5 de maio de 2010

Footnotes in Gaza. Joe Sacco (Macmillan)

Poderíamos dizer que a posição de Sacco é uma espécie de compromisso entre as tradições herodoteana e tucidideana. Por um lado, Sacco transmite, quase directamente, os relatos que escuta das pessoas entrevistadas, mas isso não o impede de se munir de toda a espécie de documentação que lhe é disponibilizada para procurar um contra-balanço “objectivo”, esperando que o confronto entre as duas estratégias possam fazer emergir alguma ideia de verdade. É claro que esta é uma interpretação redutora, porque reduzida. Há toda uma série de aspectos que devem ser (e são-no, por vários investigadores) estudados: a relação entre o entrevistador e as fontes, e a forma como ele as revela ou negoceia; a acumulação de várias perspectivas para ir procurando uma ideia comum, mas em vez de se decidir por uma delas através da síntese e sumário – um número de mortos, um percurso exacto, detalhes técnicos – Sacco dá espaço e voz a todas, deixando ao leitor parte dessa tarefa; o próprio acto de mediação duplo permitido pela banda desenhada, em primeiro lugar o trabalho de “montagem” e “organização” das vozes e relatos, em segundo o da “reconstrução imagética”, com tudo o que acarreta de expressão e o balanço curioso entre realismo e caricatura do seu estilo; a forma como o seu discurso não pretende qualquer ambiguidade e avança um posicionamento político. Por exemplo, no prefácio ele escreve “[Abud El-Aziz En-Rantisi, do Hamas] foi assassinado por um míssil israelita” (nosso ênfase). A escolha daquele verbo em particular está em franco contraste com o tipo de vocabulário empregue pelos meios de comunicação social, os quais optariam talvez por “vitimados por” (como se fosse um acidente), “danos colaterais” (as inevitáveis circunstâncias dos conflitos armados), etc.
É curioso como este livro, que acumula vários trabalhos previamente publicados, sendo o maior livro de Sacco, se centra em dois acontecimentos relativamente curtos e circunscritos: os massacres de civis palestinianos às mãos do exército israelita em Khan Younis a 3 de Novembro de 1956 e em Rafah a 12 do mesmo mês. Este é o único propósito da nova visita de Sacco à Palestina, à Faixa de Gaza. O(s) egoísmo(s) é às vezes atroz, mas não se evita mostrá-lo, como se o curso dessa pesquisa fosse o único propósito que permite constituir o livro. O de Sacco e os seus ajudantes em perseguir apenas as histórias relativas a essas datas: sempre que alguém se mostra interessado mas tem pouco a dizer sobre esses acontecimentos, ou tem uma memória de outra data (e pouco importa que sejam histórias tão temíveis e violentas como todas as outras, há como que uma confusão em criar hierarquias de horror), o jornalista apressa-se a agradecer e passar para outra. No campo da smemórias reconstruídas, o das pessoas preocupadas em salvar a pele face ao fogo israelita, mesmo que isso implique abandonar vizinhos e amigos moribundos. Todavia, é esse propósito único, esse olho de ciclope, e esse egoísmo aquilo que traça a linha central do livro, e que estrutura todos os outros elementos em seu torno.
A atenção de Sacco, apesar de concentrada, abre-se sempre em múltiplas linhas. Muitos de nós terão visto dezenas senão centenas de vezes os cortejos funerários palestinianos, em que pessoas armadas abrem o transporte de um cadáver de alguém que se torna símbolo e mártir da sua luta, e as mulheres atrás, ululuando. Essa imagem surge-nos sempre numa montagem videográfica que a separa de tudo o resto, do mundo e da notícia, e leva-nos a criar uma imagem de algo ininterrupto naquele mundo longe do nosso. Um momento há em que Sacco nos mostra a rua principal de Gaza, a Sea Street, na sua existência mais banal e quotidiana, de repente interrompida por um desses cortejos, e a sua retirada. Esta perspectiva, que pretende demonstrar como esses cortejos são algo de frequente e pouco surpreendente para a população de Gaza, em que continuam com os seus afazeres diários apesar desses funerais (de pessoas que não das suas famílias), é talvez mais indicativa de um sentido de vida, de um choque que banaliza a presença da morte, do que o modo como as notícias se escrevem nos meios mais convencionais. O título Footnotes in Gaza pretende, da parte do autor, apontar para aquilo que ele entende serem os dois eventos: nada mais do que “notas de rodapé”. Quer dizer, dois eventos que não têm um peso substancial na já de si pesadíssima guerra entre estes dois povos (ou entre povos além deles, evidentemente, pelos apoios políticos mundiais), dois eventos que não suscitam particular interesse nas memórias quer dos que lá lutam quer dos que cá reportam, dois eventos que não inflectem de modo nenhum o progresso (uso a palavra ironicamente, caso escape à alguém) do conflito. No entanto, a “nota de rodapé” é algo que está ainda visível na mesma página do texto principal, e parece-nos que estes dois eventos haviam sido relegados para as notas de fim do livro... Sacco, ao recuperá-las, ao colocá-las no centro da sua atenção ou exigindo que as testemunhas se recordem ou permitindo que essas memórias ganhem um corpo textual, quer desdobrá-las em texto propriamente dito, sem porém lhes retirar essa aura, secundarizada, pequena, diminuída, de notas de rodapé. Quer dizer, é precisamente por manter o seu papel secundário no conflito que os dois massacres se tornam significativos, tal qual todos os elementos dramáticos espalhados no relato – a demolição das casas na fronteira com Israel, os tiros e rockets que atravessam as ruas, os funerais repentinos, a falta de condições mínimas de vida e trabalho e dignidade, a dor e ódio do povo isolado de Gaza –, enquanto “ruído permanente de fundo”. É sempre assim, parece quer dizer-nos este livro. Maktub.
Mas ao mesmo tempo, o título poderia ser lido também como “Footprints in Gaza”, num sentido em que estes passos de Sacco não deixarão de ser pequeníssimos sinais que em pouco alterarão o estado das coisas, demasiado complexo para serem resolvidos mesmo por uma bateria de reportagens, relatórios e acordos, como a História já o demonstrou. Mas estão dados, ficam vincados. Talvez sejam apagadas, talvez não. Depende do modo como agirá sobre os leitores.
Maktub. A notória fatalidade tem também outro peso que nos retorna ao papel sobre a História: aquela famosa frase de Santayana que reza “Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo” é na verdade delida todos os dias. Aqui voltamos à visão de Heródoto, e à sua lei da história, a da “eterna lei da vingança”. Pouco importam as notas de rodapé, as pegadinhas. É inevitável que se mantenha o curso do ciclo.
A expressividade do trabalho de Sacco é reconhecida. A forma como gere a fragmentação dos discursos, como espalha frases em legendas flutuantes, nem sempre obedecendo a qualquer tipo de axiologia organizada, mas bem pelo contrário tirando partido da máxima significação na sua distribuição aparentemente aleatória pelo quadro visual, a escolha equilibrada entre letras desenhadas de uma forma “normal” e outras a negrito, largas, explondindo, a repetição quase minimal de rostos, o tratamento destes de frente como se se tratasse de um retrato-robot ou fotografia de arquivo de identificação, a sua auto-representação num grau maior de caricatura e a eliminação dos olhos (a testemunha-Sacco nunca revela o seu próprio órgão visual), enfim, tudo isto e muito mais concorrem para a efectiva fórmula de reportagem de Sacco, um encontro entre a assunção total do papel subjectivo e integrado que ele tem no ambiente social, e a voz dessa gente.
Sacco opera uma espécie de confluência de temporalidades ao mostrar não apenas a testemunha no momento presente, em que se cruza com o entrevistador, mas também representando-a no momento passado, em que testemunhou o evento que se procura explanar. O que Sacco “vê” e o que Sacco “escuta”, ambas transformadas em matéria visual indiferenciada no seu papel e lugar no livro. O mesmo acontece aos espaços, as ruas, os bairros, mostrando-se a imagem do que Sacco vê agora como aquilo que ele projecta ter sido esse mesmo espaço então. Sacco não procura fazer uma “temporalidade entrelaçada” (o termo é de Hillary Chute) como Art Spiegelman em Maus, por exemplo, em que veríamos numa mesma vinheta a representação do momento presente e uma projecção advinda do passado, mas isso devia-se ao facto de que Maus fazia convergir, complicar e confundir as memórias de Vladek, que as havia vivido, e as de Art, que as reconstruía através das entrevistas ao pai e depois a fabricação do comic. Sacco, distanciando memórias pessoais e reconstrução autoral pelos espaços diferenciados das vinhetas ou pranchas, mostra como há um abismo intransponível, ou que ele não deseja ultrapassar, entre as pessoas envolvidas. Art sente, exige, a memória do seu pai como sua (algo que é recorrente na literatura do Holocausto pela parte da geração dos filhos, como víramos a propósito de Bernice Eisenstein: Marianne Hirsch, num estudo sobre Maus, fala de “pós-memória”, a apropriação da parte dos filhos dos sobreviventes do Holocausto dos relatos e memórias, integradas e reconstituídas como suas); Sacco quer dar voz aos palestinianos entrevistados, mas manter a sua distância, individualidade, respeito. Spiegelman quer dizer: “esta memória é minha também”; e Sacco: “eis a memória deles” (o pronome “eles”, é sabido, tem uma carga de distância substancial, ainda que aqui não seja de desprezo, negativa, recusante). Um dos momentos em que isso se torna absolutamente visível, não mais que duas vinhetas no centro destas quase 500 páginas, é o seu diálogo com Ashraf, um amigo do seu companheiro e tradutor em Gaza, Abed, e professor de inglês em Khan Younis, que conhece mais tarde, já em Rafah, e ao qual apelidará de “leão”. Ashraf rapidamente parecerá tomar o leme da missão de Sacco, prontamente procurando os contactos a fazer, buscando a casa certa da pessoa a entrevistas, abrindo caminho. Ashraf pede um conselho ao jornalista sobre o que deve fazer depois de ter visto a casa que construíra demolida pelos israelitas. Sacco não sabe o que responder, não tem conselho a dar, a sua vida não se entrelaça com a de Ashraf. O que vê são duas vinhetas separadas. Um pequeno abismo em que as vozes – a legenda do pensamento e o balão de fala – estão divorciadas. Eis o sinal dos limites de Sacco. Eu não posso fazer nada. E mesmo quando dá um conselho, ele é vazio de uma verdadeira consequência. Como o poderia ser de outro modo? Sacco regressará ao seu país. Que pode ele fazer? Que pode fazer um jornalista, mesmo um autor de banda desenhada, por Ashraf e pelos outros palestinianos na faixa de Gaza, que vêem as suas casas demolidas, as suas vidas cercadas, a sua dignicade cerceada?
Oferecer um tijolo. Ei-lo.
Nota: ver Faire Le Mur, um herdeiro do trabalho pioneiro de Sacco, ainda que bem diverso.

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