualquer que terá a ver com imagens, mas nada mais é revelado. É cuidadoso, preocupado com a sua imagem de um modo antiquado e sóbrio, e os seus vícios são simples mas sempre explorados tangencialmente. É possível que viva num tempo flutuante, uma vez que tudo parece apontar para as décadas do pós-guerra, a acalmia suburbana dos anos 50, mas há pistas para outras décadas, desde os Cadillacs mal-comportados da década de 1960 aos ghettoblasters dos 1980... Ainda que recorrendo a informações externas, paratextuais, e expostas no(s) próprio(s) livro(s), aprendemos que Jack é uma espécie de amálgama do próprio Jerry e do seu pai: quando começou a criar estas páginas, Moriarty tinha quarenta anos, a idade que o pai tinha na sua memória mais recuada e viva, e é o encontro dessa idade que desencadeia essa fusão. Esta é uma informação importante pois funda com Jack Survives um estranho género: não é autobiografia nem heterobiografia (como no caso de David B. com L’Ascension du Haut Mal ou de Emmanuel Guibert com La Guerre d’Alan e Le Photographe), mas uma alterobiografia ou fusiobiografia... um retrato de Moriarty enquanto o seu próprio pai, ou do pai enquanto o seu filho. Na verdade, é ainda mais complicado do que isto, mas convidar-vos-ia a descobri-lo através dos trablhos em si e da leitura da prosa elíptica de Moriarty.
Todo e qualquer autor faz convergir experiências pessoais na sua obra, sem dúvida, mas temos de ter cuidado para não escorregar nas armadilhas do biografismo e pensarmos que são as (poucas e controladas) informações das suas vidas que nos providenciam as chaves de interpretação da obra. Estas apenas residem na própria obra e é por isso que na interpretação a temos de dissecar, escalpelizar, mortificar, no vocábulo de Benjamin. Mas esse é um gesto que, auscultando essa morte, faz emergir a vida ainda presente. Ainda assim, esta infomação torna-se importante – assim como as pistas visuais em que vemos Moriarty, representando-se a ele mesmo em vários trabalhos (telas), ora rasgando o plano de composição de uma qualquer imagem anterior que remete à sua infância ou sonho, ora no local e posição que deveria ocupar enquanto criança, ou ainda na série Sally’s Surprise [aqui ao lado, uma tela como exemplo], em que se mostra presente no corpo de uma rapariga.
Quer a edição da RAW quer a presente reúnem todas as pranchas intituladas “Jack Survives”, assim como desenhos soltos com a mesma personagem, pinturas, versões a cores, que tanto podem ser lidos como trabalhos preparatórios como extensões, variações ou correcções. Nada é definitivo e a própria paginação, que demonstra não existi uma ordems equencial absoluta de prancha para prancha, assinala essa negociação constante.
Chris Ware, na sua introdução, falta de uma certa “falta de estilo” (stylelessness) da pate de Moriarty, que lhe incute uma espécie de atemporalidade. Cita Edward Hopper, cujas escolhas cromáticas, composições descentradas e episódios aparentemente inócuos e silenciosos se aparentam com as imagens de Moriarty. O próprio Moriarty confessa ser essa uma das fontes do seu lado “conservador”, juntamente com Norman Rockwell: uma América que nunca existiu, utópica, de saudável e descomplexada felicidade urbana, negadora de tensões de vária índole. Mas por outro, fala de uma outra metade, “idealista”, nas quais agrega os nomes de Ernie Bushmiller, sobretudo na sua aproximação estilizada e seca de Nancy, e Philip Guston, que depois de uma fase abstracta se relançou no território da figuração procurando auscultar precisamente as tensões indizíveis dos Estados Unidos através de figuras provindo do universo dos cartoons. E é essa mesma tensão, por dizer, que se sente nas histórias de Jack. Apesar de haver um ou outro episódio mais directo (uma menção ao cinema pornográfico como forma de escape, as antipatias de Jack em relação aos mais jovens, culturas que não partilha, uma certa ideia de ateísmo e niilismo [daí que tenhamos incluído no vídeo a primeira história que conhecemos na totalidade]), a esmagadora maioria deles parece concentrar-se em pequenos faits divers domésticos e inócuos, os quais, no fundo, são apenas um finíssimo véu que pretende “dourar a pílula”. Essa ideia de véu sobre um objecto, de camadas, é mesmo palpável na qualidade das imagens...
Nesse texto, Moriarty confessa que é um artista que prefere ver as obras de arte em reprodução, revelando um gosto pela superfície chata e plana da tinta no papel. O que não deixa de ser uma afirmação paradoxal, tendo em conta que esta edição, feita com o uso de novas tecnologias de reprodução (de fotografia, digitalização, correcção de cores e impressão) que permitem ver as camadas de matéria nos trabalhos do autor. Estas pranchas são pintadas em papel Archer com tinta preta e acrílico branco. Há, portanto, uma aproximação técnica que deverá mais à pintura do que à esmagadora maioria das abordagens clássicas da banda desenhada. O que isto implica, e que esta edição contemporânea vem agora proporcionar em contraste à anterior edição de 1984, é que não vemos somente um alto contraste entre as linhas pretas sobre o fundo branco, mas vemos a espessura das tintas, texturas, os “fantasmas” de primeiras versões entretanto corrigidas, de ideias que se esfumaram e desviaram. Estas novas digitalizações-impressões transformam o plano gráfico desta edição com uma noção de “volume”.
Este desenho corrigido faz-nos recordar as técnicas de animação de um William Kentridge (sobretudo o seu trabalho com as personagens Soho Eckstein e Felix Teitlebaum), associando-se assim dois artistas que trabalham, como aponta muito bem Ware, à natureza da memória humana. Aliás, Ware aponta mesmo que a memória é a matéria por excelência da banda desenhada, o que é intrigante, interessantíssimo e que gostaríamos muito de ver desenvolvido pelo autor norte-americano. Dado o nosso interesse pessoal pelas associações possíveis entre a memória e a banda desenhada, tema recorrente neste espaço, as razões serão óbvias. Mas como funcionará em Moriarty? Como se associa a Kentridge? O que emerge dessa “correcção” visível? A nosso ver, a opção de um autor deixar visível todos os passos da constução da imagem, e não operar através das técnicas clássicas opacas, escondendo cada um dos passos (esboço a lápis, desenho, tintagem, etc.) é querer revelar que o gesto é sempre o mesmo, é querer tornar a expressão em acto comunicativo, e não acreditar num estado alcançável de pureza comunicacional (grande herança de Hergé). Com a devida distância entre o cinema de animação e a banda desenhada, que operam em pólos distintos no que diz respeito à relação com o movimento, estes dois exemplos pretendem também demonstrar uma espécie de memória interna da imagem. Se no caso da animação (Kentridge é o nosso exemplo, mas outros animadores recorrem a técnicas semelhantes, como A. Petrov, G. Schwizgebel, enfim, desenho sobre vidro, com carvão, areia, etc.) há uma espécie de permissão em transformar o tempo em espaço, deixando a sua impressão gráfica no tempo como uma memória literalmente bio-gráfica, na banda desenhada, que opera em múltiplas imagens singulares e congeladas, o que se torna visível é o depósito geológico dessa construção.
Também se poderiam falar de outros autores no campo da banda desenhada, com os quais penso existirem afinidades electivas e estéticas: Marco Mendes, Amanda Vähämäki, Vincent Fortemps... todos eles, de modos diversos, procuram deixar visível o processo de construção, as hesitações, as ideias recusadas, os desvios de direcção. Isto traz uma camada de complexidade às obras que não estava previsto na abordagem mais clássica e comercial da banda desenhada. Há pouco tempo deparámo-nos com um artigo que dava início ao seu trabalho através do queixume de que “críticos modernos” desprezavam a banda desenhada de aventuras; outra pessoa dizia que existe muita banda desenhada contemporânea que “não diz nada” e que é uma pena que ela não possa ser uma descomplexada “forma de entretenimento puro”. Não negamos que não o possa ser, nem negamos a importância (e até o valor e o nível de conquistas estéticas eventual) da banda desenhada de aventuras. Simplesmente, do nosso ponto de vista, estamos a viver um tempo excelente em termos criativos no que diz respeito à banda desenhada – já no campo de edição, de caminhos de divulgação, distribuição, etc. é outra a conversa –, dadas as liberdades existentes, a diversidade de autores e linguagens e temas, e a própria possibilidade de explorar o banal, o quotidiano, a mais humana e simples das vivências deve ser entendida como uma força, um avanço, e não como uma perda, usualmente apontada a meros desejos juvenis, presos a uma satisfação básica de pulsões por desenvolver.
São obras como as de Moriarty – para mais concebidas nos anos 80, mostrando uma constante ainda que menos visível história de bandas desenhada outras (utilize-se o adjectivo contrastante que melhor servir) – que revelam a existência de uma possibilidade de tornar este meio um modo de expressão tão complexo e variado como os demais, e que se abrem a uma exploração profunda e enleada entre a matéria de expressão da banda desenhada e os temas com que se pode defrontar e, consequentemente, que fazem pensar o próprio meio da banda desenhada, não só nos ajudando como nos obrigando a pensar com ele.
Nota final: agradecimentos a Nuno Franco, pelo empréstimo da edição RAW de 1980 de Jack Survives. O vídeo mostra não apenas a edição contemporânea, mas ainda materiais e comparações com a edição anterior.

11 de junho de 2010

Krazy + Ignatz + Pupp. George Herriman (Librimpressi)

Nem sempre um tijolo lançado à cabeça foi sinal de amor.
A história do aparecimento, da publicação, das transformações, da “evolução” do trabalho de George Herriman é extremamente complexa, alongada, mas também fascinante e informativa até chegarmos aos gloriosos anos da série Krazy Kat. A emergência lenta, paulatina, d@ gat@ Krazy, terror de toda a população de roedores da casa dos Dingbats, seguido pelo vingador Ignatz que descobriu no tijolo a melhor arma de defesa, a transformação de ambos numa rotineira dupla cómica (aparentado com os actos de vaudeville da época) em torno de piadas patetas de Krazy, a flutuação entre a composição da própria banda desenhada – primeiro como filler de outra tira (The Dingbat Family/The Family Upstairs), depois como tira autónoma, conhecendo vários formatos, do vertical ao panorâmico, às pranchas imensas de Domingo – e mais tarde o fechamento do triângulo com Offissa Pup, não é algo que tivesse surgido de atacado, mas antes um processo de apuramento da parte de Herriman em termos de escrita e desenho. Essa longa história começa a ser-nos facilmente disponível, graças a toda uma série de publicações importantes, com alguns arranques em falso, que garantem a defesa da memória e do património histórico da banda desenhada junto a um público mais alargado. Os destaques especiais vão naturalmente para a maravilhosa colecção editada por Bill Blackbeard, e desenhada por Chris Ware (ainda em curso, estando quase a terminar a colecção de todas as páginas de Domingo e depois passando para as tiras diárias e outros títulos anteriores de Herriman), o volume The Kat who Walked in Beauty, editado por Derya Ataker (ambos projectos publicados pela Fantagraphics), ainda um recente Krazy + Ignatz, “Tiger Tea” (que apresenta uma fracção da única “aventura de continuidade” da série, re-apresentada a um público moderno, no qual nos incluímos, através da RAW) e o volume da Sunday Press que está para sair (e acrescente-se ainda o projecto da biografia do autor por Michael Tisserand). Também existe um punhado de outras edições menos recomendáveis apreoveitando o “domínio público” de parte da série, e alguma da tecnologia disponível nos nossos dias... Neste contexto editorial, o que significa o acto editorial de Manuel Caldas?
A ideia central é proporcionar aos leitores portugueses uma pequena antologia de algumas das mais belas pranchas desta série. Uma antologia é uma selecção e a construção de uma selecção obedecerá a determinados critérios que o editor elegeu como os mais acertados para os seus propósitos. Será difícil crer que uma edição completa (seguindo o modelo da Fantagraphics, por exemplo, como a Afrontamento tem feito com o Complete Peanuts) de Krazy Kat vingasse comercialmente em Portugal, por isso esta plataforma de introdução a uma nova geração de leitores é um gesto de força. E o editor faz escolhas há anos de bandas desenhadas de que gosta e que pretende partilhar com o público. O gosto pessoal, e o carinho por essas séries, pauta o catálogo das suas edições, mas os desenvolvimentos da tecnologia e da edição permitem que possa mostrar esses trabalhos, nas palavras de Caldas (correspondência particular): “com mais clareza, limpas dos estragos feitos pelo tempo no suporte original e destituídas dos defeitos característicos da impressão da época”. Ou seja, aliando ao prazer da antologia, está o da apresentação da arte tal como ela poderia ter sido apresentada, a procura da melhor edição possível. Apesar de haver a confissão de que esta edição acabou por ser ligeiramente mais escurecida do que o planeado, Caldas não procura aquele posicionamento editorial a que Domingos Isabelinho, noutra ocasião, havia chamado de “olhar míope”. Sucintamente, este conceito pretende revelar aquele tipo de reprodução, permitido contemporaneamente, que amplia a superfície da impressão ao plano visível do olhar, aumentando as irregularidades e os acidentes de impressão, ou seja, os processos originais, tornando-os no texto final. É um olhar que “amplia e transforma o imperfeito num novo perfeito”. No campo da banda desenhada, encontramos exemplos disso nas edições desenhadas por Chipp Kidd, nesta recente antologia de Milt Gross, noutros títulos... É um grau de fetichização do coleccionador de bandas desenhadas, transformando um só exemplar do que fora publicado num Ur-texto, através das técnicas de fac-símile. É o querer dar a ver a patina do tempo decorrido sobre o próprio projecto que se pretende recuperar. Mas o papel de Manuel Caldas é também o de restaurador, logo não é apenas um simples gesto de facilitador ou de arquivista, mas de alguém que pretende retornar atrás e chegar a um objecto prístino, de um tempo que não chegou a existir (como um anjo que contrarie o Angelus Novus, de W. Benjamin). As páginas de Krazy + Ignatz + Pupp são, por isso, brilhantes, de cores vivíssimas, de uma presença vincadíssima, e com os traços dos contornos o mais sólidos possível (com a excepção de uns quantos momentos, e com uma opção tremida no design da capa, demasiado carregada de informação dispensável para o interior, penso que esta é uma bela edição em termos técnicos).
Para além do mais, sendo uma edição para leitores portugueses, temos a questão da tradução. Tal como no caso de Milt Gross, também Herriman era um dos expoentes representantes de uma nova atitude moderna na cultura norte-americana, um espelho do cruzamento e polinização de diferentes culturas. Não tanto a ideia do “melting pot”, relativamente errónea, pois não há um resultado coeso e misturado, mas antes um espaço de negociação entre várias culturas. No caso de Herriman, essa mistura revela-se sobretudo nos jogos de linguagem, um verdeiro pidgin entre inglês e toda uma série de línguas outras, ou através de alucinações ortográficas tão reminiscentes de uma ignorância surpreendemente criativa como das experimentações de Joyce. A tradução portuguesa da edição dos anos 90 (pela Livros Horizonte, da colecção abortada da Fantagraphics e editada por Rick Marschall) pura e simplesmente eliminava essa estranheza, e ainda que procurasse um uso da língua popular e oral, acabava por não tornar visível esses desvios ortográficos, multitónicos, poliglotas, etc. (a francesa, da Futuropolis, sim). É uma pena que esta edição tenha optado, como explica Álvaro Pons na introdução, pelas pranchas com menos texto, uma opção “atinada” porque a tradução é um “desafio quase impossível”. A meu ver, esta é uma visão totalmente errada, devedora daquela atitude que as pessoas quando se confrotam com uma tradução disparam de imediato com o “tradutore, traditore”. Se o texto original é forte, pessoal, expressivo, poético, então – e segundo, mais uma vez, uma lição de Walter Benjamin – ele existe precisamente para poder ser traduzido. A traduzibilidade de um texto não está do lado da facilidade, mas antes dos jogos vivos e complexos de uma linguagem para outra; a questão central não está no facto de ser “impossível manter o mesmo jogo” mas em permitir a criação de “novos jogos” e, dessa forma, mostrar ao mesmo tempo na tradução não o facto de estar errada, incompleta, ou “poderia ter sido assim”, mas na mesmíssima qualidade de ser uma opção e abrir-se a outras tantas intepretações. É por isso que um texto “clássico” deve ser traduzido para cada nova geração. Daí também que o editor tenha optado por deixar – de uma forma graficamente curiosa – o texto original num apêndice final. Dito isto, a tradução de João Ramalho Santos devolve em português aquela estranheza fonética-ortográfica do Herriman original, os mesmos jogos de flutuação de linguagem destas personagens, a konfuzam libertária da gramática. Haveria certamente oportunidade e habilidade para explorar aquelas pranchas em que os diálogos constroem outro tipo de força e presença do génio de Herriman.
Já muito foi escrito e repetido sobre esta séria. Chama-se “génio” a Herriman sem procurar onde esse espírito se encontra. Utiliza-se a palavra “surreal”, sem querer empregar esse adjectivo de um modo historicamente sustentável nem explicado (mas sim do mesmo modo como se contaria algo que nos aconteceu no autocarro). Insiste-se no “triângulo amoroso” sem ver que o amor não transita de criatura para criatura, nem que é perene. Falam-se das “paisagens mutáveis” sem que se apontem as ausências gritantes das culturas locais que supostamente Herriman admirava. Centremo-nos apenas no trio central (sem com isso derimir todas as outras memoráveis personagens, dos peixitos-gatitos a Joe Stork). Existem variadíssimas teorias de personagem, e Paul Wells cruzou três delas para procurar estabelecer uma grelha de apreciação de muitos dos formatos de relação entre personagens da animação. Por um lado, temos a tipologia de personagens da animação por Norman Klein, que se divide nos papéis do “Controlador”, do “Polícia” e do “Aborrecedor”, por outro a tipologia teórica da personagem na comédia em geral, de Henry Jenkins, que encontra os papéis do “Palhaço”, do “Tanso” ou do “Chato” (ambos os antagonistas cómicos do palhaço) e finalmente o “Falso”. Quer num caso, quer no outro, deparamo-nos sempre aqui com uma classe de personagens: a A, que está sempre no controle da situação, e que procura a satisfação dos seus apetites e desejos, mesmo sem histronismo (casos claros – em triunviratos – são os de Bugs Bunny, Popeye); outra B, que são aquelas que tentam impor princípios e regras aceites da sociedade, usualmente não o conseguindo e acabando por ser castigado por isso (Elmer Fudd, Olívia Palito?); e a C, a qual tenta também impor certas regras que ela mesma não cumpre (Daffy Duck, Donald Duck, Brutus). Um outro eco destas tríades poderia ser procurado na divisão freudiana da personalidade nas camadas do Id, do Super-Ego e do Ego. Pensando no caso particular de Krazy Kat + Ignatz + Pupp, como encontrar os papéis respectivos? Krazy Kat cumpre, sem sombra de dúvida, o papel do “Palhaço”, pois é elæ quem é a fonte dos trocadilhos, mal-entendidos, erros de percepção, trapalhadas e, quem sabe, da fluida composição em seu torno (os cenários mutáveis, as criaturas híbridas, a concentração de representantes de populações migrantes, misturadas e sempre à margem da “normalidade” da sociedade norte-americana), mas não possui um grama sequer do poder de controlador de um Bugs Bunny. Na verdade, os acidentes é que lhe acontecem: ainda que demonstre o seu maior poder ao aceitar receber os tijolos na cabeça como uma “carta de amor”. Quem erra? Krazy, ao recebê-los, ou Ignatz, ao insistir enviá-los? Por sua vez, Ignatz é o “Polícia” (over-reactor, no termo de Klein), o antagonista de Krazy, que lhe nega as piadas e as descobertas inusitadas, que procura impedir a felicidade delæ sem se aperceber, porém, que contribui para a mesma (são demasiados os episódios em que sucedem comédias de erros deste tipo para os contar). No entanto, na ordem da psicanálise, se Krazy é de facto a expressão desabrida dos desejos, Ignatz não consegue funcionar como força de pressão e correcção social, já que todas e quaisquer acções correctivas que faça apenas aumenta o desejo de Krazy... Finalmente, Pupp cumpre o papel de “Aborrecedor” e de “Falso”: no primeiro sentido, pois “empata” a relação, mais antiga, complexa, dúbia, entre Krazy e Ignatz (ambos já sonharam em casar, já partilharam uma cama, já se mataram um ao outro, já se perseguiram e perderam, etc.); no segundo, pois não muito diferentemente de Daffy Duck ou do Califa (de Goscinny e Tabary), ele quer ocupar o lugar de Ignatz, impondo uma lei por vezes arbitrária (a “prisão preventiva”, sem julgamento e sem, muitas vezes, crime, é constante). À luz da psicanálise, Offissa Pupp ocuparia o lugar do “princípio de realidade”, e é ele de facto quem tem o papel mais conformado com a realidade histórica – uma profissão, um sentido perene do que é correcto, a inscrição numa hierarquia e autoridade, etc. –, mas essa realidade é-lhe completamente alheia e fora do seu controle.
Este livro contém, então, uma selecção de 42 pranchas de Domingo (isto é, não as tiras diárias, mas os trabalho que ocupavam uma página inteira de jornal), e da fase já a cores (“chromatic gravy”, como reza um dos sub-títulos da série antológica da Fantagraphics), inclusive a última prancha de todas, datada de 25 de Junho de 1944, na qual Ofissa Pupp salva Krazy de se afogar num pequeno lago [aqui, a última imagem]. Se bem que seja também uma variação de situações anteriores, e mesmo tendo em conta que a página imediatamente anterior tenha mostrado uma situação similar no mesmo espaço, não podemos deixar de a ler retrospectivamente como uma espécie de testamento (e é o que faz Blackbeard na sua edição): estará Krazy, nos braços do polícia, mort@? Que olhar é aquele de Ignatz? Verdadeira preocupação, ao contrário do triunfo tantas vezes desejado? Podemos ler as gotas saltando à volta dos dois companheiros de Krazy como lágrimas? Para os amantes desta série, a colecção da Fantagraphics é obrigatória para um conhecimento aprofundado; mas esta “kolecção kompletamente restaurada” não o é de somenos: é mesmo uma outra forma de “rekuperação da mima-ória da bãndesgrenhada”, um estado puro das cores e da linguagem.

10 de junho de 2010

The Complete Milt Gross Comics Books. Milt Gross (IDW Publishing)



Craig Yoe já havia alertado em experiências anteriores, sobretudo na revista que edita (Modern Arf e os outros títulos alternativos), para o diálogo entre os cartoonistas e as artes visuais eruditas do seu tempo. Como já afirmámos aqui várias vezes, as mais das vezes esse diálogo é de derisão e incompreensão da parte dos artistas de banda desenhada: a matéria das artes plásticas serve para criar um qualquer tipo de humor, às custas das técnicas pictóricas (o cubismo, um favorito), cromáticas (monocromáticos de Klein, cores anti-naturalistas de Gauguin, etc.), representativas (o surrealismo de Dali), ou simplesmente da percepção generalizada de uma certa arrogância social e discursiva da parte dos círculos que a cultivavam. Nalgumas das páginas destes comics, Gross mostra algumas dessas obras no centro do seu humor, com um especial destaque para um famoso quadro norte-americano, Arrangement in Grey and Black: The Artist's Mother, de James M Whistler, que surge uma vez numa das histórias, e nouta numa colecção de versões sobre pinturas famosas. Gross faz parte daquele grupo de autores que construíram a sua verve cómica – como toda a criação da comédia – sobre os outros: a sua própria “graphic novel” He Done Her Wrong é uma espécie de resposta, sarcástica, aos livos de Lynd Ward.
Gross trabalhou numa série de frentes, tendo publicado para jornais, revistas, livros, argumentos, cenários, animações (como este Jitterbug Follies), etc., mas este enorme volume colecciona o trabalho que Milt Gross fez para o formato dos comics books, não só os dois números da publicação com o seu próprio nome (Milt Gross Funnies) como outras publicações onde participou breve mas regularmente (The Killroys, Giggle Comics, Moon Mullins, ...), entre os anos 1947-48 (fazendo assim um volume com cerca de 350 páginas, no tamanho original, maior, dos comics dos anos 40 e 50).
Ora este período é coincidente (uma fracção) com os anos em que os melhores filmes da Warner Brothers são feitos, nas realizações de Avery, Freleng, Jones e outros. Se faço aqui uma comparação pouco subtil entre os desenhos animados do frenético Bugs Bunny e ca. e as personagens em papel de Gross é devido à natureza cinética, burlesca, e francamente enlouquecida de todas elas. São essas as cenas mais memoráveis pois aquelas que parecem estar ligadas a um fundo comum de vários tabalhos da mesma natureza, e a que outros autores respondem em menor ou maior grau (Barks também desenhava os seus patos a saltar quando surpreendidos, a violência física não tinha verdadeiras consequências na animação, as comédias de erros e de confronto social eram uma constante nos irmãos Marx e noutras instâncias...).
Recordemo-nos também que esta época, os anos 40, foi um momento de grande produção de cinema (no qual Gross esteve envolvido de várias maneiras, desde argumentista a pintor de cenários, como se pode ver neste clip) e de animação. Era um tempo imediatamente antes do domínio comercial e quase monopolista do naturalismo e universos cândidos da Disney, e em que a produção de um Fritz Freleng e sobretudo de um Tex Avery procurava ainda toda a liberdade e exploração de tabus nos desenhos animados. Uma espécie de tentativas em encontrar naquele meio para crianças construções mais adultas e até, subtilmente, críticas sociais e culturais. Paul Wells, um dos mais importantes e divulgados teóricos e académicos do cinema de animação, opõe uma animação que dava prioridade à comédia de personagens, e à personalidade destas, associada aos gostos de “uma população antiga e rural ‘folclórica’”, tal como preconizada pela Disney, e um outro tipo de animação, mais anárquico, modernista, associado “às culturas imigrantes não-WASP [branchas, anglo-saxónicos e protestantes”] que se tornariam parte do ‘melting pot’ norte-americano no final do século XVIII”, citando Raymond Durgnat para explicar que o humor deste outro tipo de animação era “rápido, directo, cínico, muitas vezes cruel, reflectindo um mundo mais veloz e perspicaz”. Gross não apenas pertence a essa geração como a esta tribo particular. As suas personagens não existem para serem desenvolvidas de um modo emocional, racional ou empático, no fundo: são apenas mecanismos rápidos para dar início a todo o movimento cinético das suas histórias espatafúrdias e ilógicas. Durgnat havia identificado a transformação que se operava nesses tempos modernos (e a qual parece ecoar uma lição de Walter Benjamin exposta em O Narrador, modernismo esse visitado por quase todas as instâncias da arte da sua época): “A vida torna-se cada vez mais uma rápida manipulação de sentimentos do que uma experiência total dos mesmos”.
É assim que temos uma procissão com personagens tal como: Gaylord Ginch (de That’s my pop!), um adepto do dolce far niente, ms que arranja sempe um qualquer estratagema espatafúrdio para ganhar a vida e ficar bem visto pelo filho, entusiasmado (que termina as histórias com um “that’s my pop!”); Elwood, um simples homem cujo maior sonho é casar-se com a sua noiva e ser bem visto pelos sogros, mas cujos sonhos são sempre atropelados pelo seu cão destrambelhado, Pete the Pooch; Patsy Pancake, um senhorial maltrapilho, sempre acompanhado (e salvo) pelo fiel mordomo-pinguim Chives; Count Screwloose, um demente hospitalizado que consegue sempre fugir do manicómio para descobrir que os habitantes da sociedade “normal” são ainda mais loucos que ele, e por isso retorna ao asilo para os braços do seu cão Iggy; Moronica, “the nation’s nitwit”, cujo nome diz tudo e é uma espécie de João Pateta de saias. Outras das secções mais famosas são as histórias sobre uma situação qualquer que desmascara a hipocrisia social de uma qualquer classe de pessoas, terminando com um acusatório “Banana oil!”, que se transformaria rapidamente num equivalente a “balelas!” na boca de toda a gente da época. O jogo com a linguagem é algo de típico neste tipo de humor, e pense-se no Krazy Kat, de Herriman, para pensar-se num elo mais profundo dessa relação; Gross teve a sorte de chegar a um público tão vasto que chegou a influenciar a forma como as pessoas falavam (o mesmo acontecendo ainda hoje, em cada país, graças aos seus cómicos) “is dis a system?” é outra das expressões mais repetidas nos livros sobre Gross. Há mesmo algumas histórias curtas que exploram situações completamente absurdas, e as mais das vezes nascem ora de mal-entendidos ora de “traduções selvagens”. Mas seja qual for a personagem, a acção acaba sempre por terminar numa cada vez maior velocidade dos acontecimentos e atropelos das personagens em pequenas situações
Um aspecto curioso é a memória entre duas pequenas histórias de That’s my pop! Poderei estar redondamente enganado aqui, mas recordemo-nos que a “continuidade” a que muitos leitores da banda desenhada mainstream hoje estão habituados é algo de relativamente recente, e estas bandas desenhadas eram produzidas no seio de uma indústria que ainda considerava estes panfletos (os comic books) como algo que não mereceria arquivo, cuidados de maior, nem sequer a atenção do leitor que ultrapassasse o que era ofertado entre as capas de cada número. Mesmo assim, Gross apresenta dois episódios – empregar esta palavra já implica a ideia de continuação – dessa série (Moon Mullins #s 5 e 6, em 1948), em que os protagonistas, na segunda aventura, se recordam e reutilizam matéria da aventura anterior. Não posso, de forma alguma, afirmar que esta seja uma estratégia inovadora ou inédita nos comic books desta natureza e era, já que toda essa história é de uma convoluta rede de avanços e recuos e imitações e correcções, etc. Existiam as tiras de continuidade, mas também existiam reutilizações de personagens secundárias e vilões nos títulos dos super-heróis, por exemplo... Fica a nota.
Outro aspecto culturalmente marcado, e que expande aquela família humorística a que nos referimos acima, é a dimensão musical desta produção. Aqui, as referências teriam de ser obrigatoriamente as de Carl Stalling, o grande compositor dos filmes de animação da Warner Brothers, e de Spike Jones, autor de uma imensa lista de canções burlescas e divertidas. Jones chega mesmo a ser citado numa destas histórias de Gross, e é essa a razão que nos levou escolher uma das suas composições para banda sonora do nosso (sempre péssimo) vídeo.
O livro ainda contém uma intodução pelo filho, outra com um “fold-in” de Al Jafee, e um texto de Yoe em torno da carreira, vida, colaborações e amizades de Gross, assegurando um elemento importante de contextualização estética e histórica deste autor, a recuperar de uma forma mais central do que até agora foi possível.
Nota: agradecimentos a Filipe Leote,que há uns anos me apresentou e passou toda a discografia de Spike Jones.

7 de junho de 2010

Hans, O Cavalo Inteligente. Miguel Rocha (Polvo)

A convite de Rui Brito, editor da Polvo, para além de ter feito uma pequena apresentação pública do livro, escrevi uma pequena nota sobre o novo livro de Miguel Rocha. Quer a apresentação quer a nota tinham, obrigatoriamente, que contornar algumas das questões exploradas no livro, pois devendar a sua trama, algumas das suas opções, mesmo que parecesse meramente superficial e atalhado, acabaria por minar a mais simples, se é que ela pode existir, fruição do livro. Já no texto presente, baseado nessas notas anteriores, como decorre da natureza deste espaço, far-se-á uma leitura de um livro lido em conjunto com os seus leitores, logo, quaisquer revelações da história em si ou das suas estratégias não pode ser vista como debilitante da sua fruição primeira, mas antes transformar-se num órgão auscultador de potenciais leituras segundas, como é da ordem da crítica (diferente da divulgação, da publicidade, ou até do encómio). (Mais) 

O dragão ataca. Tiago Albuquerque (Ao Norte).

Este é o primeiro livro da colecção O Filme da Minha Vida que escapa a uma certa gravidade cinematográfica. Até agora, os autores convidados escolheram filmes que partilham certas características formais e intelectuais que os colocam num território determinado, elevado. Mesmo Vertigo de Hitchcock (por João Fazenda) ou Aconteceu no Oeste de Leone (por André Lemos), os quais tiveram uma vida inicial algo manca, seriam recuperados por facções da criação e da crítica cinematográficas mais tardias. Enter the Dragon, convenhamos, com a excepção da patina que se lhe pode dar graças a uma paixão pelas artes marciais (deslavadas já por uma filosofia reduzida a sebentas New Age e sempre sob o signo da trama policial), não alcança esse território das obras-primas do cinema. Mas é precisamente essa a razão que torna esta escolha de Tiago Albuquerque mais interessante. Não queremos dizer que os outros artistas convidados tenham feito escolhas de filmes procurando uma qualquer legitimação cultural e intelectual, uma vez que os seus trabalhos já lhes permite delinear um contorno muito específico, mas Albuquerque faz uma escolha que parece ser ditada directamente pelos fascínios mais básicos da experiência do cinema. Afinal de contas, se bem que em termos de diálogos adultos e intelectuais nos possamos querer revestir do máximo conhecimento cinematográfico, expondo a nossa preferência pela beleza de Ozu, o mal-estar de Béla Tarr, as metalepses de um Resnais ou de um Lynch, a emoção de um Pedro Costa, a verdade é que o que nos foi marcado a ferros nas mentes jovens nas primeiras ideas do cinema é algo de mais prosaico, básico e descomplexo: em termos pessoais, poderíamos falar da entrada de Darth Vader em O Império Contra-ataca, a melodia de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, ou a atmosfera de Krull. Tudo matéria negligenciável face a desenvolvimentos intelectuais mais adultos, naturalmente. A cena dos espelhos de Enter the Dragon, por exemplo, não tem o mesmo peso ontológico e até mesmo função narrativa do que a de A Dama de Shangai, de Orson Wells: é nestes pesos e medidas que se vai criando um mais acertado prisma de diferenciação.
No entanto, o que marcado foi, marcado está, e não há educação que a apague, ou não fossem impressões de infância/adolescência. Esse fascínio, que tem na imitação física uma das suas faces, está indicado no trabalho de Tiago Albuquerque. Tal como as crianças imitam os movimentos e os gritos de um filme desta natureza nos dias que se seguem à sua experiência, também o autor optou por apagar a possível aproximação textual para mergulhar directamente nesse jogo de estranheza. Apesar de ter começado com uma versão em que trabalhava o texto, adaptando as muitas frases citáveis do filme (“Boards don’t hit back”), Albuquerque optou por empregar textos em chinês (colhendo-os pela internet), criando um écrã impenetrável (para a esmagadora maioria dos potenciais leitores deste livro, que presumo não lerem chinês). Não é que fiquem apenas as imagens: o texto mantém-se nas legendas, nas falas dos balões, nas didascálias, mas tornam-se um obstáculo apenas superável pela imitação, pela derisão, pela brincadeira, idêntica aos gritos e algaraviada que uma criança faz imitando Bruce Lee num qualquer combate.
A trama do filme é deixada intacta em O dragão ataca, ainda que transformada em momentos-chave, fortalecidos pela opção do autor (em colaboração com Adriano Lameira, que desenhou “metade” do livro) em apresentar pranchas quase simbólicas, ora em composições esquemáticas, ora empregando princípios de perspectiva oriental, com a distribuição dos espaços pelo eixo vertical do plano, ora pela sobreposição de imagens que se pretendem mais lidas enquanto sublimação dos eventos que representação naturalista. Como é de esperar, a cena final do combate com Han recebe uma atenção maior, graças a um enorme plano desenhado por Albuquerque de um punho quebrando um espelho, e destruindo a ilusão que havia sido tecida até àquele momento, apenas se podendo seguir o dénouement e a recompensa do herói (também trabalhada pelo autor da banda desenhada de uma forma compósita).
Tiago Albuquerque afasta-se neste livrinho, talvez fruto da colaboração de Lameira, talvez por procura de uma outra linguagem, da linguagem visual altamente estilizada a que nos havia habituado no seu trabalho de ilustração ou animação, o qual era reminiscente de Jim Flora. A estilização mantém-se, mas ganha outras origens, e outras forças; os rostos das personagens ganham um outro tipo de simplificação, que passam por um grau de identificação com os actores reais/personagens originais, e já não se revestem de uma redução universalista. A redução ao preto-e-branco também parece ser um limite a um autor que trabalha de uma forma muito particular as opções cromáticas, mas são os planos cheios (e invadidos pelo texto “estranho”) que garantem a possibilidade de volume e densidade. É curioso que apenas duas onomatopeias (“Grrrrrr” e “crack”) estejam escritas com caracteres ocidentais, uma vez que poderiam ser também substituídos pelas correspondentes palavra sem chinês, ou então poderíamos ter acesso aos gritados “iááá” e “kuóóó” dos combatentes.
O dragão entra e ataca neste livro. Ele surge mesmo, com o seu corpo e presença, umas quantas vezes pelas páginas, como eco simbólico da trama principal. A convivência de ambos os planos é eco da memória reconstrutiva de Albuquerque, que mostra assim a continuidade de um fascínio vivo por este filme.
Nota final: agradecimento ao editor, pela oferta do livro.