19 de maio de 2010

Wilson. Daniel Clowes (Fantagrahics)



Não sendo este o primeiro “livro” de Daniel Clowes, com uma só narrativa coerente e centrada numa ou poucas personagens, é a primeira vez que se apresenta material que não tinha sido alvo antes de publicações no seu comic book Eightball (que terá chegado ao fim) ou outros locais. No entanto, ao contrário de Ghost World ou Like a Velvet Glove Cast in Iron, este livro estará mais aparentado com Ice Haven, quer pelo carácter fragmentário da sua linha narrativa quer pelo emprego de toda uma panóplia de registos estilísticos e figurativos. No entanto, a trama diegética é muito mais concentrada. Poderíamos dizer mais: egoísta, solipsista, ensimesmada. É por essa ordem de razão que Wilson pode ser caracterizado. Uma personagem solitária, patética, odiosa, rancorosa e irritante. Um humano, demasiado humano. Ou talvez pior que humano. Poderíamos dizer que Wilson é um ser social que não aprendeu a travar a língua, ou a desenvolver os mecanismos psico-sociais que fazem de nós bons cidadãos, chamemos-lhes “boas maneiras”, “hipocrisia” ou “ponderação”. Se Wilson tem algo a dizer, di-lo-á. Fica-se na dúvida se isso é uma liberdade total ou se é pura e simplesmente uma estupidez profunda. O caricato é que este Wilson poderia ser qualquer um de nós, se não tomarmos cuidado. Quantas vezes (por dia) nos apetecerá mandar alguém à merda, chamar outro de filho da puta, esbofetear outra pessoa pela sua total inanidade, injuriar um artista pelas suas platitudes? Mas não o fazemos, graças ao espírito de auto-crítica e, enfim, ao nosso desejo de auto-preservação e vida em sociedade. É bom existir controlo. Wilson não o conhece.
Wilson é uma espécie de variação e actualização do Mr. Natural, de Robert Crumb, mas onde a personagem do Papa do underground era sarcástico às expensas do patético Flakey Foont, Wilson é antes cruel, e dirigindo a sua bílis a toda a gente. Claro está, a razão, sentimo-los bastas vezes, é a total falta de amor-próprio de Wilson, ao contrário do guru de Crumb, que irradia uma gloriosa auto-confiança, determinação e poder de sugestão sobre os outros. Wilson defende-se sistematicamente, transformando as suas fraquezas num ataque, mas sendo ele mesmo quem se derruba nessa miséria.
Clowes construiu uma personagem totalmente desprovida de aspectos que a tornem verdadeiramente humana ou, sendo-a, empática. Não existem, pelo menos a meu ver, aspectos que o tornem comovente ou digno da nossa simpatia: mesmo quando revela alguma tristeza ou arrependimento, sentimos todo o seu egoísmo horrendo à tona, ou a razão pela qual ele merece o tratamento que recebe. Não chegamos jamais a ter acesso aos seus interesses – qual é a sua profissão? Passatempos? Em que ocupa o tempo em que não está a martirizar o seu semelhante? – e tudo nos leva a crer que não tem amigos em qualquer sentido dessa palavra. Apenas as circunstâncias o parecem ter empurrado para a existência de algumas ligações: o pai, que está a morrer, a ex-mulher, que o abandonou, uma filha, de quem não sabia a existência, os parentes da ex-mulher, que o detestam, e com razão. E uma cadela, que foi certamente mais feliz sem a sua presença. Até agora, Daniel Clowes sempre explorou personagens relativamente “perdedoras” num sentido de expectativas sociais e financeiras, e sobretudo emocionais, mas sempre para revelar que no fundo são elas os pilares morais e humanos de uma sociedade mais preocupada nos ditos “valores” (desculpas de hábitos culturais por questionar, comportamentos superficiais e materiais, e totalmente egotistas e desrespeitosos dos verdadeiros “outros”). Criava-se uma rede de simpatia junto do leitor. Não é o caso de Wilson, cujo abandono, depois de fechar o livro, não criará ligações afectivas positivas.
Porém, é aí mesmo que o autor consegue criar uma obra forte. Quão possível é explorarmos a mais chã da biliosidade humana? Até que ponto estamos dispostos a acompanhar a capacidade dos seres humanos em serem egoístas e cruéis com quem os rodeia? O que se aprenderá na exploração da mesquinhez? De certa forma, a moral, ou melhor, a falta total de moralidade e a visão social de Wilson recorda-nos posicionamentos éticos que se descobrem em experiências-limite de outras áreas. Um exemplo: o narrador de Cadernos do Subterrâneo (1864), de Dostoiévski. Outro: o filme Családi tüzfészek (“Ninho familiar”, 1979) de Béla Tarr.
Atrás referimo-nos a registos diversos em termos de estilo. Como podemos comprovar aqui pela colecção dos rostos de Wilson, cada uma das páginas é apresentada sob formas diferentes, de estilos mais realistas e sombreados a esquemáticas e estilizadas apresentações, passando por estratégias de reconhecidos géneros mais cómicos da banda desenhada (“big foot”, “cute”, “screwball”, à la Nick Bertozzi). Que quererá Clowes transmitir com isto? Uma possível visão prismática, multifacetada, fluida, de um mesmo conjunto de personagens, ou de uma personagem num mundo partilhável mas cuja percepção é necessariamente pautada por princípios subjectivos diferentes? A flutuação de uma vontade de acordo com as circunstâncias (afinal, reinventamo-nos todos os dias, usando máscaras diversas)? Uma forma de enfrentar através de uma hiper-actividade, ou hiper-personalidade – todos os estilos, todas as vozes, todos géneros –, o mundo contemporâneo, habitado pela somrba da “felicidade paradoxal” de que fala Lipovestky? (cada vez mais de tudo em termos de consumo, cada vez menos em termos de redes reais entre os indivíduos). Clowes não o faz no interior de uma hipotética “evolução”, como se nota quando lemos um livro de um autor, uma obra que se tenha desenvolvido ao longo de anos. E, mais, há uma espécie de divórcio entre o tom soturno e patético de todas as histórias, e o seu ritmo, natureza, os desenhos, que atravessam um espectro imenso, inclusive cromático.
No interior do território da banda desenhada, também poderemos pensar outra coisa ainda. É como se Clowes revisitasse – fantasmaticamente, potencialmente – toda a história dos géneros cómicos da banda desenhada, sobretudo das tiras de jornal, das mais famosas às mais obscuras, das mais belas às mais horrendas (misturando, portanto, Peanuts e Beetle Bailey, Blondie e Gardfield), arrancasse toda a comédia e estereótipos desses trabalhos, e revelasse a mais profunda solidão e tristeza humanas, a mais baixa camada do patético dessas personagens, e as servisse, apuradas, sublimadas, com Wilson. Wilson é o epítome dessas personagens-tipo, despojadas da comédia de situação, depois de acordar desse sonho genérico. Uma criatura patética. Como é discutido no podcast da Amazon em torno deste livro, é uma variação de Gardfield minus gardfield, ainda que com instrumentos mais fortes e desenvolvidos, claro está.
Cada página actua como uma mini-história, com a sua própria linha estilística, um título e uma punchline, e não é difícil imaginar que Wilson pudesse ter sido construído página a página, ao ritmo de uma sua publicação prévia num jornal (que aguentasse esta personagem negativa), uma forma clássica. No entanto, se as primeiras dezenas de páginas parecem apenas vogar em torno do embate entre Wilson e vários figurantes ao acaso, meras vítimas ocasionais, aos poucos vai-se “adensando a trama”, como se costuma dizer, primeiro alargando o nível de referências do seu passado familiar, e rapidamente colocando-o na senda de uma recuperação da felicidade – que Wilson entende tão-somente como um mal-informado comodismo, um conforto com meia-dúzia de pessoas, eleitas para que lhe sirvam de espelho distorcido para o resto das duas vidas. Primeiro quer redescobrir a ex-mulher, depois a filha, de que não tinha sequer conhecimento. Nem tudo corre bem, mas há como que uma recompensa e um castigo (o egoísmo e variação de Wilson expressa-se mesmo nas guardas do livro).
Se Wilson merece a sua sorte o não, na mente dele, como ocorre na derradeira história, lá congeminará a ideia de que é ele quem tem razão e é ele quem vence. Deixemo-lo.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, pelo empréstimo do livro.

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