28 de maio de 2010

Leal da Câmara, retrospectiva (World Press Cartoon)

Associado à exposição anual da World Press Cartoon, comissariada pelo famoso caricaturista António [Antunes], o Museu de Arte Moderna da colecção Berardo de Sintra, em associação com a Casa-Museu Leal da Câmara e a Câmara Municipal de Sintra, proporcionou uma mostra retrospectiva de vários originais do artista Tomás Júlio Leal da Câmara. Este catálogo reúne mais de duas centenas de trabalhos [exclusivamente seleccionados da colecção da Casa-Museu por António], pequenas abordagens biográficas (da autoria de Élvio Melim de Sousa e Luciano Reis) e ainda outros breves apontamentos, que o tornam desde logo um livro de referência para o estudo e apreciação de um dos “grandes” da ilustração em Portugal.
É este tipo de contributo, concentrado, válido e substancial, que nos vão aproximando de uma eventual futura e organizada História da Ilustração em Portugal. Se bem que não haja aqui uma abordagem propriamente histórica, de contextualização social, cultural, nem uma apreciação ou análise estética da obra de Leal da Câmara, mas tão-somente uma oferta do catálogo desta retrospectiva, ela funciona desde logo como mostra alargada da sua pena. Desde os seus primeiros trabalhos, relativamente toscos, ainda sem contornos autorais mas confundíveis com estratégias visuais sem peso da sua altura, passando pelas primeiras contribuições com significados políticos assumidos (devedores de tradições antiquíssimas, encontrando-se nos caricaturistas ingleses do século XVIII ou no binómio Daumier-Philipon dois acmes), as colaborações com dezenas de revistas ilustradas das primeiras décadas do século XX em Portugal, Espanha, França e Bélgica – revelando-se assim um panorama bem mais alargado do que aquele que havia sido aventado no volume de Theresa Lobo –, a sempre contínua dedicação à caricaturização das figuras públicas através de modos minimalistas (um traço, c’est tout – veja-se uma representação de Hitler [ao lado]), um olhar atento social às camadas mais desfavorecidas das sociedades pelas quais atravessou (muitas vezes recordando o trabalho de “aguarelas sociais” de Constantin Guys), passamos por todas as “fases” e “forças” de Leal da Câmara, até desembocarmos nos guaches e óleos dedicados à figura do tradicional saloio, oscilando entre ecos de um impressionismo tardio e uma aproximação mais “naif”, estilizada, quase devedora de uma ilustração publicitária do que viria a ser chamado de “linha clara” (Rabier, Hergé…).
Algumas destas imagens são extremamente curiosas. Um conjunto delas são todas as instâncias em que o artista se retrata a si mesmo, com um nariz aquiliníssimo, encontrando-se a mais divertida representação num seu ex-libris, em que o artista se transmuta em pequeno diabrete, munido com a sua jocosa ferramenta de trabalho [abaixo, último parágrafo].
Na exposição em si, talvez a mais imponente e surpreendente composição seja aquela intitulada “Conflitos Regionais” [aqui ao lado], de 1939, uma espécie de tríptico de aguarela sobre papel, cujas dimensões são de 163,2 x 64,8 cm. Ao centro, vemos uma Europa sob o assalto de aviões alemães, com as figuras beligerantes de Hitler e Mussolini avançando para Oeste, contra a Marianne de França, e um matador espanhol, e um gigantesco Estaline, de bomba na mão, inclinando-se sobre toda a Europa Ocidental. Na Índia, um pequeno Ghandi faz frente, pacificamente, a John Bull. No norte de África, vemos outros conflitos. É confusa a composição, e para mais a sua explicação verbal, mostrando o desarranjo a que todas estas frentes levaram… Na parte da Ásia, uma gigantesca mancha vermelha (sangue, fogo, símbolo, tudo isso?) alastra-se sobre um imenso chinês acossado por um militar japonês, enquanto no sudoeste, John Bull e o Tio Sam trocam equipamento bélico. Em contraste a todo este palco facínora, na costa mais ocidental, o Zé Povinho dorme uma sesta sob as folhas de uma oliveira. Desprevenidamente, poderíamos interpretar esta imagem como uma espécie de elogio à paz portuguesa (cuja responsabilidade, ainda hoje se pretende, como um mito, entregar nas mãos de um benfeitor e providente Salazar), como alívio, como bonomia bem merecida. No entanto, é bem possível que haja uma outra possibilidade de leitura, mais irónica, mais marcada: a de uma total apatia e ignorância em relação ao mundo cosmopolita que nos rodeava, elevando esse suposto não-envolvimento no conflito como uma falta de carácter, da mais aborrecida e chã letargia. A qual, na verdade, é uma das grandes heranças ainda hoje vividas (por vezes com orgulho cego) do salazarismo. Esta imagem faz-nos interrogar isso, assim como desejar saber mais do papel de Leal da Câmara em relação a essa época. Fica em suspenso, mas prometida nas páginas deste catálogo.
É que se as caricaturas, cartoons e capas de publicações até aos anos 20-30 retratam directamente intervenientes da política portuguesa, situações sociais que vivíamos no nosso país, e as mais das vezes representações essas com um sinal republicano, se não mesmo ainda mais à esquerda e radical, depois dessa data mudam de tom. A atenção vira-se a aspectos mais de retrato social – os saloios – ou viradas para a cena internacional da guerra (cuja atitude geral no país era a de dar uma no cravo e outra na ferradura). Terá Leal da Câmara “amolecido” com a idade ou com o novo regime? Será simplesmente uma questão de escolha das imagens desta mostra? Eis um outro conjunto de questões às quais ficamos, para já, sem resposta. [A resposta é dada pelo organizador da exposição e catálogo: as imagens, tendo sido exclusivamente sido colhidas da colecção local, impediam formar um outro retrato, logo, esse "amolecimento" (minhas palavras) são fruto da circunstância do próprio autor].
Em termos gerais, as reproduções das imagens são satisfatórias, ocupando parte substancial da página, mas há um caso ou outro em que os cortes (a “cropagem”, como se costuma dizer) não respeitam todo o objecto, e outros ainda em que a resolução não é das melhores. As legendas indicam um suposto título, a data (ano), e, quando se tratam de originais, técnicas e dimensões. Mas não há qualquer indicação do seu contexto. Se algumas delas se repetem, vendo o original e depois o seu emprego na capa de uma qualquer publicação, porque não as ter colocado lado a lado, de forma a poder contrastar de imediato o seu uso? Muitas das imagens, sem essa contextualização desejada, fica sem resposta sobre o seu emprego verdadeiro: trata-se de uma encomenda, algo que se reveste de um prazer privado, de um ciclo de colaborações com uma revista ou jornal? E neste caso, com qual, qual a sua política editorial, qual a sua família política, quais os autores com que dialogava nesse espaço público? [Mais uma vez, outro esclarecimento: muito do material, quer os originais quer as publicações da época, que compõem a colecção, encontram-se num estado relativamente pobre, e o trabalho de restauro digital das imagens para o catálogo foi hercúleo, limpando-se bolores, manchas, carimbos, riscos, e outros acidentes. Mais, uma vez que se trata, como dissemos, de um catálogo, não apontamos essa ausência de mais informação contextual como responsabilidade dos seus autores: este catálogo deve funcionar como estímulo aos verdadeiros historiadores em construir essa imagem, percepção, contextualização, etc.]
Estamos em crer que, nos dias que correm, e não obstante a própria exposição da World Press Cartoon, e o trabalho de um número reduzido de autores, não há em Portugal uma verdadeira “escola” de ilustração editorial. Por “ilustração editorial” – por mais irritantes e redutoras que sejam as categorias – entendemos não as ilustrações que surgem em jornais ou revistas, acompanhando um qualquer artigo jornalístico, de divulgação ou até mesmo de opinião. Entendemo-la antes como aquela ilustração em que o próprio autor, através da sua linguagem visual, toma partido e dá a ver ao seu público um posicionamento em relação ao evento ou conceito abordado. Neste campo, poderemos incluir, ainda que de forma flutuante, alguns dos trabalhos de Augusto Cid [e quem acaba de ser lançado um tomo antológico, pela mão de João Paulo Cotrim] e de António (não toda a caricatura, mas sim aquela que traz algo do seu tempo específico à baila: como a caricatura do Papa João Paulo II com palas de burro na cabeça, bem mais contundente do que aquela do preservativo no nariz: só que no hipócrita e beato Portugal, as questões do sexo criam mais celeuma), as tiras de Luís Afonso e, sem qualquer dúvida, e pensando mesmo ser o nosso melhor artista do momento no que diz respeito a este campo específico, António Jorge Gonçalves, com os cartoons que produz para o Inimigo Público, sendo muito mais mordaz nos seus comentários “visuais” do que toda a verborreia desse suplemento. Aliás, foi numa troca de correspondência com esse artista que ele nos afirma “(…) o cartoon não comenta aquilo que acontece no mundo, mas aquilo que a imprensa diz que acontece no mundo (…) o bom cartoon não é acerca duma piadinha ou de um trocadilho, mas sim uma opinião pessoalíssima e um pouco contra-cultura (o que quer que isso signifique num determinado momento e local).” Nesse sentido, já vivemos tempos mais felizes e fortes da caricatura ou do cartoon político, fase na qual Leal da Câmara encontra, dos anos 1890 a 1930, um papel preponderante. Repare-se na capa do Miau! de 1916 [acima], e pense-se na sua possível aplicação hoje. Se tempos houve em que um primeiro-ministro (ou um rei!) poderia ser retratado como um porco, iteralmente, levando o artista e a publicação a multas, prisão ou exílio, hoje quaisquer “brincadeiras” causam dissabores de outra índole, menos mediáticos talvez, mas mais perniciosos (porque em "democracia aberta e transparente"). Haveria aqui muita discussão a desenvolver, com melhores interlocutores do que nós. Mas parte da responsabilidade desse “apagamento” está nas mãos dos artistas, outra da “vida que se leva”… Independentemente de experiências tais como as de O Combate.
Como dissemos, o livro está organizado de acordo com princípios cronológicos-biográficos, dividindo-se em “Juventude”, “Exílio” e “Regresso”. Os capítulos têm uma breve listagem de acontecimentos, antes de entramos na colecção das imagens que corresponde a esse período. No entanto, ainda que os textos sejam concisos e informativos, de quando em vez revelam a possibilidade de se desdobrarem numa mais explanada abordagem, não partindo de pressupostos do conhecimento de toda a circunstância histórica, social e política do Portugal de então. Por exemplo, apesar da patente costela republicana do artista, e por vezes anti-clerical, nacionalista (e, às vezes, revelando alguns princípios de xenofobia, anti-semitismo, ou humor racista), uma frase como “Um ano depois, e por razões por demais ‘óbvias’, parte para o exílio espanhol”, mesmo confrontadas e complementadas pelas imagens claras (a última capa d’A Corja!, de 1898), seria aconselhável tornar essa obviedade mais explícita, até mesmo para compreendermos, na aproximação do centenário da República, de toda a complexa novela política e social, e até o combate feroz, que a antecedeu, que a viu nascer e tentar se desenvolver… Seriam esses desenvolvimentos que nos permitiriam entender melhor esse momento, e contrastá-lo com o nosso, passando a entendê-lo melhor também.
Nota: livro pertencente à Biblioteca da ESAP-Guimarães, ofertado pela CMS. Algumas das considerações deste artigo nasceram da troca de impressões com António Jorge Gonçalves, Osvaldo Macedo de Sousa, e outros. A todos agradecemos. Acrescente-se um agradecimento a António Antunes, com quem a, com pena, demasiado breve troca de impressões depois da sua leitura deste texto ajudou em novas direcções; fica o voto de que futuros contactos possam aumentar o nosso conhecimento, imediatamente exponenciado, assim como a nossa exactidão e equilíbrio na leitura dos livros.

27 de maio de 2010

SuccoAcido: In Search of God 3: Caminhando com Samuel. Tommi Musturi (Em Portugal: Mmmnnnrrrg)


Finalmente, o terceiro texto versa a mais completa obra do finlandês Tommi Musturi, num livro aparentemente simples, mas cuja abertura à interpretação nos parece ser substancialmente forte. Link.

SuccoAcido: In Search of God 2: Dieu en personne. Marc-Antoine Mathieu (Delcourt)


O segundo texto deste ciclo é dedicado ao mais recente livro de Marc-Antoine Mathieu, que faz unir o seu já predilecto campo do absurdo com a figura de um Deus que baixa à terra para descobrir o quão inconsequente é a sua suposta maior criação. Link.

25 de maio de 2010

SuccoAcido: In Search of God 1: Genesis. Robert Crumb (Fantagraphics)


Na continuidade da minha colaboração com o site SuccoAcido, desta feita deixei algumas considerações sobre três livros que, de uma forma ou outra, se debatem com a questão de Deus, sua representação, o seu papel social, imagético e imaginário. Os três livros são a versão do Génesis pelas mãos de Robert Crumb, o absurdo Dieu en personne, do grande Marc-Antoine Mathieu, e o maravilhoso Caminhando com Samuel, de Tommi Musturi. Neste momento estão já online a introdução e o texto sobre o livro de Crumb. À medida que surgirem os outros, já completos mas cuja colocação online está agendada, deixarei recado. Agradecimentos à equipa da S.A.

19 de maio de 2010

Sai do meu filme. Tiago Manuel (Ao Norte)



O que se encerra num nome? Esta pergunta faz sentido quando nos deparamos com este livro, que podemos dizer ser o primeiro livro de narrativa com imagens assinado por Tiago Manuel, que se “despoja” do seu trabalho heteronímico anterior. Não é nenhum segredo que é Tiago Manuel o autor empírico, real e tangível de outros livros da mesma natureza (e que natureza tão diversa e díspar!) que surgiram sob os heterónimos de Max Tillman, Tim Morris, Marriette Tosel, Terry Morgan, Murai Toyonobu e Tom McCay. No entanto, se até à data jamais recorremos ao nome “real” do autor, é porque não somente essa evidência está patente na sua assinatura, literalmente, em cada uma das páginas, como pensamos que cada um desses trabalhos não lhe devem ser atribuídos senão de um ponto de vista biografista, historicista e sociológico. Em termos estéticos somente, de voz, de respeito para com a personalidade autoral, esses livros apenas pertencem aos nomes (e voz e rosto, mesmo que diluídos-transformados nesse exercício de projecção) que surgem nas suas capas. [veja-se a "nota sobre heterónimos" aqui]
Tiago Manuel assina outros trabalhos, usualmente de fotografia, ilustração e uma longínqua pintura, mas este é o primeiro livro editado com o seu nome (e que fará parte de outros dois – para já – que surgirão ainda este ano, repescando duas séries de trabalhos expostos em contexto galerístico, um em torno da figura de Dante, Psicopatias, na galeria Palmira Suso, e outro em torno d’O Marinheiro que perdeu as graças do mar, de Yukio Mishima, com Manifesto das Lâminas, no CCB). O aspecto mais surpreendente, ou bem pelo contrário mais expectável, é o facto de Sai do meu filme (também) ser auto-biográfico, ou de auto-ficção. O que se lê são confissões já sem máscara (mas não é uma “máscara” que se deve dizer frente aos heterónimos, não é bem isso...), do próprio Tiago Manuel, que visita a um só tempo a infância, o sonho e o desejo.
O livro está dividido em duas partes, se bem que a primeira possa ainda ser vista como uma falsa introdução, ou uma preparação textual para a narrativa principal. De facto, Sai do meu filme começa com uma série de cinco páginas intituladas “takes”, nas quais se apresentam pequenos contos textuais do que parecem ser experiências ou memórias do encontro com o cinema na infância do autor. No entanto, dessas cinco narrativas, relativamente encaixadas pela temática – os rituais dos Domingos, com “A missa da manhã, o almoço melhorado e a tarde de cinema no café” – centram-se sobretudo nos estratagemas do menino Tiago para escapar à missa e sua moral de batina, às traquinices que arreliam e baralham a mãe, e se centram na grande recompensa cinéfila, visto como provável único escape de um determinado peso à terra. Aliás, há como que uma sensação que a figura maternal é vista como uma força de conservadorismo moral e intelectual contra a qual o autor tem de lutar, com os instrumentos que lhe estão disponíveis. Há como que uma novela familiar, subtilmente tecida, dada a ver com pequenos pontos: um pai quase ausente mas que lhe é cúmplice, uma mãe austera, cheia de regras, que apenas parece estar ali para ser evitada ou confundida, as tardes de berlinde, cromos e cinema como o seu particular “aleluia” e das quais sente “saudades”. Essa camada confessional serve como intróito, dizíamos, à narrativa central de Sai do meu filme, a banda desenhada propriamente dita, mas que veremos ter elos de ligação com estes “takes”.
O que vemos é o seguinte: uma pequena personagem – o “pequeno duende” – que parece habitar por entre o estirador do artista “escorreg[a] pelo desenho abaixo” e vai dar a um pequeno limbo, onde encontra um “palhaço”. Juntos, tentarão encontrar o caminho de regresso do duende, mas isso fá-los-á atravessar um onírico panorama, à la Slumberland ou Yellow Submarine. Esta acção é relativamente linear em termos narrativos, não apresentando tramas complexas, reviravoltas ou desarranjos temporais. É até simples demais. A razão disso é simples também. Não se podem ler estas personagens nem esta sua travessia como algo de superficial.
A identificação das duas personagens poderá ser tentada da forma seguinte. Aquela que assume o nome e contornos do “duende” pode ser vista a partir de uma perspectiva duplamente popular, inscrita no território específico da banda desenhada, e erudita, com raízes no berço da nossa cultura, no cadinho grego clássico. A primeira raiz enleia-se em figuras cujas origens se encontram ora na história da animação (Cohl, Palmer, Blackton) e numa obra-maior da banda desenhada portuguesa, O Boneco Rebelde, de Sérgio Luiz. Em todas essas referências, encontramos um autor na tarefa de criação de uma qualquer personagem, a qual, súbita e magicamente, se rebela contra o próprio autor no interior da ficção que habita e ganha uma autonomia e vida própria (parte dessa meta-ficção, evidentemente). Mas essa linha apenas se revê em Sai do meu filme à superfície da narrativa. É num outro nível, mais profundo, que encontramos a perspectiva erudita, que tem a ver com o carácter demonológico das criaturas de sombra (de que as tintas deste livro são uma continuação, por via das artes visuais fundadas no mito de Plínio), os daimons, uma subtil emanação de uma criatura mediadora e benevolente. Este duende não é mais, portanto, do que uma projecção, sombra, elucubração do ego, do próprio autor, talvez do seu eu-infantil que fora introduzido no início, talvez de um eu-onírico (reduzido a um “nada”, a um Nemo, o qual tem acesso exclusivo ao mundo do lado de lá).
É a mistura de sonho, mundo baixo das sombras, dos mortos, da ficção, à qual ele desce, que nos permite tentar a próxima leitura: o palhaço é também um daimon, mas desta feita figura protectora, equivalente ao Virgílio de Dante. Uma figura tutelar, que aqui apenas mais tarde é revelada com um rosto e nome próprios, mesmo que de fugida, como soe nos sonhos, cujo sentido apenas se adivinha no imediato momento antes da sua dissolução (a vigília, o despertar). É o palhaço quem guia o duende pelo caminho de regresso, que lhe explica a paisagem e os seus habitantes. E que o abandona, mal o duende chega a um ponto em que já regressou. Esta associação a Dante não é de todo desprovida de sentido, se notarmos, mesmo que superficialmente, que a descida das personagens ao mundo onírico se faz passando por vários “círculos” de personagens que “pecaram” em relação aos sonhos: os medrosos, os pesadélicos, os verborreicos (creio estar preso com um pé neste círculo), etc. Tiago Manuel estabeleceu um diálogo importante e musculado com a obra de Dante com a sua exposição Psicopatias, a qual será alvo de uma edição em breve, como dissémos, mas ainda que em Sai do meu filme esse trabalho seja “simplificado” pela via do aparente instrumentário infantil, os ecos são por demais evidentes.
Mais importantemente, deveremos pensar na associação subtil deste palhaço àquela que se revela no exacto momento da sua desaparição: Charlot, que de resto julgamos poder ser aqui figura metonímica de Keaton e outros gigantes dos primórdios do cinema-espectáculo, primeira maravilha de toda uma geração de amantes do cinema, na qual se conta Tiago Manuel. Pensemos naqueles versos de Inferno, em que Dante confessa a Virgílio, reconhecendo-o e apercebendo-se ser esse o seu cicerone nos círculos baixos: “Pois tu és o meu mestre, o meu autor;/és tu aquele só de quem tirei/o belo estilo que me deu valor” (Inferno I, 85-87). Isto é, há uma apropriação de uma figura morta no tempo deste autor, transformada num mentor, tutor, acompanhante no reino das sombras (equivalente quer do mundo dos sonhos como do da morte, uma vez que em ambas encontramos as “almas”, sinónimo de “sombra” se pensarmos nos contos e novelas de Chamisso, Andersen, Hofmannsthal, e até na figura de Peter Pan). Mais, são os contornos dessa personagem que informam o trabalho, desejado, do autor que lemos agora. Neste caso, e tal como é revelada no fim do livro, essa figura é a de Charles Chaplin, ou melhor, a sua personagem icónica, Charlot: um palhaço, sem dúvida, mas uma muito especial figura de um cómico dramático, sofrido e profundamente subtil e atento à crítica social, económica, política e até filosófica do seu tempo. Confundir os filmes de Chaplin com “fitas para rir” (ou somente isso) é errar o alvo por centenas de metros.
O duende é diferente de Dante, no sentido em que não reconhece o seu próprio Virgílio. Apenas vê um palhaço, simples, de circo. Talvez queira essa visão demonstrar ainda a perspectiva infantil, natural, sobre a qual não há nada que ter vergonha e que pauta os laivos de nostalgia, nada lamechas porém, de Sai do meu filme. Nemo e Flip, sem a maldade do último. Só mais tarde é que o Duende reconhece a figura, os seus verdadeiros contornos e, como na experiência fílmica e do sonho, no preciso momento da sua dissolução (sair da sala de cinema, acordar). E tal como Virgílio subitamente desaparece (Purgatório XXX, 49 e seguintes) com a chegada de Beatriz, também o palhaço-Charlot desaparece antes do surgimento da terceira figura feminina deste livro, Fátima. E atentemos às moventes palavras de Dante, no preciso momento da desaparição de Virgílio: “...voltei-me à sinistra [esquerda] com o fito/com que à mãe o menino corre e clama/quando tem medo ou quando está aflito,/...” (idem, 43-45). Esta ligação à figura materna, protectora, contrasta com as palavras dos “takes”, sem dúvida, mas ao mesmo tempo permite, e ainda com a imagem da mãe-gaiola da cena onírica, uma reconciliação final.
Esta ligação dupla a linguagens que se inscrevem numa tradição popular e noutra erudita ganha substanciação pelo próprio facto descritivo deste objecto: “livro ilustrado”. Este tanto poderá ser entendido como o “livro ilustrado” tout court – que nasce com o próprio advento do codex, ganha uma inflexão pelo território do infanto-juvenil, do pedagógico e do enciclopédico, ganha um terreno próprio no século XIX e desemboca em inúmeras experiências no século XX, naquilo que em inglês muito claramente se designa por picture book – como com o “livro de artista” – cuja raiz mais forte está nas vanguardas russas, e aponta para objectos-livro totalmente concebidos e estruturados pelo seu autor único, como forma de expressão da “política de autor”. Não é inaparente que Tiago Manuel funde, de certo modo, uma linguagem muito específica, quase até uma nova linguagem, mas é uma linguagem que não nega a sua história anterior possível, não repudia a sua possível inscrição retroactiva nesses dois terrenos, aparentemente antagónicos.
É possível que Tiago Manuel também se sinta na “metade da sua vida”, ao ponto de lançar uma sua sombra numa catábase muito pessoal. É bem possível ainda que a colação de informações das suas circunstâncias de produção iluminassem alguns dos princípios de interpretação: este livro é o corolário de uma relação muito íntima com a associação Ao Norte, de Viana do Castelo, o seu 15º aniversário, e os 10 anos dos Encontros de Viana, dedicados ao cinema; o facto de que Tiago Manuel, através dos seus heterónimos, foi construindo um coerente e atento público, talvez lhe possibilite o retorno à sua própria pessoa; o lançamento centrífugo dessas outras “pessoas” talvez lhe incuta o desejo de operar uma expressão centrípeta, de retorno, de nostalgia, isto é, etimologicamente, “as feridas do regresso”. Não abordaremos directamente estas questões, mas são elas que nos permitem o próximo passo, e que tem a ver com essa dor.
Há um aspecto visível em Sai do meu filme, se colocado lado a lado com a restante “obra”, o corpus dos seus alter egos. Este é o livro mais suave, pelo menos aparentemente. Estão lá os mesmos dedilhados e texturas; estão lá os mesmos objectos metafóricos que fundem seres animados e coisas; estão lá as cores baças mas carnais; estão lá as tiradas de uma apurada ironia. Mas há uma maior concessão à narrativa (ainda que haja desvios), e ao acompanhamento das personagens (se bem que haja variações mínimas internas significativas), e a uma entrega à cor que parece prometer menos escolhos (ilusão). Recorda Topor, de quem há ecos, na sua vertente mais doce. E se falámos de catábase, é porque se sente aqui uma descida. Uma descida, para já, à infância do autor. Este é um livro abertamente autobiográfico, pelo menos naquela primeira parte dos sucessivos takes textuais. Mas descida também aos seus mecanismos de criação, desvelando através deste livro o modo de funcionamento e construção da sua obra heteronímica: encontramos vários dos objectos-metáfora que vivem nas obras de Tim Morris, a parcimoniosa ainda que irónica prosa de Marriette Tosel, as cores baças da infância revisitada e deixada a uma distância segura de Terry Morgan, os pequenos descentramentos das personagens de Tom McCay. Para chegar a todo o lado, de outro modo.
Tais como tantos outros livros que se poderiam coligir a esta leitura – e fomos dando conta das tradições nos quais os podemos encontrar –, também Sai do meu filme faz advir aquele fenómeno típico do livro ilustrado de apresentar imagens estáticas, separadas, mas que dada a sua estruturação em série, espoleta o “horizonte diegético” de que fala Barthes (citado no artigo anterior, sobre os posters). O famoso semiólogo discute o cinema em Imagem, Música, Texto, mas são vários os elementos que nos permitem auferi-los e reempregá-los nesta outra arte. É no interior de cada imagem que se nutre a potencialidade da acção e do significado, e no choque entre elas, como átomos, que se gera a energia total. Não quero desta maneira vir a concordar com a ideia de uma “terceira imagem”, ou “imagem intervalar”, no sentido em que entre cada duas imagens, no seu intervalo, existiria uma terceira imagem invisível criada pelo leitor-espectador, pois essa descrição levaria à criação sempre de novos intervalos e sucessivas novas terceiras imagens, ad infinitum, até se dissolver qualquer especificidade entre esta linguagem e a percepção da realidade. Mesmo enquanto exercício mental, abstracto, necessariamente único a cada leitura individual (mesmo no interior de um só indivíduo, o qual sempre pode fazer várias leituras), essa promessa esbateria a natureza de relação imagem estática-leitura dinâmica que é o seu fundamento. O que sucede, a meu ver, é uma construção de desequilíbrio até certo ponto, lançando o leitor-espectador num intervalo onde nada se decide, onde se encontra uma espécie de gravidade zero, de abertura ao puro virtual, e depois caímos numa decisão. É essa dinâmica, esse cinetismo, que nos impele à sua contínua leitura, a não nos perdermos na sua leitura-interpretação (isto é um pouco pleonástico, já que a leitura é interpretação). Todavia, é precisamente identificando os momentos de crise dessa mesma passagem que notaremos as forças de um autor. Isto é, são os momentos ou pontos onde continuam a ecoar o desequilíbrio ou onde nenhuma decisão pode alguma vez ser tomada, que nos servirão de plataforma de pesquisa dos sentidos mais subtis e que tornamos densos, mais ocultos que arrancamos à luz do dia, mais obtusos que tornamos mais transparentes. Ou pelo menos tentamos.
Nessa óptica, foquemos a nossa atenção no momento mesmo da metamorfose – nova transformação ou desvendamento? – do palhaço em Charlot. Tão só ele se “despede” do duende, que este também se funde na colcha de estrelas, e com o virar da página, desaparece (exceptuando o seu último papel no colófon). São várias as páginas nas quais as composições parecem prometer uma estruturação clássica de banda desenhada (dita retórica por B. Peeters) para fazer pequenos desvios e desequilíbrios. São vários os momentos em que os sentidos são construídos pelas palavras nas legendas, deixando as reacções ou fechos de acção na boca e gestos das personagens. A viagem dos dois protagonistas por esse mundo não obedece totalmente a regras de lógica: quando é que entraram no comboio-serpente?, visitam todos os espaços que nós próprios vemos ou não?, qual a relação entre eles e o “mundo do artista”, onde os brinquedos se encontram desarrumados?
A derradeira cena, do gato culpado com as vestes do duende, são um mecanismo mais ou menos expectável das narrativas oníricas, que sempre têm de revelar no seu fim o retorno absoluto ao mundo da vigília, ainda que deixem pistas para a sua realidade. Recordemo-nos do gato de Alice no fim de Do outro lado do espelho. No entanto, as vestes, como disse, são prova do real da experiência do duende. O que quero dizer com isso é que mesmo tendo em conta a falta de palpabilidade da experiência do sonho, mesmo tendo em conta que o sonho de celulóide se dissipa de imediato ao ligar as luzes, a memória dessas mesmas experiências é tão real e significativa quanto a das experiências ditas reais. No plano do subjectivo, todas elas concorrem para a sua construção. Sai do meu filme faz concorrer memórias de infância, a experiência do cinema, o sonho, a projecção autoral, o desejo, num mesmíssimo plano (o do livro, o das imagens), acusando essa mesma ideia e posicionamento. Molda aquele movimento que Ruy Belo diz num verso “inconcebíveis e por isso concebíveis”. Onde tudo se suspende e tudo se pode projectar, tudo se forma.
Uma última palavra ainda a um “material complementar”. Por ocasião do aniversário da Ao Norte, dos X Encontros de Viana, e do duplo lançamento deste mesmo livro e de O Sangue por um Fio, de Sérgio Godinho, e ainda a exoposição dos originais de Sai do meu filme, uma brochura vogava pela cidade, que aqui reproduzimos. Não se tratará este flyer de um desses efémeros e perecíveis materiais que aumentam a “portabilidade” de que falava Victor Burgin, que citámos a propósito do poster de Manuel Tiago para Ruínas? Aqui temos uma pequena banda desenhada, um encontro entre trailer, teaser e intróito externo a todos os encontros possíveis, sob o signo do cinema, e que nos prepara para a voz autónoma e ortónima de Tiago Manuel (auto-representado nesta mini-história, primeiro no seu estúdio, logo depois numa hipotética sala de cinema) de Sai do meu filme.
Perguntámos ao início o que haveria num nome. Para terminar, perguntaremos: o que há num título? Afinal, será Sai do meu filme um título exacto, ou irónico? Não será antes um disfarçado convite a entrar e participar nesse filme? Ou será antes, como na colecção que o autor dirige, uma ideia de convite a procurarmos o nosso próprio filme?
Nota final: agradecimentos a Tiago Manuel, pelo envio do livro. E ao Silvestre, pela participação no vídeo, chamado pelo Calvin.

Wilson. Daniel Clowes (Fantagrahics)



Não sendo este o primeiro “livro” de Daniel Clowes, com uma só narrativa coerente e centrada numa ou poucas personagens, é a primeira vez que se apresenta material que não tinha sido alvo antes de publicações no seu comic book Eightball (que terá chegado ao fim) ou outros locais. No entanto, ao contrário de Ghost World ou Like a Velvet Glove Cast in Iron, este livro estará mais aparentado com Ice Haven, quer pelo carácter fragmentário da sua linha narrativa quer pelo emprego de toda uma panóplia de registos estilísticos e figurativos. No entanto, a trama diegética é muito mais concentrada. Poderíamos dizer mais: egoísta, solipsista, ensimesmada. É por essa ordem de razão que Wilson pode ser caracterizado. Uma personagem solitária, patética, odiosa, rancorosa e irritante. Um humano, demasiado humano. Ou talvez pior que humano. Poderíamos dizer que Wilson é um ser social que não aprendeu a travar a língua, ou a desenvolver os mecanismos psico-sociais que fazem de nós bons cidadãos, chamemos-lhes “boas maneiras”, “hipocrisia” ou “ponderação”. Se Wilson tem algo a dizer, di-lo-á. Fica-se na dúvida se isso é uma liberdade total ou se é pura e simplesmente uma estupidez profunda. O caricato é que este Wilson poderia ser qualquer um de nós, se não tomarmos cuidado. Quantas vezes (por dia) nos apetecerá mandar alguém à merda, chamar outro de filho da puta, esbofetear outra pessoa pela sua total inanidade, injuriar um artista pelas suas platitudes? Mas não o fazemos, graças ao espírito de auto-crítica e, enfim, ao nosso desejo de auto-preservação e vida em sociedade. É bom existir controlo. Wilson não o conhece.
Wilson é uma espécie de variação e actualização do Mr. Natural, de Robert Crumb, mas onde a personagem do Papa do underground era sarcástico às expensas do patético Flakey Foont, Wilson é antes cruel, e dirigindo a sua bílis a toda a gente. Claro está, a razão, sentimo-los bastas vezes, é a total falta de amor-próprio de Wilson, ao contrário do guru de Crumb, que irradia uma gloriosa auto-confiança, determinação e poder de sugestão sobre os outros. Wilson defende-se sistematicamente, transformando as suas fraquezas num ataque, mas sendo ele mesmo quem se derruba nessa miséria.
Clowes construiu uma personagem totalmente desprovida de aspectos que a tornem verdadeiramente humana ou, sendo-a, empática. Não existem, pelo menos a meu ver, aspectos que o tornem comovente ou digno da nossa simpatia: mesmo quando revela alguma tristeza ou arrependimento, sentimos todo o seu egoísmo horrendo à tona, ou a razão pela qual ele merece o tratamento que recebe. Não chegamos jamais a ter acesso aos seus interesses – qual é a sua profissão? Passatempos? Em que ocupa o tempo em que não está a martirizar o seu semelhante? – e tudo nos leva a crer que não tem amigos em qualquer sentido dessa palavra. Apenas as circunstâncias o parecem ter empurrado para a existência de algumas ligações: o pai, que está a morrer, a ex-mulher, que o abandonou, uma filha, de quem não sabia a existência, os parentes da ex-mulher, que o detestam, e com razão. E uma cadela, que foi certamente mais feliz sem a sua presença. Até agora, Daniel Clowes sempre explorou personagens relativamente “perdedoras” num sentido de expectativas sociais e financeiras, e sobretudo emocionais, mas sempre para revelar que no fundo são elas os pilares morais e humanos de uma sociedade mais preocupada nos ditos “valores” (desculpas de hábitos culturais por questionar, comportamentos superficiais e materiais, e totalmente egotistas e desrespeitosos dos verdadeiros “outros”). Criava-se uma rede de simpatia junto do leitor. Não é o caso de Wilson, cujo abandono, depois de fechar o livro, não criará ligações afectivas positivas.
Porém, é aí mesmo que o autor consegue criar uma obra forte. Quão possível é explorarmos a mais chã da biliosidade humana? Até que ponto estamos dispostos a acompanhar a capacidade dos seres humanos em serem egoístas e cruéis com quem os rodeia? O que se aprenderá na exploração da mesquinhez? De certa forma, a moral, ou melhor, a falta total de moralidade e a visão social de Wilson recorda-nos posicionamentos éticos que se descobrem em experiências-limite de outras áreas. Um exemplo: o narrador de Cadernos do Subterrâneo (1864), de Dostoiévski. Outro: o filme Családi tüzfészek (“Ninho familiar”, 1979) de Béla Tarr.
Atrás referimo-nos a registos diversos em termos de estilo. Como podemos comprovar aqui pela colecção dos rostos de Wilson, cada uma das páginas é apresentada sob formas diferentes, de estilos mais realistas e sombreados a esquemáticas e estilizadas apresentações, passando por estratégias de reconhecidos géneros mais cómicos da banda desenhada (“big foot”, “cute”, “screwball”, à la Nick Bertozzi). Que quererá Clowes transmitir com isto? Uma possível visão prismática, multifacetada, fluida, de um mesmo conjunto de personagens, ou de uma personagem num mundo partilhável mas cuja percepção é necessariamente pautada por princípios subjectivos diferentes? A flutuação de uma vontade de acordo com as circunstâncias (afinal, reinventamo-nos todos os dias, usando máscaras diversas)? Uma forma de enfrentar através de uma hiper-actividade, ou hiper-personalidade – todos os estilos, todas as vozes, todos géneros –, o mundo contemporâneo, habitado pela somrba da “felicidade paradoxal” de que fala Lipovestky? (cada vez mais de tudo em termos de consumo, cada vez menos em termos de redes reais entre os indivíduos). Clowes não o faz no interior de uma hipotética “evolução”, como se nota quando lemos um livro de um autor, uma obra que se tenha desenvolvido ao longo de anos. E, mais, há uma espécie de divórcio entre o tom soturno e patético de todas as histórias, e o seu ritmo, natureza, os desenhos, que atravessam um espectro imenso, inclusive cromático.
No interior do território da banda desenhada, também poderemos pensar outra coisa ainda. É como se Clowes revisitasse – fantasmaticamente, potencialmente – toda a história dos géneros cómicos da banda desenhada, sobretudo das tiras de jornal, das mais famosas às mais obscuras, das mais belas às mais horrendas (misturando, portanto, Peanuts e Beetle Bailey, Blondie e Gardfield), arrancasse toda a comédia e estereótipos desses trabalhos, e revelasse a mais profunda solidão e tristeza humanas, a mais baixa camada do patético dessas personagens, e as servisse, apuradas, sublimadas, com Wilson. Wilson é o epítome dessas personagens-tipo, despojadas da comédia de situação, depois de acordar desse sonho genérico. Uma criatura patética. Como é discutido no podcast da Amazon em torno deste livro, é uma variação de Gardfield minus gardfield, ainda que com instrumentos mais fortes e desenvolvidos, claro está.
Cada página actua como uma mini-história, com a sua própria linha estilística, um título e uma punchline, e não é difícil imaginar que Wilson pudesse ter sido construído página a página, ao ritmo de uma sua publicação prévia num jornal (que aguentasse esta personagem negativa), uma forma clássica. No entanto, se as primeiras dezenas de páginas parecem apenas vogar em torno do embate entre Wilson e vários figurantes ao acaso, meras vítimas ocasionais, aos poucos vai-se “adensando a trama”, como se costuma dizer, primeiro alargando o nível de referências do seu passado familiar, e rapidamente colocando-o na senda de uma recuperação da felicidade – que Wilson entende tão-somente como um mal-informado comodismo, um conforto com meia-dúzia de pessoas, eleitas para que lhe sirvam de espelho distorcido para o resto das duas vidas. Primeiro quer redescobrir a ex-mulher, depois a filha, de que não tinha sequer conhecimento. Nem tudo corre bem, mas há como que uma recompensa e um castigo (o egoísmo e variação de Wilson expressa-se mesmo nas guardas do livro).
Se Wilson merece a sua sorte o não, na mente dele, como ocorre na derradeira história, lá congeminará a ideia de que é ele quem tem razão e é ele quem vence. Deixemo-lo.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, pelo empréstimo do livro.

14 de maio de 2010

Dois filmes, dois cartazes. Tiago Manuel e Blutch.

Nota inicial: Gostaria de tentar aqui uma leitura molecular de dois cartazes de filmes recentemente estreados em Portugal, não apenas por serem criados por dois autores que lemos continuadamente (Tiago Manuel e Blutch), mas porque penso serem uma relativa excepção de qualidade do que se faz, ou mesmo pode fazer, em matéria de cartazes de cinema com a ilustração. Ambos muito diferentes, mostrando objectos diferentes, estratégias de representação diferentes, ambos brilhantes. A esmagadora da produção destes materiais historicamente perecíveis e efémeros (salvo raras excepções; e de raras tradições de continuidade – salvo a Polónia?) recorre hoje à fotografia e ao design, nem sempre o mais feliz ou interessante, e as mais das vezes presidido por preocupações meramente económicas, procurando uma simplicidade de leitura que seduza o maior número de pessoas e as leve à compra do bilhete (ou do DVD). Neste último aspecto, fomos influenciados pela leitura de um artigo no The San Francisco Panorama que compara os cartazes de cinema de vários filmes e as capas dos respectivos DVDs, cuja abertura e interesse é maior nos primeiros. Esta leitura dos textos primários é ainda informada pela convergência de trabalhos teóricos de autores tais como Roland Barthes, Gilles Deleuze, Victor Burgin e Thomas Stubblefield. É Burgin, sobretudo, que ao explicar o modo como esses materiais efémeros e satélites do cinema (o poster, as fotografias do filme, o trailer, etc.) moldam uma sua “portabilidade” e deslocação, torna clara a forma como o filme “deita o seu conteúdo no fluxo da vida quotidiana” (The Remembered Film). Por outro lado, com Barthes aprendemos que a experiência de um filme perfaz-se não apenas com o próprio filme (nos nossos dias, graças a toda uma série de tecnologias, suportes e plataformas de divulgação, não já apenas consumido nas salas de cinema, mas noutros espaços vivenciais) mas também com a dispersão nesses outros objectos, levando a um “desdobramento permutacional” a que ele chama de “terceiro sentido”, um acesso especial ao fílmico o qual “paradoxalmente, não pode ser alcançável no filme em situação, no movimento do seu estado natural, mas apenas nesse grande artefacto, o still [“foto/grama de filme”]” (“En sortant du cinema”, in Le bruissement de la langue). Essa imagem estática ganha tal sentido por se associar a um “horizonte diegético”, isto é: estas imagens não se prendem somente a um significado que é mostrado, mas antes contado ou narrado: o acto de tecer uma narrativa, o desenrolar dinâmico de uma história e ideia. O cartaz deve funcionar, portanto, não enquanto uma mera “fatia” do que o filme encerra, mas uma promessa do que desenvolverá, do que desfiará.
Tiago Manuel. Cartaz para Ruínas, de Manuel Mozos.
O filme de Mozos é uma espécie de respigador de objectos abandonados, ou melhor, de fantasmas. Por um lado, as imagens de locais que, menos do que verdadeiras ruínas, são espaços que pareciam prometer uma qualquer glória e se esvaziaram da presença humana, ganhando uma dimensão fantasmagórica e unheimliche perturbadora. Serão “ruínas” no seu sentido monumental, como quereria Aloïs Riegl, que em Der moderne Denkmalkultus. Sein Wesen und seine Entstehung/O culto moderno dos monumentos, de 1903, nos fala da “amplificação progressiva do âmbito pelo qual o valor rememorativo se valida”, e estabelecendo três categorias de monumentos, nos ajuda a identificar aqueles filmados por Mozos como fazendo parte dos monumentos históricos, isto é, que apresentam uma “ideia do tempo transcorrido desde o seu aparecimento, e que se revela palpavelmente nas impressões que deixou”. Um sanatório nas Penhas da Saúde, no meio de um mato com laivos do fantástico, uma residencial à beira de uma estrada em Pegões que não lhe vota um minuto de atenção, a Hidroeléctrica do Douro que parece prenunciar uma narrativa de ficção científica de contornos de horror. Por outro, os textos coligidos a partir de uma camada de produções textuais usualmente negligenciáveis: cartas circunstanciais, regras institucionais, ementas, o romance de cordel associado aos makavenkos. Uma, duas excepções: o poema de Ruy Belo, a arrepiante canção dos mineiros de Aljustrel (“Trago a camisa rota/E sangue de um camarada, vê lá!”). No entanto, é precisamente esse carácter originalmente negligenciável que as torna “ruínas” e é ele que, recuperado no filme de Mozos, se recobre de uma vida assustadoramente presente. Uma espécie de espelho que nos devolve aquilo que irá ser já ao dobrar do dia. Ou ainda, como quer Paulo Varela Gomes (no seu artigo no ípsilon, 2 de Abril de 2010), Ruínas (título cuja exactidão filosófica o historiador contesta) “não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser”, na medida em que é como se estes espaços e estes textos mostrassem “a sua endurecedora recusa de partir em paz para dentro da noite”. Melhor definição de fantasma não haverá. O que o filme de Mozos pretende, ou assim o vejo, não é eliminar ou exorcizar os fantasmas (fito típico dos filmes populares que querem sempre assegurar a ordem “natural”, “normalizada” das coisas, de Poltergeist a Ghostbusters a Os Outros), mas antes reelectrificá-los para que possam conviver, com a vida que lhes resta, connosco (sem as evidentes associações narrativas, populares, e de estratégias simplistas, estará mais perto de Beetlejuice).
O instrumento condutor dessa reanimação é o contacto polarizado entre textos e imagens. É o próprio realizador que, numa entrevista (ípsilon, idem), discutindo a aliança que provoca entre as imagens colhidas nos espaços e os textos eleitos, alianças as quais, fossem diferentes, provocariam uma narrativa diferente, afirma: “Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado”. É curioso o vocabulário empregue, um tanto ou quanto vulgar, bruto: atirar. Como se fosse uma agressão. Mas é precisamente isso o que acontece: cada imagem faz com que avancemos, cada passo narrativo (imagem+texto) impele-nos (atira-nos) numa direcção (para um lado). Quase parece ser uma descrição de uma banda desenhada ou de um livro ilustrado.
Um cartaz de cinema é uma aliança particular: entre uma imagem singular, estática, e o “texto” que (todo) o filme é. Tiago Manuel cria um cartaz que abdica de quaisquer chamadas directas aos materiais empregues no filme propriamente dito (um espaço, uma referência), e constrói uma mancha branca generosa no centro da qual assenta uma gaiola de ferro em forma de coração encerrando uma rosa-príncipe acabada de cortar.
A apropriação de um objecto para que, nas suas características físicas inalteradas, passe a assumir um outro papel de representação, é algo que se entende ter raízes no readymade. A sua ligeira alteração, ou mescla com outras características, levará à emergência de uma verdadeira “metáfora visual” tal como é entendida por autores como, por exemplo, Noël Carroll: uma imagem que sobreponha num mesmo espaço compositivo duas imagens distintas, permitindo a sua dupla leitura, ou melhor, a leitura de uma coisa sem abdicar a leitura da outra. Um exemplo da História da Arte encontra-se na obra escultórica de Picasso, ora n’A Cabeça de Touro composta por um selim e guiador de bicicleta, ora na Babuíno e Cria, em que as cabeças dos símios são substituídas por automóveis. Quer num quer noutro caso vemos ambos os “objectos”, isto é, vemos selim e guiador de bicicleta + cabeça de touro, vemos babuínos + automóveis. Haveria outros exemplos, e outros esclarecimentos, aqui adiados.
Tiago Manuel cultiva esta estratégia em muitos dos seus livros heteronímicos, sobretudo em Tim Morris. O que aqui observamos é, a um só tempo, um coração e uma gaiola. Ambos “encerram”, “prendem”. Mas ao mesmo tempo, é essa pequena prisão que nos permite aceder a qualquer hora da nossa vontade, o prazer que leva lá dentro. Um pássaro ou um grilo em liberdade é mais belo, mas não acedemos tão facilmente ao seu canto e companhia.Também parece estarmos perante um emblema (à Alciato). Mas a carga alegórica não é particularmente pesada, cheia de objectos, cada um correspondendo a um significado mais ou menos hermético que precise de ser interpretado e agregado para chegarmos a uma “solução” final. Se falamos de rosa acabada de cortar, não é por acaso ou desejo de criar formas impressivas de discurso. A rosa está cortada, pois notamos no caule cerceado. As folhas e as pétalas não parecem estar murchas, gastas, ainda. O cálice está mesmo fechado, prístino. Uma rosa, uma flor cortada é já um ser morto, desligado da seiva, da terra a que pertence, mas ainda se mantém com um brilho ou uma vida aparente. É transitória, e sabemo-lo, mas por isso continua a servir de fonte de prazer, por mais mínimo que seja. Tal como Varela Gomes quer, também esta rosa “acabou de ser” e é-nos ofertada nesta gaiola.
Blutch. Cartaz para Les Herbes Folles, de Alain Resnais.
Aqui estamos num território totalmente diverso. Em primeiro lugar por o filme de Resnais ser uma ficção, uma história estruturalmente clássica: um homem, Georges Palet, encontra por acaso um objecto, uma carteira, pertencente a uma mulher, Marguerite Muir, e, querendo devolvê-lo, revelando pequenos traços de obsessão quase doentia, dá início a um movimento ondulado, de dança, em que a vida de ambos se começa a aproximar, a pautar pelo encontro com o outro, até finalmente se cruzarem definitivamente e caminharem, ou até se despenharem, num encontro derradeiro, dado fora de cena, calando a história principal.
Já muito foi escrito sobre o filme de Resnais, utilizando-se os instrumentos próprios da crítica cinematográfica, e é também sabida a relação de Resnais com o mundo da banda desenhada, do qual ele vai bebendo muitas ideias e soluções em relação à éclairage dos seus filmes (ele próprio escreveu sobre isso, revelando essas fontes). No caso deste filme, parece terem sido as cores não-naturalistas do comic book do The Spirit, de Will Eisner (dos anos 1940-50), que pautaram a fotografia de Ervas Daninhas.
As condições de produção do poster são relativamente simples. Resnais convidou Blutch para desenvolver o poster, encontrando-se com o artista, vasculhando por entre o seu estúdio e cadernos de esboços, apontando pistas de possível realização. Blutch, por sua vez, não pretendia revelar nada: evitaria a redução a uma acção representativa, queria manter parte do “mistério” e entregar-se a uma “paráfrase”.
O que vemos no cartaz? Duas personagens. Em pé, estáticas, no meio de uma planície de mato baixo. Do lado esquerdo, tudo nos leva a crer tratar-se de Marguerite, identificável pela sua fulva cabeleira vermelha e os botões enormes do seu sobretudo. Não lhe vemos o rosto, pois está de costas para nós. Do lado direito, tratar-se-á de Georges. Apenas vemos o seu casaco comprido, a camisola, a carteira dela na mão, e o rosto está também oculto. Ou não. Será aquele feixe de ervas daninhas não uma forma de ocultar o rosto de Georges, mas o seu verdadeiro rosto desvelado?
Durante todo o filme, é-nos constantemente indicado, mas nunca totalmente revelado, por pistas mais ou menos inábeis, um facto qualquer do passado de Georges que o levou a ter contas com a justiça. Todas essas pistas nos levam a crer tratar-se de algo do foro sexual: uma violação? Um acossamento? Tratamento abusivo de alguém? É na sua estranha relação, e consequentes falhanços, com Marguerite, que Georges se vai mostrando obsessivo, doentio e até mesmo violento. Apesar de Marguerite parecer mais equilibrada, também revelará sinais de fúria, como na cómica-horrífica cena no seu consultório de dentista, em que magoa os pacientes.
Seja o que for, é algo que não apenas está sempre a regressar sob a forma de memória (não mostrada ao espectador) ou de pressão (não quer ir à polícia, vacila numa decisão, evita uma acção, é impelido a cuspir injúrias e ofensas que se ligam a experiências anteriores), como é algo que irrompe súbita e intempestivamente, onde ou quando se menos espera. Como as ervas daninhas. Claro que não é totalmente sem se esperar, pois tais como as ervas, as condições estão lá: o terreno fértil, as sementes, as circunstâncias em torno que as fazem medrar. As ervas daninhas, contudo, são-no mais não quando irrompem no mato, por entre outras plantas, no plano do natural: elas são mais si mesmas quando esboroam o cimento e irrompem numa estrada, num passeio, num baldio onde existira um edifício. As ervas daninhas são mais daninhas quer quando impedem que o homem controle em absoluto o espaço onde elas existem quer quando recuperam aqueles espaços que o homem abandonara. Como quem diz: as tuas acções, ó homem, não são competidoras de força o suficiente contra nós.
A gestão do plano de composição e sobretudo as cores também contribuem para a eficácia e beleza deste cartaz. Se o rosto verdadeiro, intempestivo, irruptivo, que está oculto no mundo real, de Georges, se revela nessa metáfora do título, a opção de representar Marguerite (nome de flor brava) de costas, como se o seu rosto verdadeiro se revelasse por trás, na cabeleira farta e rubra, não é menos significativo. A relação entre as personagens é vista como uma oposição diametral, a qual, como todas, se revela sobretudo na sua complementaridade. Ele expande-se, ela contrai-se; ele estende o braço ofertante, ela puxa a bolsa para si, protectora; ambos comunicam em silêncio, ainda que dois silêncios de naturezas muito diversas. Mesmo nos momentos em que as personagens mais se aproximam no filme, e se parecem finalmente entender, sabemos sempre que existe um fio que os separará inexoravelmente. O poster revela esse abismo não só no intervalo que os separam, mas na forma como esse intervalo, de verde e silvestres ervas, se derrama em seu torno.
Nota final: agradecimentos à Associação Ao Norte, pela recepção e hospitalidade, e pelos Encontros de Viana, onde pude ver o filme de Manuel Mozos, e ainda a Tiago Manuel, pelo tour, e a José Marmeleira, pela troca de impressões. Todas as imagens são colhidas da net.

5 de maio de 2010

Footnotes in Gaza. Joe Sacco (Macmillan)

Poderíamos dizer que a posição de Sacco é uma espécie de compromisso entre as tradições herodoteana e tucidideana. Por um lado, Sacco transmite, quase directamente, os relatos que escuta das pessoas entrevistadas, mas isso não o impede de se munir de toda a espécie de documentação que lhe é disponibilizada para procurar um contra-balanço “objectivo”, esperando que o confronto entre as duas estratégias possam fazer emergir alguma ideia de verdade. É claro que esta é uma interpretação redutora, porque reduzida. Há toda uma série de aspectos que devem ser (e são-no, por vários investigadores) estudados: a relação entre o entrevistador e as fontes, e a forma como ele as revela ou negoceia; a acumulação de várias perspectivas para ir procurando uma ideia comum, mas em vez de se decidir por uma delas através da síntese e sumário – um número de mortos, um percurso exacto, detalhes técnicos – Sacco dá espaço e voz a todas, deixando ao leitor parte dessa tarefa; o próprio acto de mediação duplo permitido pela banda desenhada, em primeiro lugar o trabalho de “montagem” e “organização” das vozes e relatos, em segundo o da “reconstrução imagética”, com tudo o que acarreta de expressão e o balanço curioso entre realismo e caricatura do seu estilo; a forma como o seu discurso não pretende qualquer ambiguidade e avança um posicionamento político. Por exemplo, no prefácio ele escreve “[Abud El-Aziz En-Rantisi, do Hamas] foi assassinado por um míssil israelita” (nosso ênfase). A escolha daquele verbo em particular está em franco contraste com o tipo de vocabulário empregue pelos meios de comunicação social, os quais optariam talvez por “vitimados por” (como se fosse um acidente), “danos colaterais” (as inevitáveis circunstâncias dos conflitos armados), etc.
É curioso como este livro, que acumula vários trabalhos previamente publicados, sendo o maior livro de Sacco, se centra em dois acontecimentos relativamente curtos e circunscritos: os massacres de civis palestinianos às mãos do exército israelita em Khan Younis a 3 de Novembro de 1956 e em Rafah a 12 do mesmo mês. Este é o único propósito da nova visita de Sacco à Palestina, à Faixa de Gaza. O(s) egoísmo(s) é às vezes atroz, mas não se evita mostrá-lo, como se o curso dessa pesquisa fosse o único propósito que permite constituir o livro. O de Sacco e os seus ajudantes em perseguir apenas as histórias relativas a essas datas: sempre que alguém se mostra interessado mas tem pouco a dizer sobre esses acontecimentos, ou tem uma memória de outra data (e pouco importa que sejam histórias tão temíveis e violentas como todas as outras, há como que uma confusão em criar hierarquias de horror), o jornalista apressa-se a agradecer e passar para outra. No campo da smemórias reconstruídas, o das pessoas preocupadas em salvar a pele face ao fogo israelita, mesmo que isso implique abandonar vizinhos e amigos moribundos. Todavia, é esse propósito único, esse olho de ciclope, e esse egoísmo aquilo que traça a linha central do livro, e que estrutura todos os outros elementos em seu torno.
A atenção de Sacco, apesar de concentrada, abre-se sempre em múltiplas linhas. Muitos de nós terão visto dezenas senão centenas de vezes os cortejos funerários palestinianos, em que pessoas armadas abrem o transporte de um cadáver de alguém que se torna símbolo e mártir da sua luta, e as mulheres atrás, ululuando. Essa imagem surge-nos sempre numa montagem videográfica que a separa de tudo o resto, do mundo e da notícia, e leva-nos a criar uma imagem de algo ininterrupto naquele mundo longe do nosso. Um momento há em que Sacco nos mostra a rua principal de Gaza, a Sea Street, na sua existência mais banal e quotidiana, de repente interrompida por um desses cortejos, e a sua retirada. Esta perspectiva, que pretende demonstrar como esses cortejos são algo de frequente e pouco surpreendente para a população de Gaza, em que continuam com os seus afazeres diários apesar desses funerais (de pessoas que não das suas famílias), é talvez mais indicativa de um sentido de vida, de um choque que banaliza a presença da morte, do que o modo como as notícias se escrevem nos meios mais convencionais. O título Footnotes in Gaza pretende, da parte do autor, apontar para aquilo que ele entende serem os dois eventos: nada mais do que “notas de rodapé”. Quer dizer, dois eventos que não têm um peso substancial na já de si pesadíssima guerra entre estes dois povos (ou entre povos além deles, evidentemente, pelos apoios políticos mundiais), dois eventos que não suscitam particular interesse nas memórias quer dos que lá lutam quer dos que cá reportam, dois eventos que não inflectem de modo nenhum o progresso (uso a palavra ironicamente, caso escape à alguém) do conflito. No entanto, a “nota de rodapé” é algo que está ainda visível na mesma página do texto principal, e parece-nos que estes dois eventos haviam sido relegados para as notas de fim do livro... Sacco, ao recuperá-las, ao colocá-las no centro da sua atenção ou exigindo que as testemunhas se recordem ou permitindo que essas memórias ganhem um corpo textual, quer desdobrá-las em texto propriamente dito, sem porém lhes retirar essa aura, secundarizada, pequena, diminuída, de notas de rodapé. Quer dizer, é precisamente por manter o seu papel secundário no conflito que os dois massacres se tornam significativos, tal qual todos os elementos dramáticos espalhados no relato – a demolição das casas na fronteira com Israel, os tiros e rockets que atravessam as ruas, os funerais repentinos, a falta de condições mínimas de vida e trabalho e dignidade, a dor e ódio do povo isolado de Gaza –, enquanto “ruído permanente de fundo”. É sempre assim, parece quer dizer-nos este livro. Maktub.
Mas ao mesmo tempo, o título poderia ser lido também como “Footprints in Gaza”, num sentido em que estes passos de Sacco não deixarão de ser pequeníssimos sinais que em pouco alterarão o estado das coisas, demasiado complexo para serem resolvidos mesmo por uma bateria de reportagens, relatórios e acordos, como a História já o demonstrou. Mas estão dados, ficam vincados. Talvez sejam apagadas, talvez não. Depende do modo como agirá sobre os leitores.
Maktub. A notória fatalidade tem também outro peso que nos retorna ao papel sobre a História: aquela famosa frase de Santayana que reza “Aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo” é na verdade delida todos os dias. Aqui voltamos à visão de Heródoto, e à sua lei da história, a da “eterna lei da vingança”. Pouco importam as notas de rodapé, as pegadinhas. É inevitável que se mantenha o curso do ciclo.
A expressividade do trabalho de Sacco é reconhecida. A forma como gere a fragmentação dos discursos, como espalha frases em legendas flutuantes, nem sempre obedecendo a qualquer tipo de axiologia organizada, mas bem pelo contrário tirando partido da máxima significação na sua distribuição aparentemente aleatória pelo quadro visual, a escolha equilibrada entre letras desenhadas de uma forma “normal” e outras a negrito, largas, explondindo, a repetição quase minimal de rostos, o tratamento destes de frente como se se tratasse de um retrato-robot ou fotografia de arquivo de identificação, a sua auto-representação num grau maior de caricatura e a eliminação dos olhos (a testemunha-Sacco nunca revela o seu próprio órgão visual), enfim, tudo isto e muito mais concorrem para a efectiva fórmula de reportagem de Sacco, um encontro entre a assunção total do papel subjectivo e integrado que ele tem no ambiente social, e a voz dessa gente.
Sacco opera uma espécie de confluência de temporalidades ao mostrar não apenas a testemunha no momento presente, em que se cruza com o entrevistador, mas também representando-a no momento passado, em que testemunhou o evento que se procura explanar. O que Sacco “vê” e o que Sacco “escuta”, ambas transformadas em matéria visual indiferenciada no seu papel e lugar no livro. O mesmo acontece aos espaços, as ruas, os bairros, mostrando-se a imagem do que Sacco vê agora como aquilo que ele projecta ter sido esse mesmo espaço então. Sacco não procura fazer uma “temporalidade entrelaçada” (o termo é de Hillary Chute) como Art Spiegelman em Maus, por exemplo, em que veríamos numa mesma vinheta a representação do momento presente e uma projecção advinda do passado, mas isso devia-se ao facto de que Maus fazia convergir, complicar e confundir as memórias de Vladek, que as havia vivido, e as de Art, que as reconstruía através das entrevistas ao pai e depois a fabricação do comic. Sacco, distanciando memórias pessoais e reconstrução autoral pelos espaços diferenciados das vinhetas ou pranchas, mostra como há um abismo intransponível, ou que ele não deseja ultrapassar, entre as pessoas envolvidas. Art sente, exige, a memória do seu pai como sua (algo que é recorrente na literatura do Holocausto pela parte da geração dos filhos, como víramos a propósito de Bernice Eisenstein: Marianne Hirsch, num estudo sobre Maus, fala de “pós-memória”, a apropriação da parte dos filhos dos sobreviventes do Holocausto dos relatos e memórias, integradas e reconstituídas como suas); Sacco quer dar voz aos palestinianos entrevistados, mas manter a sua distância, individualidade, respeito. Spiegelman quer dizer: “esta memória é minha também”; e Sacco: “eis a memória deles” (o pronome “eles”, é sabido, tem uma carga de distância substancial, ainda que aqui não seja de desprezo, negativa, recusante). Um dos momentos em que isso se torna absolutamente visível, não mais que duas vinhetas no centro destas quase 500 páginas, é o seu diálogo com Ashraf, um amigo do seu companheiro e tradutor em Gaza, Abed, e professor de inglês em Khan Younis, que conhece mais tarde, já em Rafah, e ao qual apelidará de “leão”. Ashraf rapidamente parecerá tomar o leme da missão de Sacco, prontamente procurando os contactos a fazer, buscando a casa certa da pessoa a entrevistas, abrindo caminho. Ashraf pede um conselho ao jornalista sobre o que deve fazer depois de ter visto a casa que construíra demolida pelos israelitas. Sacco não sabe o que responder, não tem conselho a dar, a sua vida não se entrelaça com a de Ashraf. O que vê são duas vinhetas separadas. Um pequeno abismo em que as vozes – a legenda do pensamento e o balão de fala – estão divorciadas. Eis o sinal dos limites de Sacco. Eu não posso fazer nada. E mesmo quando dá um conselho, ele é vazio de uma verdadeira consequência. Como o poderia ser de outro modo? Sacco regressará ao seu país. Que pode ele fazer? Que pode fazer um jornalista, mesmo um autor de banda desenhada, por Ashraf e pelos outros palestinianos na faixa de Gaza, que vêem as suas casas demolidas, as suas vidas cercadas, a sua dignicade cerceada?
Oferecer um tijolo. Ei-lo.
Nota: ver Faire Le Mur, um herdeiro do trabalho pioneiro de Sacco, ainda que bem diverso.

Faire le Mur. Maximilien Le Roy (Casterman)

É bem possível, ampliando o que se indica no prefácio de Simone Bitton a este livro, que o nome de Mahmoud Abu Srour deveria estar contemplado na capa deste livro. Explicamos. Apesar deste livro ser escrito e desenhado por Maximilien Le Roy, na verdade a história é contada na primeira pessoa, e acompanhamos a vida de um jovem palestiniano, habitante da Cisjordânia [informação corrigida], que se chama Mahmoud Abu Srour, trabalha na mercearia da família, e que sonha com duas coisas: as jovens estrangeiras que ali trabalham e se relacionam com ele, por vezes amorosamente, e com uma carreira de artista, ilustrador, desenhador, banda desenhista... Tudo nos leva a crer que Mahmoud não é uma invenção, mas sim um jovem homem, real, tangível, com quem Le Roy rapidamente nutriu uma forte amizade e, juntos, construíram esta história: afinal, toda a sua matéria, inclusive algumas partes gráficas – os desenhos do próprio Mahmoud – são do palestiniano. O autor francês moldou tudo isso na forma deste livro, que nos é apresentado.
Não obstante, estando longe da sua confirmação (não fizémos entrevista, investigação directa, perguntas), poderemos eventualmente também estar perante um exercício de ficção, de auto-ficção ou de algum grau de alteração da verdade, por razões de justeza, justiça e protecção. Tal qual como Joe Sacco alterará parte das entrevistas e reportagens que faz para proteger as suas fontes de eventuais represálias, é bem possível que Mahmoud também seja uma confluência de outras pessoas. Ou não. Não temos modo de o saber com precisão.
Seja qual for a verdade, Faire le Mur coloca no seu centro a vida quotidiana e as aspirações deste jovem. O campo de Aida, na Cisjordânia, não é mais do que uma prisão, um apartheid a seu modo, e todos os seus habitantes têm as suas histórias, projecções, medos, raivas, aspirações e fantasias. O último livro de Sacco, Footnotes in Gaza, de que falamos aqui, dá voz directa a muitas dessas pessoas, ainda que essas múltiplas vozes sirvam para criar a umagem unida de um evento histórico circunscrito. Faire le Mur apenas segue um jovem, que pensa as coisas, que não quer guardar rancores, nem se vitimizar, nem pedir simpatia ou pena de ninguém. Mahmoud quer apenas viver a sua vida como pessoa digna e, por mais que caia, voltar-se-á a levantar para retomar o caminho (e são vários os momentos em que percebemos as suas quedas, sem que jamais sejam transformadas em momentos melodramáticos, de queixume fatídico).
O autor francês emprega várias matérias gráficas para dar a ver essa experiência: há uma linha mais contínua de desenhos num desenho nervoso, mas realistas, de contornos “riscados”, e numa escolha relativamente reduzida de cores – vários tons da azeitona que por ali cresce?; há uma outra, de abordagens mais esboçadas, quase de apontamentos infográficos, esquematizados, de coloração incompleta, que servem para a representação de episódios históricos, ou figuras icónicas culturalmente reonhecíveis, como momentos-chave da história local ou mundial (quantas vezes estas se confudem na luta pelos direitos do homem), personagens importantes (para bem ou para mal), ou até mesmo pela amalgamação de lutas e princípios; há ainda momentos de vinhetas em branco, apenas co contornos a preto, que servem para mostrar momentos anteriores, analepses, lembranças relatadas; existem pequenos momentos, ilhas de acalmia de fim de tarde, em que os desenhos ganham cores mais densas, sombrias, e se nota perfeitamente a textura do papel sobre o qual se desenhou, texturas meio-reveladas por deslizar o lápis ao de leve, quase exclusivamente para passeios pela natureza, em silêncio, contemplativos (mas a diferença é quase mínima da linha principal); e finalmente existem os desenhos de Mahmoud, de vivas cores expressivas, sobretudo vermelhos, a lápis de cor, com uma figuração estilizada e quase alucinada, sem concentração realista, onde irrompem olhos e braços e movimento, como se quisessem dizer muito mais daquilo que aparentam dizer.
Algures no prólogo, a autora fala de “generosidade” de Maximilien Le Roy. Bom, discordemos. Essa generosidade seria mais clara se o nome de Srour estivesse na capa, como co-autor, que de facto é. Não poderemos inverter os factores? A generosidade não será do jovem palestiniano, ao emprestar a voz ao autor francês? Não é tanto Le Roy que “dá a voz” a Srour, como ocorre no caso do jornalista-Sacco em relação aos entrevistados em Gaza, mas sim a do homem-Srour ofertando matéria de expressão ao autor-Le Roy para este seu livro. A direcção é convergente entre os dois, no fim da jornada.
O livro ainda é complementado por vários “anexos”. Em primeiro lugar, e no seguimento preciso da narrativa principal, um breve conjunto de fotografias pessoais da vida de Mahmoud, que lhe confirmam a existência e são reveladoras da felicidade da vida familiar – fotos antigas da mãe (?), dos pais (?), dele em criança (?), com o irmão (?). Segue-se uma pequena reportagem fotográfica de Maxence Emery sobre os aspectos de controlo social da parte do exécrito israelita sobre a vida em Gaza, inclusive acções de protesto e a sua própria prisão (para identificação). Uma entrevista-conversa ilustrada com Alain Gresh, importante autor de livros afectos à questão israelo-palestiniana, à relação entre o Islão e a nossa modernidade, e editor do Le Monde Diplomatique. E ainda uma pequena lista de livros aconselhados por le Roy, quer contemplando ensaios e livros históricos, como romances, entrevistas e bandas desenhadas: Sacco, Squarzoni, Spiegelman e Mazen Kerbaj, cujo Beyrouth saiu na L’Association. Tudo isso são elementos que contribuem para o mesmo fito político de Faire le Mur, evidentemente, sublinhando a justeza da realidade retratada, ou forçando a ideia de verdade da sua ficção.
Ao contrário da imagem com que encerramos o texto sobre o livro de Sacco, este livro, apesar do seu título, é na verdade uma pedrinha que se retira ao muro da vergonha, esperando que ele caia algum dia.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.