31 de outubro de 2009

Caim. José Saramago (Caminho) no Cadeirão Voltaire.

Como de costume, e espero que costume se torne, as leituras a que tenho a oportunidade de me dedicar no campo estritamente literário são acolhidas pelo Cadeirão Voltaire.
Desta feita é o recente romance de José Saramago, Caim, não apenas inevitavelmente manchado com a marca de Deus, como pela da polémica lançada de parte a parte pelo simulacro de discussão que parece ter ocorrido.
Tendo em conta que se aproximam as leituras de três livros, os quais, desconfio, entrosarão no tema de Deus - The Book of Genesis, de Robert Crumb, Dieu en personne, de Marc-Antoine Mathieu, e Caminhando com Samuel, de Tommi Musturi - faz todo o sentido procurar outros caminhos paralelos ou perpendiculares noutro campo de criação.
Convido-vos à sua leitura, e respostas, aqui.

FIBDA 2009, Contemporaneidade.

No âmbito do 20º Festival Internacional da Amadora, e por convite da direcção do festival, na pessoa de Nelson Dona, e sob coordenação da comissária geral pelo núcleo principal deste ano ("XX anos, balanços e perspectivas de duas décadas de BD em Portugal"), Sara Figueiredo Costa, tive a honra e o grato prazer de ter sido convidado a organizar uma exposição. Sendo esta a minha segunda participação curatorial (que palavra...) no FIBDA (após o Divide et Impera, em 2007), e seguindo as linhas mestras do que comporia a exposição que assinalaria os 20 anos do festival, foi-me dada carta branca para pensar um sub-núcleo que servisse de complementarização aos outros núcleos, mais associados às ideias de retrospectiva e de balanço. Para mais, era-me pedido que procurasse uma forma em que fosse possível (re)pensar que tipo de relações a banda desenhada poderia fundar ou criar com outras áreas artísticas, nomeadamente a das artes galerísticas e museológicas (artes visuais), temperado pela noção de contemporaneidade.
Aviso desde logo que as razões e os fundamentos conceptuais que me levaram ao desenvolvimento da ideia central, uma espécie de espectro entre duas famílias criativas a que dei o nome de "formalistas" e "discursivos", o modo como entendo o significado, valor e peso da palavra-conceito "contemporaneidade" (que vai para além de uma mera circunstancialidade cronológica e relacional), o que ditou as escolhas e ainda a possibilidade da sua extensão, foram expostas no texto que explicita este núcleo expositivo, e que encontrarão no livro publicado pelo FIBDA intitulado Almanaque FIBDA XX Anos, já disponível.
Por outro lado, tendo em conta a importância que um objecto impresso, distribuível, final, assume quer para os autores, quer para mim, leitor, quer para os organizadores deste núcleo específico, achou-se por bem colocar à vista (ainda que, infelizmente, não à disposição e leitura) algumas das publicações que ao longo de alguns anos, têm dado a conhecer o trabalho destes autores. Não tendo havido oportunidade de apresentar uma casa mais arrumada, apresentou-se uma vitrina algo caótica, mas consequente em relação à "família" a que diz respeito. Eis algumas imagens.
Os autores que resolvi reunir são Bruno Borges [aqui ao lado], Miguel Carneiro, Joana Figueiredo, André Lemos, Carlos Pinheiro, João Maio Pinto e Nuno Sousa. É assim que se forma "A Contemporaneidade na Banda Desenhada Portuguesa", cujo sub-título deve ser levado em conta e seriamente: "Uma opção de perspectiva. Dos Formalistas aos Discursivos". Ou seja, não deve ser sequer entendida como uma escolha final, absoluta, nem fechada. É uma opção ditada por alguns princípios, aplicáveis nesta ocasião.

Algumas ou outras razões que me levaram a esta escolha, de uma forma solta, são as seguintes:
1. por acreditar que a banda desenhada é um território tão amplo e livre como qualquer outro modo de expressão, pretendi complementar as frentes que estão usualmente bem representadas neste festival com uma "outra" família de produção;
2. resolvi dar preferência a um grupo de autores que nunca estiveram presentes no FIBDA de um modo acentuado ou de todo (salvo o facto de dois deles, Joana Figueiredo e Bruno Borges, terem sido premiados no concurso há longos anos, e o André Lemos [aqui ao lado, com o filho] ter integrado os 17 autores na "Embaixada" criada então);
3. tal como ocorre noutros festivais, certames, encontros, mostras, etc., de qualquer outra área criativa, preferi sublinhar aquelas tendências que se encontram numa ponta de experimentação e caminhos paralelos aos mais percorridos, acrescentando às retrospectivas e antologias esta perspectiva (possível) de novidade, pois penso que o FIBDA tem tudo a ganhar em dar espaço também a essas frentes (e isto independentemente do tempo da "carreira" destes autores, tendo em conta que o André Lemos anda nestas andanças há quase 20 anos também);
4. tentei construir um grupo que, não obstante a sua aparente ou real diversidade estilística, constroem uma rede coesa de referências, estratégias, interesses e linhas de força [aqui ao lado, Joana Figueiredo].
Dito isto, estão todos convidados a visitar o FIBDA, que tem muitas outras exposições merecedoras da vossa atenção: uma imensa mostra de Oesterheld, a exposição do trabalho de António Jorge Gonçalves para o livro Rei que, como se discutiu aqui, é mais forte no seu domínio visual, o destaque retrospectivo a Rui Lacas, que mostra toda uma série de forças diversas que lhe atravessam a carreira, os Israel Sketchbooks do Ricardo Cabral, de que falaremos, espero, uma magnífica, ainda que pequena, mostra da editora Planeta Tangerina, talvez a exposição cuja cenografia é a mais conseguida do festival, as pranchas de Osvaldo Medina para Mucha e A Fórmula da Felicidade, as retrospectivas dos concursos e a colecção de originais do CNBDI, que tem autênticas pérolas (a prancha de E.T. Coelho é - apesar de me colocarem em territórios mais "experimentalistas" não sou cego nem intolerante - incrível), a exposição de Lepage que, apesar de não ser um autor interessante na minha óptica, tem um domínio técnico e até virtuoso da aguarela que envergonha muitos daqueles que se passam por mestres nesse campo (ao que João Maio Pinto [aqui ao lado] me ajudou a compreender), e outra meia-dúzia de coisas mais ou menos ocultas. Há também, claro, exposições às quais passei ao largo.
Ficam os agradecimentos, mais uma vez, à direcção e coordenação do Festival - independentemente das diferenças de visão e discrepâncias de modos de trabalho, discutidas frontal e educadamente - , assim como a toda a equipa que arregaça as mangas e que me ajudou a concretizar a exposição da melhor forma.
Por último lugar, as minhas desculpas pela falta de qualidade das fotografias.
Na página de vídeos do Público (Ípsilon), encontrarão alguns depoimentos meus em torno desta exposição: aqui.

27 de outubro de 2009

Ilustrações para Gertrude Stein, O mundo é redondo. Jorge Nesbitt (João Esteves de Oliveira)

Jorge Nesbitt é um daqueles artistas que explora o fundo da forma, aplicando-se à reformulação, à reforma literal, dos instrumentos de plasticidade do seu desenho de acordo com o programa previsto do material com o qual dialoga. Vimos antes em How to look at pictures uma criação que passava pelos gestos de cobrimento e apagamento para a representação que reescreve, e na adaptação de O Sétimo Selo uma forma de obscurecer as relações através de novos traços sobrepostos. No caso presente, essa mesma filosofia de obscurecimento parece continuar, ainda que ganhe qualificações diferentes. Repete-se em Nesbitt uma frase de Henri Bergson que já havíamos verificado cumprir-se noutros autores, ou nos movimentos que importa seguir para a sua interpretação: “O que é preciso para obter essa conversão não é iluminar o objecto, mas ao contrário obscurecer certos lados dele”. O obscurecimento das ilustrações de Nesbitt para os textos de O mundo é redondo, de Gertrude Stein, numa tradução de Luísa Costa Gomes, é aquele permitido, avançado e aberto pelas silhuetas.
Esta opção figurativa pelas silhuetas implica, desde logo, uma erradicação da psicologia, da expressividade “humana” das personagens, e, a longo prazo, da moral(idade) do conto, espelhando assim o gesto literário previsto na obra de Stein, radicalmente diferente das narrativas ditas “para crianças” existentes até à data, as quais, independentemente dos seus mecanismos internos, previam a chegada a uma “lição”, na sequência da ideia de uma literatura pedagógica lançada por Comenius, Rousseau, etc. (excepções podem ser encontradas nas novelas da Condessa de Ségur, com as suas ilhas de anarquia no comportamento de Sofia, o abstruso terror das narrativas de Lucy Lane Clifford e a multifacetada produção de Carroll). O livro é composto por composições breves em torno de Rosa, o seu amigo Willie, o cão Love, o leão Billie, e tudo o que os pode rodear como forma de brincadeira e conhecimento sobre o mundo. Se este é redondo ou não, é o que cada “aventura” tenta descortinar. Encontramos neste livro uma variação (será mesmo a sua semente?) da famosa frase de Stein: “uma rosa é uma rosa é uma rosa”. O paradoxo da padronização do óbvio e a emergência da variação, ou a questão da diferença e repetição, é uma das matérias centrais neste livro, e as ilustrações de Nesbitt repetem-nas.
Mas isto não quer dizer que haja uma equivalência entre o uso da silhueta e esse emprego a que nos referíamos, de uma voz amoral, objectiva. Não há aqui qualquer tipo de causalidade entre uma forma e um conteúdo. Essa associação nota-se pelo uso específico que Nesbitt faz da silhueta. É bem diverso do de Lotte Reiniger, de Carl Barks, de Jan Pienkowski, de Blanquet, ou de Kara Walker, e de tantos outros, podendo mesmo recuar-se ao teatro de sombras. Reiniger emprega a silhueta para construções visuais maravilhosas (com a ajuda de Berthold Bartosch e Walter Ruttman); Carl Barks reserva-a para momentos particulares de emotividade; Pienkowski utiliza-a como uma espécie de estenografia para narrativas sobejamente conhecidas, fixando-as a um fundo europeu relativamente artificial; Blanquet faz emergir o seu lado expressivo mais mórbido e até macabro, em que o que é invisível se torna mais violento; Walker explora o que ela tem de estereotipado, para sublinhar, reforçar e desagregar os nossos próprios preconceitos. Jorge Nesbitt, por sua vez, parece procurar o seu lado mais mecanicista, objectual, em que as partes das figuras se tornam permutáveis. Há, então, um movimento de desapoderação da parte de Nesbitt, e não um gesto construtivo. Não o sendo em termos de condições de produção, é como se fosse um movimento de regressão a partir das formas, também elas não determinadas, do texto, para uma imagem mais despojada.
Mas é esse mesmo despojamento que permite a tal natureza de permutabilidade. Não é somente o facto do artista polvilhar as ilustrações com brinquedos (peças de Mecanno, palavras cruzadas, esquemas de ponto cruz, balões, as imagens de um Thaumatrópio, soldadinhos, instrumentos de música, bibicletas e cadeiras, as nuvens que assumem formas reconhecíveis, manchas de Rorschach, o canivete para escrever na casca da árvore, o esquema do jogo da macaca, etc.; e podíamos ainda considerar tudo como “brinquedos” se lermos as figuras mesmo das personagens e animais e locais como recortes: numa imagem, Willie tem nas mãos uma tesoura e um leão recortado), mas a própria presença de elementos que se repetem, com maiores ou menores variações, nas múltiplas ilustrações do texto (praticamente uma por texto, com 34 textos separados, de tamanhos e humores diversos, e 36 ilustrações, numa distribuição desigual). Parte da razão desse entreleçamento dever-se-á aos princípios leves de narrativa continuada de capítulo para capítulo. Podemos tanto decidir-nos que O mundo é redondo é uma novela estruturada em capítulos compondo uma viagem (iniciática, se quisermos, como todos os contos tradicionais e clássicos) como sendo uma série de historietas relativamente separadas, poéticas, que poderão completar uma história mais ampla de um modo vago. Essa mesma atitude pode ser devolvida às ilustrações. O facto de elas terem sido alvo de uma exposição, e ainda de uma edição dupla de serigrafias leva-nos a poder olhá-las com um certo grau de autonomia em relação ao texto e de comutabilidade entre elas mesmas. No seu interior, porém, também se verifica o mesmo paradoxo entre separabilidade e unidade: as imagens não se tocam, e parecem imagens recortadas flutuando num fundo branco, ou podem ser agregadas num plano de composição que obedece às regras da perspectiva e da gravidade.
Uma outra característica do trabalho em silhuetas tem a ver com o contorno, o qual não existe na natureza, mas é um dos pilares fundacionais do desenho, desde o gesto apaixonado da jovem de Corinto aos escritos e discusões de Alberti, Vasari, Cellini, Leonardo e tantos outros, numa das mais perenes discussões da história da arte. Nestas ilustrações, é como se Jorge Nesbitt apenas utilizasse o contorno mas o transformasse no único elemento que compusesse os seus desenhos, como se a sombra e o reflexo do desenho fosse a única substância possível de representação.
Na exposição, é possível observar nos desenhos originais o trabalho de base do lápis. Nalguns lugares, como curvaturas, ramos e entrelaçados, pormenores, a tinta não cobriu esses primeiros riscos. Parecem espreitar por debaixo e ao lado dos contornos de tinta, procurando uma outra autonomia. Estes (d)efeitos – pouco importanto serem propositados ou não, sendo esse factor pertença do artista, não da obra – não são reproduzidos (nem reproduzíveis, eventualmente) no livro, no qual apenas os contornos têm direito de cidadania visual. Há uma camada de “limpeza” no livro que não permite a riqueza da “sujidade” dos desenhos originias. Se bem que tivéssemos um acesso limitado à edição em serigrafia, sabemos que nesse outro caso, essa questão se mantém, já que a unidade da tinta das reproduções não permite aceder ao jogo manual, de esboço, tentativa, deslize, que havia lançado o desenho.
Estas questões de reflexos, variações, geometrias, não parecem ser totalmente deslocadas na leitura e interpretação destas imagens de Nesbitt, pois o resultado visual de algumas daquelas teorias superficialmente apontadas assemelham-se aos dos desenhos do artista. Repare-se, por exemplo, naqueles troços curtos de paisagem reflectida num suposto espelho de água. São quase reproduções das representações visuais do conjunto de Mandelbrot. Esta associação traz-nos à mente a ideia de que a repetição de algumas formas ao longo das ilustrações d’O mundo é redondo, ou o seu cruzamento e mistura parcial, não são somente uma questão de variação e iteração das personagens, como apontámos atrás, mas uma espécie de contínua replicação interna do padrão geral, tal como previsto pelo famoso matemático. E do texto: “Rosa lá continuou aspirando e respirando e empurrando e empuxando e rolando, às vezes só rolava, e mexendo-se” (“A Noite”).
Mas há momentos de irrupção intempestiva das ilustrações. Interferências que não parecem previstas no texto, ou que se desencadeiam por interpretações paralelas, e que podem ser vistas como uma espécie de comentário maior da parte do ilustrador sobre a matéria textual sobre a qual trabalha, comentário que não deixa de proceder daquele modo “por apagamento” que indicámos atrás. A camada mais visível de todas é o facto da cor preferida de Rosa ser o azul, mas estas ilustrações seren a preto. Não terá a ver (somente, forçosamente) com uma questão de factura e financeira: é uma tradução, a qual, aliada ao emprego da silhueta, lança tudo num mesmo indistinto plano. Falámos do Thaumascópio, e a primeira palavra grega que compõem esse nome é θαúμα, que é traduzível como “observar com espanto”, ou “milagre”. A persistência de figuras que nos lembram os testes de Rorschach, as variações e recombinações de algumas figuras (a mais surpreendente é a de Rosa em pé, com as pernas substituídas por uma espécie de ponto de interrogação, pino de Zé Sempre em Pé, e com um galhito na mão, recordando o jogo do Sabichão), a colocação de algumas das figuras em pontos recuados ou laterais das imagens, levando a que não possam ser “lidas” na totalidade, e, acima de tudo, a estranha estrutura que se ergue no meio da planície ou lago ao lado do capítulo “As árvores e as pedras por baixo delas” (na verdade, uma estrutura muito similar aos escombros das Torres Gémeas) levam-nos a pensar que a liberdade de tradução imagética de Nesbitt o leva a fazer emergir sentidos ocultos, ou de retornos, ou de segredos fantasmáticos por detrás do aparentemente lúdico texto de Stein.
Esses “escombros” estão ao lado de um texto em que se lê “Ora quando se está sozinho completamente sozinho no bosque mesmo que o bosque seja lindo e quente e haja uma cadeira azul que não pode fazer nunca mal nenhum, mesmo assim se ouvirmos a nossa própria voz a cantar ou mesmo só a falar então ouvir uma coisa qualquer mesmo que seja muito nossa como é a nossa própria voz e estamos sozinhos e depois ouvimos a nossa própria voz então é assustador”.
Neste livro, é preciso “perdermo-nos no bosque” de Stein até chegar ao centro do seu silêncio e então, só então, “observar com espanto” o assombro da voz das ilustrações de Jorge Nesbitt.
Mais informações: ver site da galeria.

Le Tendon Revolver. AAVV (United Dead Artists)


Esta é uma publicação do artista francês Blanquet, em que, tal como outras publicações mais ou menos conhecidas, maiores ou menores, consubstanciadas em projectos de envergadura ou simplesmente com a vida simples de fanzine (citemos alguns: a Rojo, a Manual, a Fukt, a Cabeça de ferro, etc.), junta toda uma série de autores com desenhos livres, autónomos, soltos, e elabora um objecto artístico capaz de criar uma família de referências interessante.
Encontramos aqui autores que seguimos, de uma maneira ou de outra: Nuvish Mircovich, Charles Burns, o próprio Blanquet, Francesco Defourny, Daisuke Ichiba, Xavier Robel, Frédéric Fleury. Outros que ou não conhecíamos ou não havíamos prestado atenção quando por eles passámos noutras plataformas.
Há também trabalho fotográfico e poemas. Estes são ambos de Marie-Laure Dagoit, ambos num tom semi-pornográfico que aponta às fronteiras que os autores desenham para poder atravessar: “...rien n’est admirable comme une bite./débarbouilée par la langue et essuyée par/les cheveux”. Por vezes, parece estarmos perante Herberto Helder. Uma fúria quase idêntica. Há ecologia, há retratos sociais, há pesadelos, há foda, há patetice pura, há horror inominável e apenas adivinhado, há terrorismo gráfico.
O folhear destas revistas é um acto rápido. O seu efeito não.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pela troca.

Comment Betty vint au discours. L.L. de Mars (L’Atelier/L’Épicerie d’art)

Este livrito parece fazer parte de toda uma série de trabalhos do autor, passíveis de ler em formatos digitais a partir do site em que publica, http://www.le-terrier.net/. No entanto, apenas lemos (e leremos aqui) este título. A sua edição, ou pelo menos esta publicação, tem a responsabilidade do L’Atelier do Budu Festival, de Royère de Vassivière, e da galeria-associação L’Épicerie d’art, em Eymoutiers (ambas na região de Limousin, França).
Que notas nos sucitam a sua leitura? Em primeiro lugar, leva-nos a querer encontrar outros títulos com os quais a possamos irmanar, para que se construa uma categoria de análise. Mesmo que, como veremos, seja precisamente o problema das categorias aquilo que este título acaba por demolir.
A obra com que mais se aparentará é a interrompida série de comic books Underwater, de Chester Brown na qual acompanhávamos, a partir das suas percepções, a chegada da menina Kupifam ao mundo e o seu lento despertar para a linguagem e as categorias que ela impõem. Aliás, o próprio nome de Kupifam aponta mesmo para a percepção “distorcida” do nome da protagonista tal qual ela própria o compreende (poderia ser um banalíssimo “Catherine”, por exemplo). A chave da leitura dessa série não é tanto descodificar o sentido oculto, como se pudesse existir uma chave única, mas deixamo-nos invandir por essa bateria de percepções, aberta ao informe da ausência de categorias, e ao paulatino regramento do mundo.
Comment Betty vint au discours parece, no título, apontar ao que se implica no interior da narrativa: “Era uma vez uma pequena menina chamada Betty que, como todas as pequenas meninas, se encontrava resvés à beira da noite da linguagem, quer dizer, a linguagem antes da palavra...” é a primeira frase. Se Little Nemo previa que o sonho despertava o protagonista para um mundo fantástico e fabuloso de formas e aventuras, muitas vezes livres, e por vezes atacando a lógica da vigília, a linguagem e até a própria estrutura do veículo que o narrava (a banda desenhada), essas hitórias retornavam sempre à possibilidade da sua legibilidade. Hoje vivemos num tempo em que este veículo tem toda a possibilidade de se expressar de modos menos esquemáticos e consensuais, por isso explora-se aqui totalmente o pré-verbal.
Esta palavra não aponta somente para aquilo que é entendido como o que está antes do verbo, isto é, da palavra articula, da linguagem humana, social e consensual. Implica ao mesmo tempo toda a categorização do mundo a que ela obriga ou que ela faz emergir, uma forma de cognição, de percepção mesmo. É uma forma de conhecimento directo do mundo, inarticulável pela linguagem, mas acessível, para os adultos sãos e inscritos socialmente através de desvios (drogas, experiências extremas, alucinações, etc.). O que observamos em torno de Betty não é apenas as composições das pranchas ou as vinhetas modelando-se num plano informe. São as próprias personagens que não se fixam numa só formam, ou que se rearticulam entre si, ou se fantasmam (uma espécie de figura maternal mas ao mesmo tempo sombra): elas fundem-se e metamorfoseiam-se. Mas também os locais, que se alteram, se personificam, que permitem cartografias paralelas às lógicas da vigília, são os próprios eventos que abolem a causalidade, é a linguagem (o francês, que mantém os seus traços largos de ortografia e gramática) que se desenvolve na consciência poética do sonho, pela associação, pelo efeito sonoro, pela citação estranha familiar, pela dimensão visual da tipografia e da caligrafia...
A forma “banda desenhada” permite que viremos as páginas uma após outra e adivinhemos uma imposição de um sentido linear, de uma leitura, mas este livro obriga-nos à releitura, não obstante a existência de um princípio e de uma resolução. As matérias com que se urde a trama bebe de toda uma tradição da literatura dita infantil, que coloca a protagonista numa viagem iniciática (tal como a Capuchinho, Alice, Dorothy, a Rosa de Gertrude Stein, a Coraline, etc.). Porém, neste caso em particular, essa viagem não nos leva a lado nenhum, porque não nos estamos a deslocar geograficamente. A “lama” onde nos vamos atolando, com Betty, é a da linguagem, e é com dificuldade que atingimos o destino final: o discurso. Desconfiamos que o “discurso”, que não é conquistado por esta Betty, é aquele que temos nas mãos, e que lemos nós mesmos.

Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pela troca.

Mucha. David Soares, Osvaldo Medina e Mário Freitas (Kingpin Comics)

Começo imeditamente por dizer que, tendo tido a honra e o prazer de ter escrito a introdução a este livro, encontrarão nesse texto razões de sobra para a apreciação que tenho a fazer deste livro.
Se bem que não seja o livro de maior músculo de David Soares, e mesmo Osvaldo Medina tenha reservado algumas das suas maiores forças noutros projectos, a breve novela que é composta por Mucha, de uma leitura rápida, impressionista e, esperam os autores, incómoda, é uma experiência curiosa a vários níveis.
Não só pela natureza do trabalho de colaboração entre Soares e outros desenhadores – ocorreu de uma maneira magistral em Mr. Burroughs, com Pedro Nora -, que aponta a uma eventual produção do escritor de vários trabalhos na veia do horror para serem cumpridos por vários artistas, mas também pela natureza da sua edição. Mário Freitas, além de arte-finalista, é o editor por detrás da Kingpin Comics, que se mostra seriamente preparada para a construção de um catálogo muito próprio, individual naquilo que passa pelo mercado em Portugal. O seu objectivo não é a criação de títulos “independentes” no seu sentido mais experimental, artístico, ou outro adjectivo similar, mas sim o avanço de uma plataforma “alternativa” às editoras maiores que teimam em não encontrar soluções de criação de novos públicos e novas linguagens no interior da banda desenhada. A Kingpin, a seu modo, e juntamente com outros projectos, aposta nessa vertente comercial.
Se A Fórmula da Felicidade foi um desses gestos maiores, Mucha é um outro.
A plasticidade de Medina, corroborada pelo trabalho de Mário Freitas, tem aqui uma vertente bem diferente daquela presente na colaboração com Nuno Duarte, ou com Pepedelrey. Revelo aqui uma das pranchas a lápis, com autorização do autor. os desenhos apresentam-se de um modo mais despojado, mais terra-a-terra, até mesmo com alguma fealdade distribuída nos rostos das personagens, o que não é senão um bom equilíbrio em relação à trama planeada pormenorizadamente por David Soares, a qual também se apresenta de uma forma mais subtil, menos barroca, do que noutros dos seus trabalhos, inclusive o literário. O “barroco” aqui nada tem a ver com um posicionamento negativo, ao qual se oporia um preferencial classicismo. Tem a ver com uma exuberância de que Soares é capaz de tecer e equilibrar, mas que, em Mucha, está ausente. Porque o que importa é sublinhar a linearidade do horror que ocorre a esta população e a esta mulher. Como termino o texto na introdução, “porque, a cada vida, bata um só terror para acabar com ela”.
Nota:Agradecimentos ao Mário Freitas pela oferta do livro, ao David Soares pelo convite, e a Osvaldo Medina, pela autorização da publicação do desenho a lápis.

Water. Kiriko Nananan (Sakka)

Este volume reúne pequenas histórias, algumas delas de três páginas apenas, criadas e publicadas ao longo dos anos 90. Estamos, portanto, a ver trabalhos anteriores a outros títulos da autora que viria a publicar em França, anteriormente a este, que lhe faz a arqueologia própria. Em muitos dos seus contornos, as características formais que debatemos a propósito de Blue estão aqui já presentes, se bem que seja possível vislumbrar um grau ainda “tosco” na figuração das personagens, ou o emprego de fotografias ligeiramente ou mais retocadas, colagens mínimas, desvios pequenos.
As histórias são totalmente autónomas entre si, não existindo, para além dos “temas”, quaisquer elementos narratológicos em comum (personagens ou espaços, a título de exemplo). Isso não nos impede de incorrer num movimento de deslize para o interior de uma impressão que, não sendo correcta, é possível. Há um momento na leitura sucessiva destes pequenos relatos em que as fronteiras de cada um deles começa a delir-se, e passamos a confundir as personagens, as circunstâncias espácio-temporais de cada história, os humores e as morais, fazendo emergir uma espécie de base comum que devolvemos à autora. Ou seja, começamos a imaginar uma possibilidade de autobiografia. Imaginamos que as experiências eventuais da autora – confirmável apenas se o perguntássemos directamente, o que significa ser-se inanalisável (e até insustentável?) no interior do livro – foram sendo transformadas em matéria moldável em histórias, ou num prisma, o qal, dependendo da perspectiva ou ponto de partida, permitisse a criação de uma imagem ou história diversa. Ou seja, essa eventual “experiência(s)” daria origem a estas perspectivas, pequenas histórias do dia-a-dia.
Isso deve-se ao facto de existirem elementos descritivos comuns entre essas histórias: são todas centradas em adolescentes japoneses num umbral da idade adulta, experimentando os primeiros passos, presume-se, excitados, angustiantes, assustadores, desequilibrantes, em toda essa esfera. Os “sinais de adulto” são claros: as saídas à noite, a desistência da escola, viver sozinho, fumar, beber, e, acima de todas as outras temáticas, o par, nem sempre unido, nem sempre linear, entre sexo e amor.
Kiriko Nananan especializa-se, se assim se pode dizer, nas maneiras que os jovens lançam e procuram compreender o que significa o desejo, que se expressa ora sofregamente através do consumo da carne, do suor, do abandono sexual, ora através de formas elaboradas de se compreender e absorver o outro. As mais das vezes, essas tentativas são sempre goradas, e é nesse intervalo magoado que a autora constrói os seus momentos, silenciosos, mais fortes.
Algumas da shistórias são como que completas e claras (têm um “princípio, meio, fim”), outras são extremamente elípticas, em que os não-ditos desenham a regra da sua apreciação.
Por vezes, há mesmo imagens (uma vinheta, um ângulo) que não somos capazes de interpretar de modo acabado: se se trata de uma projecção de desejos das personagens, ou se é uma construção simbólica do tema da história... Isto torna-se possível não só por existirem instâncias (claríssimas) de vinhetas analépticas, por exemplo, como a própria focalização e composição das vinhetas, “apertadas”, “fragmentárias” sobre o objecto de atenção, criam as condições necessárias a esse jogo de subtileza e indeterminação.
Poder-se-ia argumentar que Nananan é um exemplo de banda desenhada “japonesa”, ou “feminina”, ou “contemporânea”, ou “jovem”, procurando com cada uma dessas qualificações encontrar um descritor suficiente, ou até procurar cruzá-las e julgar haver atingido a sua compreensão. Todavia, esse exercício apenas explicaria os elementos de circunstância e pouco mais.
No texto de apresentação da autora no livro, fala-se de que as suas histórias reformulam o sentido da expressão “à flor da pele”. É bem visto. À flor de uma pele que não apenas cobre o corpo de cada um, como surge como toda uma superfície universal que partilhamos e nos permite ler as mesmas sensações.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

24 de outubro de 2009

Asterios Polyp. David Mazzucchelli (Pantheon)

O trajecto de Mazzucchelli é, só por si, digno de uma atenção especial em termos de um entendimento linear de fama, expectativas e acomodação ao mercado da banda desenhada. Mazzucchelli ficou conhecido de um grande número de leitores sobretudo através de trabalhos no mundo do mainstream norte-americano dos superheróis, com o Demolidor escrito por O’Neil e depois Frank Miller, e depois, com este último autor, em Batman: Ano Um (francamente superior a The Dark Knight Returns em todas as suas dimensões). No entanto, essa acomodação, que visaria um equilíbrio final num mesmo campo, foi totalmente desviado pelo seu abandono desse circuito comercial, lançando-se a projectos mais independentes nos quais poderia explorar a inventabilidade gráfica possível da banda desenhada fora dos espartilhos narrativos, visuais e políticos previstos na Marvel e DC. Entre 1991 e 1993 publicaria, através de um selo editorial próprio, os três números da revista Rubber Blanket, na qual exploraria toda uma série de modos de contar em banda desenhada, explorando estilos gráficos, temas e géneros, e cruzamentos de modalidades do modo que lhe parecia o mais livre. Em 1994 seria publicada a adaptação em banda desenhada do romance de Paul Auster, A Cidade de Vidro, numa colcaboração com Paul Karasik (cuja importância é superna na construção do livro), que contribuíria para uma substancial nova forma de entender essa mesma “transescritura”, para empregar um termo de um livro coordenado por André Gaudreault e Thierry Groensteen.
Asterios Polyp é o seu primeiro livro de formato espraiado, mas condensa toda a experimentação que Mazzucchelli vinha apurando nessa sua fase “independente”. Se bem que não se possa dizer que o autor faça “experimentalismo” tout court – numa mesma acepção que os autores de Abstract Comics, ou os da Frémok –, ele emprega-o ainda assim para a cração de novos veículos de expressão narrativa. É óbvio que este livro é alvo de vários encómios e entusiasmos, empregando-se a palavra “magistral” com generosidade, mas não o será de todo deslocada. Há, sem quaisquer dúvidas, uma perfeita coadunação das experiências da linguagem da banda desenhada ao programa narrativo, como veremos. Todavia, é necessário qualificar este trabalho de Mazzucchelli, de excelência, como estando incrustado no campo da banda desenhada narrativa, legível (por oposição aos caminhos da experimentação, se bem que esta divisória seja ilusória) e acessível. A seu modo, o autor exponencia a continuidade da aplicação daquilo a que se dá o nome de “linha clara” como uma das escolas permanentes da banda desenhada: porém, ele ultrapassa a utilização dessa estratégia (ou constelação de estratégias) de uma mera aplicabilidade para a construção de uma ideia de realidade e verossimilhança para chegar à transmissão das impressões e percepções pessoais das suas personagens, a emergência de mundividências específicas e diferenciadas. Isso nota-se no momento em que o narrador nos faz entender o modo como cada personagem, como cada pessoa, observa o mundo, existindo uma escolha de representação gráfica para cada uma delas, e o modo como o protagonista, Asterios, conhece a sua futura mulher, Hana, e estes se vão mesclando (ele, feito de linhas vectoriais, límpidas, transparentes, azuis ela, de expressivas tramas e densas sombras, vermelhas), e mais tarde desfazendo-se.
O nome da personagem principal aponta-nos não apenas à tradição de transformar, por defeito, os nomes dos imigrantes – “Polyp” seria um nome grego truncado pelo oficial que recebera o pai de Asterios, encurtado portanto – como ainda para associações livres que poderão ter algum papel na história em si: excrescência de pele, a criatura aparentada com a anémona, flor do mar (asterios parece também ganhar ideia de flor, sublinhada pelas páginas das guardas do livro). Verificam-se muitos cruzamentos entre a vida desta personagem, matéria do livro, com o mito de Orfeu – o espectáculo que o entrepreneur cultural, Willy, prepara, as referências a Gluck, a sequência da “descida imitativa” do próprio Asterios, entrelaçando-se todos os elementos desse mito à projecção do protagonista deste livro. Essa adaptação procura cumprir a mesma plasticidade contemporânea dos Orfeus de Cocteau, de Vinicius de Moraes/Marcel Camus, de Buzzati. Todavia, essa associação é tão clara que acaba por não ser tornar significativa para escavar os seus significados mais profundos. Isto é, é somente uma associação de princípios narrativos. Para explorar essa perspectiva, seria mais importante procurar quais os modos através dos quais o mito de Orfeu é apresentado, quais as variações ou tervigersações em relação aos materiais mais recuados, para perceber se há um fortalecimento dessa história através da de Asterios.
Não me parece que isso acontece. Não há dúvida de que Asterios poderá exercer algum fascínio sobre algumas pessoas (uma mão-cheia de alunas embevecidas, incautos fãs, e a sua mulher, Hana). No entanto, a imagem que mais avança é a de que Asterios não tanto seduz como impõe uma sua superioridade, através do seu poder, inteligência, e charme controlado. Se ele acalma as bestas do inferno e do mundo, tal não se deverá a um talento inato de entrosar na beleza, como o poeta, mas a um frio calculismo ponderado. E essa é mesmo a lição a que Asterios Polyp é submetido; a sua natureza perenemente desapaixonada, sem riscos, sem desequilíbrios, é aquela que terá de sofrer ajustes. O pecado de Asterios é o da hubris. Não há nenhuma resposta fácil para se interpretar o mito de Orfeu (já que os materiais que o compõem são heterogéneos, diferenciados, distanciados), mas parte dele permitir-nos-á precisamente sublinhar o do orgulho e arrogância, repetido, ainda que de uma forma totalemente diferente, por Asterios.
O mesmo não ocorre na matéria que é própria ao veículo que conta a sua história, isto é, a banda desenhada de Mazzucchelli. Uma das frases mais repetidas por Asterios é “tudo aquilo que não é funcional é meramente decorativo”. Mazzucchelli parece querer levar a(s) dicotomia(s) dilectas de Asterios a um ponto absurdo, não para as comprovar nem para as destruir, mas para que ambas se encontrem num encontro inédito. Todo o livro, de uma ponta à outra, apresenta toda uma listagem de estratégias visuais que nada têm de convencionais, mas cujo nível de expressão também não é livre, ornamental, propriamente expressivo. Não é uma questão de subsunção das formas à história, mas uma tessitura densa, uma malha apertada, que nos impede de encontrar os pontos pelos quais pudéssemos rasgar o nível da narrativa e o da sua veiculação visual, ou mesmo nível ornamental. Em Asterios Polyp, o “decorativo” é a própria “função” da narrativa. É um livro cuja análise da cor, das letras, da balonagem, da composição de página, dos jogos das vinhetas, das relações possíveis entre texto verbal e a sua camada visual, as metáforas visuais, as citações literárias, artísticas e da banda desenhada, os simbolismos, as referências culturais, os nomes das personagens, os separadores e a maneira como se entrelaçam no âmago da acção, os eventos e a organização temporal e causal, e quase toda a panóplia dos elementos que compõem aquilo que consideramos próprio intuitivamente da banda desenhada não pode de qualquer modo ser descurada, mas a conclusão inevitável desse estudo é a emergência de um texto coeso, unificado, um “bloco de sensações”, nas palavras de Deleuze-Guattari.
Isto não nos impede de considerar algumas das páginas como que surgindo enquanto unidades solitárias e sólidas. Podem-se, quase, lê-las individualmente, concentrando-se numa afirmação ou num brevíssimo episódio da vida do protagonista, ou dos que o rodeiam, ou numa ideia. São citáveis de um modo límpido. A obra é, em termos visuais e narrativos, composta de toda uma série de referências quer internas quer externas que tornam Asterios Polyp também num encantador manancial de fractalização do universo da banda desenhada e da ilustração. As referências internas têm a ver reaproveitamentos do próprio autor: uma das personagens secundárias é um astrónomo meio-tresloucado, que coincide com aquele de “Near Miss”, uma história do primeiro número de Rubber Blanket; as externas verificam-se, a título de exemplo, na página que mostra a visão da história, desde o “hoje” mais perto e claro até à longíqua e pouco visível estreita faixa da pré-história, espelha-se uma construção famosa de Saul Steinberg para a capa de uma New Yorker. Outros exemplos haverá. Reincide assim a ideia de ser este um livro que repensa igualmente a tradição, a história, a ontologia das linguagens gráficas empregues na criação de histórias, de um imaginário concertado.
No cômputo geral, todavia, este desequilíbrio, entre novidade e classicidade, entre unidades singulares e obra estruturada, entre nitidez narrativa e ruído inventivo, nota-se a toda a extensão. A fabricação da voz narradora pelo irmão gémeo nado-morto é um interessante achado, muito pós-moderno e promissor, mas que acaba abandonado de um modo quase distraído, quase como o hábito de fumar de Asterios: apenas nos apercebemos de ambos abandonos muito depois do facto.
A história central, a das relações de Asterios com os outros, sobretudo, em duas fases, com Hana e depois a família do mecânico Stiff, em quem se refugia, apresenta uma resolução fácil, caricata até. Poderá argumentar-se que á um final irónico ou cómico-trágico, que volta a tecer uma linha começada em Rubber Blanket, mas não deixa de diminuir o desejo de encontrar uma resolução mais facetada e subtil. Ao mesmo tempo isso leva-nos a considerar que o propósito de Asterios Polyp não é a linearidade ou a dicotomia proferida, logo ao início, pelo próprio Asterios, mas o desenho circunvoluto dessas relações, um novelo propriamente dito, e não somente a sua circunferência.
No fundo, se bem que dizer que é um projecto falhado seja um erro tremendo, esta é uma obra com falhas, no que diz respeito pelo menos àquela instância a que se costuma dar o nome de “grande fôlego”, aplicado a autores cuja obra se constitui, como era o caso de Mazzucchelli até esta datas, por peças pequenas (mas não “menores”). Julgar que um autor com “livros” ou “séries” é necessariamente melhor que outro que costume dar-se a ver através de gestos breves não é um mero erro de escala, é completa estupidez. Como vimos, Mazzucchelli já havia experimentado diversos graus de sucesso e de trabalho. Asterios Polyp não é uma extensão ou desenvolvimento em expansão dos seus trabalhos anteriores, mas antes um contínuo desdobramento dos seus interesses formais, enquanto aplicados à narrativa. Daí que se note naquele ritmo fragmentado das narrativas entrelaçadas, ou episódios, e a flutuação entre a força súbita de uma ideia visual e a sua expressão, e um recurso mais consensual (a tal associação que fizemos à linha clara; mais, a própria personagem Asterios faz-nos lembrar por vezes o Hergé-personagem de Stanislas). Enfim, Asterios Polyp é mais uma exploração sistemática dos elementos molares da banda desenhada do que a emergência coerente do seu sistema transformado pelo autor. Mazzucchelli demonstra ser, portanto, mais um “executante exímio” do que um “re-inventor pelo desequilíbrio” (como, talvez, um exemplo apenas, Gary Panter?). Há, portanto, uma opção menos pela expressividade - o que ocorrerá com autores mais emotivos, mas não necessariamente tão inventivos, como Craig Thompson ou Bechdel, ou outros cujos meios formais exploram a extensão física e factural dessa expressão, de novo como Panter ou Chippendale – do que pela impressividade, o impressionismo, o despertar de percepções graças a elementos mínimos de estabelecimento de formas.
Vemos e sentimos o mundo de Asterios Polyp através de Asterios Polyp. Como diz Don DeLillo algures, o propósito do romance (da ficção em geral, englobando alguma banda desenhada) é a “recomplicação da realidade”. Isso acontece aqui. Não é esse mesmo o fito da melhor ficção?

15 de outubro de 2009

Os Republicanos. João Sousa Cardoso (auto-edição)

Os Republicanos é uma instalação, que se pode descrever como sendo de imagens fotocopiadas coladas nas paredes de um espaço expositivo, o Uma Certa Falta de Coerência, pertencente ao circuito das artes contemporâneas da cidade do Porto, coordenado por André Sousa e Mauro Cerqueira. Esta exposição foi comissariada por José Maia e é como que uma segunda parte de uma exposição anterior intitulada A Terceira República. Não falaremos tanto da exposição, pois faltam-nos os instrumentos mais correctos, mas se nos atrevemos a tal é por a exposição ser acompanhada, complementada, transportada (já veremos qual a palavra mais correcta) por uma publicação, que partilha o título. Os Republicanos é também um jornal... ou além disso...
O gesto interessante, a dimensão performática, de instalação, que dá a esta publicação a aura de continuidade da exposição, acontece por um simples dispositivo, mas que ganha contornos “mágicos” na sua execução. Uma vez que as folhas são impressas a uma cor apenas, o vermelho, e a instalação no Uma Certa Falta de Coerência é iluminada por uma plúmbea luz vermelha eléctrica, acontece que, no próprio local, as imagens da publicação são “apagadas” (anuladas), tornando-se apenas visíveis fora da instalação (revelando-se fora dessa sala). É como se pudéssemos apenas visitar a câmara do Atlas composto por João Sousa Cardoso – a palavra Atlas deverá remeter tanto para o trabalho do historiador de arte Aby Warburg como para o compêndio de trabalho do pintor alemão Gerard Richter – e fôssemos obrigados a compreender a disposição das imagens, a sua cartografia própria, o modo como cada uma delas se relaciona numa parede, entendida como plano de composição constituindo uma unidade de leitura pertinente, e consequentemente cada sala, cada piso e, finalmente, o espaço/instalação como um todo, sem que possamos pensar na sua eventual reestruturação num veículo portátil, arquivável, transmissível. E apenas a saída desse espaço fundasse a sua própria rememoração possível no corpo da publicação. Assim, Os Republicanos-publicação passa a ser a memória possível, a relativa cristalização, uma tentativa de escrita, d’Os Republicanos-instalação, necessariamente mais fluida, entrosada na percepção líquida e flutuante do seu visitante, uma perfomatividade mais “oral”, por assim dizer.
Não é por acaso que tenha recorrido à palavra “Atlas”, sobretudo pelas inflexões de Warburg e Richter. No que diz respeito ao primeiro, prender-se-á com a dimensão de se tratarem de materiais de trabalho que visariam uma discursividade arquivística-histórica, que permitisse uma construção de uma memória pautada por uma qualquer categoria que esteja operativa no momento do próprio acto de rememoração. Isto é, o arquivo, existindo, permite que a cada um dos actos rememorativos, dependendo do que o pauta, possa seguir uma narrativa nova. Quanto a Richter, não deixam de ser materiais de trabalho, fundamentos de utilização posterior, mas em que o discurso se permite a uma mais livre revisitação e reinvenção das formas, da associação livre de conceitos, de um acto mais criativo (ficcional, até?) da memória.
Os Republicanos não deixa de ser umo certo retrato do “político”, que tanto pode partir da escala da ideia local (de Porto a Portugal) até à da internacional e mesmo mundial, e desde o estritamente político-partidário/ideológico à ideia da cidade global, abrindo-se ao círculo completo da “cultura”, da intelectual à pop, provocando todo o tipo de associações possíveis.
Comissariado por José Maia, não é de estranhar as afinidades electivas entre os trabalhos de Cardoso e os de Maia: presença de imagens múltiplas que permitem associações, ausência de comentário, apresentação de arquivos que apontam a um momento de desconforto cultural e político da história de Portugal (o colonialismo, tema recorrente em Maia). Cardoso rasga um panorama mais geral do que Maia, sem que isso permita fazer qualquer tipo de hierarquia. Não se trata de uma diferença de grau, mas de natureza: Maia concentra-se num episódio fulcral da construção da identidade portuguesa – ou da crise de identidade contemporânea; Cardoso abre o seu panorama a uma circulação livre entre todo o mundo. Apesar do aspecto “pobre” da instalação (em suma: fotocópias de fotografias de jornais e revistas e cartazes – retiradas da internet, explica-se – coladas às paredes por autocolante, de uma forma tosca e aparentemente ao acaso), Os Republicanos parece abrir-se – através da associação livre de temas, círculos, disciplinas, contextos – ao infinito.
O sub-título da publicação, “Um jornal de actualidades”, aponta de imediato para essa problemática dos significados: afinal, “actualidades” é usualmente termo de notícias frescas do dia. Duas leituras se aventam possíveis, aqui.
Por um lado, poderá surgir como uma crítica lateral, não panfletária, irónica, ao modo como o jornalismo contemporâneo é conduzido: a ideia de infotainment cada vez mais divulgada entre os noticiários televisivos, a emergência de certas notícias (usualmente relacionadas com processos envolvendo políticos) nos períodos eleitorais, os aproveitamentos políticos por quaisquer faits divers (aliás, os faits divers têm uma dimensão desde logo curiosa na construção dessa identidade “actual”, mais rapidamente sendo esses os “temas de conversa”, os domínios “fracturantes” e que, por isso mesmo, lançam uma rede de relações identitárias), a notícia-vídeo (isto é, algo que se torna notícia não pelo seu peso informativo intrínseco mas pela existência de documentação filmada, depois divulgada vezes sem conta), e até mesmos as estratégias da divulgação das notícias sob uma forma cada vez mais atomizada (como se constata pelo estilo do jornal diário I e a forma de staccato do Jornal da Noite da SIC).
Por outro lado, a total acessibilidade de canais de informação e divulgação permitidas pela internet, e os instrumentos que tanto servem de canal de primeira mão como de reinvenção (penso no Youtube, em primeiríssimo lugar), quase torna qualquer facto que desconheçamos, por mais recuado que possa ser – uma entrevista televisiva a um rocker em 1978, uma newsreel de 1929, um documentário sobre a II Guerra Mundial (como a recente série televisiva, com materiais filmados na época, World War II: The Holocaust) –, numa “actualidade”. Cardoso, colocando a fotografia do tiranicídio de Moussolini lado a lado com uma outra do incêndio no Chiado de 1988, outra de Catarina Furtado e Carlos Malato, e ainda a capa do jornal parisense L’Aurore de 13 de Janeiro de 1898, com o famoso “J’Accuse” de Zola em torno do caso Dreyfus, quer provocar sobre nós tanto uma certa capacidade de associação e emergência de sentido como a sua própria crítica. O que é importante e o que é banal? Encontramos fotografias de uma piscina, de um salmão, uma página de uma fotonovela, de anúncios, de uma escadaria de metro com os azulejos de Maria Keil, uma foto promocional dos Heróis do Mar e outra do próprio João Sousa Cardoso com colegas de um projecto performático. A ideia de “memória colectiva” parece ser gozada, como se o nome de Mário Soares tivesse o mesmo peso que o de Quique Flores na memória nacional. Como se o agrupamento da Conferência dos Açores (Barroso, Blair, Bush e Aznar) cumprisse o mesmo papel que o dos Heróis do Mar. Escrevo “como se”, seguido do conjuntivo, pois falho na apreciação que Cardoso quer fazer passar: são iguais, são de facto idênticos no seu peso.
A assinatura do Tratado de Lisboa, Serge Gainsbourg e Jane Birkin, a morte de Orfeu de Dürer (curiosamente, uma das imagens trabalhadas e estudadas por Warburg, reforçando os laços da nossa associação feita acima), Rui Reininho aos 20 anos, Álvaro Lapa, Zidane após a cabeçada, Nelson Évora depois da conquista da medalha olímpica, o enterro de Buíça, a escultura de Cutileiro no Parque Eduardo VII...
O que é importante e o que é banal? A resposta torna-se agora menos retórica, e menos vazia, ao mesmo tempo que se descobre que perde todo o sentido. Todas estas imagens são públicas, são coisas. São “coisas públicas” e nada mais para além disso.
Nota final: agradecimentos a Mauro Cerqueira, pelo tour e a publicação. Para mais informações, ver Uma Certa Falta de Coerência.

13 de outubro de 2009

Ilustrações para Sérgio Godinho, O sangue por um fio. Tiago Manuel (Assírio & Alvim).

Na sequência de um exercício já anteriormente tentado, com Filipe Abranches e Ana Biscaia, incursamos agora num conjunto de sete desenhos que Tiago Manuel criou para o novíssimo volume de poemas de Sérgio Godinho, O sangue por um fio.
O arranjo gráfico geral do livro, e consequentemente das relações directas entre os poemas e as ilustrações, é algo tímido, arranjado e limpo, não permitindo qualquer contaminação visual. Essa contaminação apenas surgirá a posteriori, com a leitura interpretativa. Nesse sentido, há quase o risco de tornar, as ilustrações, decorativas, e os textos, consolidadores exclusivos do sentido. Remetendo as ilustrações somente para as páginas titulares dos sete “livros internos” reforça esse grau de separação, e impedindo uma outra opção que permitisse uma mais livre circulação das linhas de força dos desenhos sobre os poemas.
Se se podem encontrar afinidades entre estes desenhos particulares de Tiago Manuel e outras instâncias, penso que não serão com os ilustradores “artísticos”, digamos assim, mas sim com aquelas inflexões esteticizantes do campo científico. Penso sobretudo, dadas as características físicas muito específicas destes desenhos – estruturas internas, a criação de manchas de cor e sombra através de pontos, a esquematização da composição e distribuição das imagens – nos desenhos de células de Robert Hooke no seu Micrographia (1665) ou nas belíssimas composições quase abstractas dos invertebrados em Kuntformen der Natur (todo o volume, 1904), de Ernst Haeckel. Nesta comparação, todavia, o “rigor” (o grau de pormenor, a técnica pontilista, o grão molecular) dos desenhos de Tiago Manuel não seguem a objectividade sintética da ilustração científica, mas sim a acuidade intrínseca dos objectos visuais que escolheu. Poderíamos, na tentativa de nomear esses objectos, recorrer a toda uma série de metáforas, mas provavelmente todas elas falhas (leia-se o poema No reino da metáfora): ovos, pedras, colónias de plâncton, dendrites, tecidos biológicos, vasos capilares, células indiferenciadas do “sangue por um fio” que se vai construindo a cada poema.
A faceta científica destas ilustrações encontra um eco nos textos de duas formas. Em primeiro lugar, pelo facto dos títulos de cada “livro” interno começar com “de”, recordando dessa forma os títulos latinos dos livros de Aristóteles, por exemplo, ou todas aquelas obras que procuravam efectivar uma descrição exacta das coisas do mundo. Por outro, no modo como Sérgio Godinho procura explicar de um modo definitivo essas mesmas coisas do mundo através de construções frásicas idênticas, curtas e decididas: “A desobediência é a forma às avessas da integridade.”; “A raiz, o centro da terra, é o silêncio.”; “A esperança é uma sabedoria branca e parda.”; “Cadeiras vazias são prova de vida.”; “Partir é um pré-balanço da vida: assim/fosse para sempre.” A insistência no verbo “ser”, descritivamente, traz um poder decisório aos ecos da sonoridade prosaica dos poemas, como se cada um deles fosse uma explicação da faceta do mundo com que se debate. Há sempre o carácter livro próprio do poema, mas esse é como que diminuído pela escrita de Godinho, como se houvesse uma procura pela exactidão (de resto impossível, mas que o próprio gesto de a querer contrariar revela). Há uma natureza dúplice que ainda encontrará outro alcance, como veremos adiante.
Essa explicatio atravessa ainda o emprego de toda uma série de frases feitas, fórmulas populares – “não há mas nem meio mas”, “há que acompanhar a moda”, “um diz mata o outro esfola”, “isto está pela hora da morte” –, como se se criasse um pequeno fantasma burilado a partir de pequenas resignações. O sangue por um fio é um livro composto por poemas que sabem a biografia velada, aqui mais, ali menos, de rememoração de tempos o mais recuados possíveis (a infância, a juventude, os primeiros amores, a tropa), mas também de testamento sob o medo da morte, e a contínua recuperação do gesto de escrever para cantar. Todas essas dimensões concorrem para uma “forma de ver” e, consequentemente, de “dar a ver”, de “explicar”, que é então continuada pelas imagens.
As figuras aparecem sempre a dois (mesmo quando uma dessas metades é composta por elementos vários). E estão separadas pelos títulos, os quais também apontam a dicotomias, a tensões entre forças antagónicas. Podem claramente ser elementos contrários ou complementares (“Das perguntas das respostas”, “Das quimeras e metáforas”), como podem ser oposições englobadas por um dos elementos (“Do dormir sem acordar”), como ainda podem procurar mostrar o trabalho marchetado de um elemento no outro, ora inflectindo-o, ora condicionando-o, ora configurando-o (“Dos ecos da viagem”, “Da guerra no mesmo mundo”, “Do amor à primeira vista”). E podem ainda apresentar impossibilidades ou generalizações que se anulam mutuamente (“Dos calendários perpétuos”). Cabe-nos tentar encontrar essas mesmas relações nos objectos visuais de Tiago Manuel.
Se por um lado essa natureza dúplice, a que já nos havíamos referido, está prevista no próprio texto - “As frases não ganham ritmo por si mesmas./Ou são ambivalentes – e nisso já são duas,/ou se estendem sem sentido/até se agarrarem a uma cor/ou coisa mais material” – poderemos, ainda, encontrar nas ilustrações uma tradução “material” dessas coisas a que se agarram as palavras para ganharem o sentido, sobretudo pelo facto dessa paridade.
Emerge assim a ideia de um diálogo, talvez mesmo promessa de síntese, entre essas formas díspares. Como se escreve num dos poemas, “Toda a faca tem seu fio –/ o amor, suas metades.”
Eventualmente, poderemos ver na ilustração uma das metades amorosas, cuja outra metade é o texto.

9 de outubro de 2009

Barques, Heurex, Alright!, Blackbookblack. Vincent Fortemps, Thierry Van Hasselt, Olivier Deprez, respect. (Frémok)

Nota inicial: este post encerra uma discussão iniciada há dois posts.
Estes três pequenos grandes livros – a imagem não é de todo um cliché nos casos presentes – estão naquele fim do espectro de que falámos anteriormente sobre a banda desenhada enquanto estrutura específica de uma linguagem visual, o fim no qual se encontram estratégias maximizadas de exploração dessas mesmas estruturas e especificidades, como ainda, repetimos, “processos de experimentação, progresso ou reinvenção do próprio meio”.
Na revista Art&Fact no. 27, de que falámos anteriormente, indicou-se o breve texto em que Olivier Deprez dava conta precisamente destes três projectos, irmanados pela razão de serem obras que, resultando ou permitindo a criação destes três livros, nascem de projectos de colaboração interdisciplinar, de uma dimensão performática, com outras artes ou disciplinas criativas. Mais, elas são como que o corolário do que fora iniciado nos anos 90, sobretudo pelas mãos do projecto colectivo da Fréon e Amok, depois Frémok, no que diz respeito a, citemo-lo, “a passagem da página ao espaço e vice-versa”. O título desse artigo, “Dispositifs intermédiatiques: de la case à la perfomance et vice versa” é explícito.
Convém explicar as condições de produção e origem de cada projecto.
O livro Barques (título em inglês, Crafts), de Vincent Fortemps, nasceu da colaboração com dois músicos num projecto intitulado La Cinématique, nas quais desenhava ao vivo com um dispositivo que permitia aos espectadores ver a sua criação, à qual os músicos respondiam. Esta experiência de fazer resultar um objecto impresso a partir de uma criação encenada não é nova no autor, se recordarmos o magnífico Chantier Musil - Coulisse, que adveio de uma peça teatral experimental baseada numa adaptação d’O Homem sem Qualidades.
Thierry Van Hasselt colaborou com a coreógrafa Karine Ponties, para a companhia Dame de Pic, construindo o espectáculo Holeulone. Esta é já a segunda colaboração entre os dois autores, continuada de Brutalis. Dois bailarinos executavam os seus movimentos, e sobre eles e a cena eram projectadas as imagens da “tinta animada” de Hasselt. A partir disso, Hasselt convida a escritora Mylène Lauzon para escrever um texto em francês e inglês (aqui traduzindo-se mutuamente, ali misturados, ali contradizendo-se), e elabora um livro nas quais as páginas parecem querer compor uma história de estrutura clássica, parecem prometer um rumo, mas este acaba por se dissipar em várias direcções, tal como a tinta em água (parece haver um DVD com a animação de Hasselt disponível; não o conheço).
Deprez, com o também xilogravador Miles O’Shea e a designer Alexia de Visscher, criava e imprimia “numa biblioteca, ao vivo, gravuras sobre madeiras negras, juntando-as num livro negro de páginas negras”, numa série de espectáculos em várias bibliotecas (envolvendo o próprio espaço para a disseminação dos livros criados). Essa performance seria depois representada noutras tantas gravuras. Ambas fazem parte do corpo de Blackbookblack.
No seu artigo, Deprez aponta para algumas das linhas de força ou modos de relacionamento da expansão dos projectos transdisciplinares e de banda desenhada: “podemos qualificar o livro de ‘produto derivado’ se não fosse também uma ‘recriação’”. A primeira linha é, como já se viu, a relação entre “espaço” (da vertente performática, a black box, mas também a da exposição artística, o white room) e “página”, ou até “vinheta”, enquanto plano de composição real da banda desenhada. As expansões aqui são bidireccionais, em termos de influência, de cruzamento, de processo desencadeador e de plataforma de execução e expressão. Nesse sentido, estes livros, estes “produtos derivados”, tanto podem ser lidos autonomamente, como complementos, como modos de acesso à circunstância original; por outro lado, essas origens ganham uma qualificação especial à luz destas produções objectuais. A isto acrescentar-se-á a complexa relação entre movimento – da coreografia, da animação, dos gestos do gravador, da multiplicação na acção – e a fixidez das imagens dos livros. As metamorfoses, mais contínuas e ilusórias, ou menos consensuais, encontram nas imagens finais dos livros diversos modos de tradução, pelas suas próprias características materiais (ver adiante).
Mesmo não tendo assistido ou experienciado as acções que lhes deram origem, o que nasce, em termos de sentido, com a leitura destes livros? A suprema importância está na sugestão de significados e não na sua fixação. A fixação de sentido, por exemplo, é plenamente cumprida por aquela ideia anterior da “linguagem visual” no seu uso mais estenográfico, prosaico, imediato. Em graus diferentes, vimos como essa linguagem pode ser empregue, ora para a fixação máxima (o trabalho de Duffy), uma grande fixação de sentido ainda que haja manobra para a transmissão de emotividade mínima (Oishinbo), e até mesmo a presença de metáforas visuais mas que ainda assim se empregam para a veiculação de um sentido unificado e inequívoco (Septembre en t’attendant). No caso destes trabalhos, e também, ainda que muito diferentemente, de Abstract Comics, o que se procura é a dissolução sempiterna da possibilidade de fixação. Provoca-se aquele movimento browniano das percepções e leitura sem nunca se cumprir uma linha recta. Não há quaisquer decisões quanto à sua última e definitiva interpretação; fica em aberto.
Ultrapassam-se, portanto, as regras, dogmas ou ortodoxias da “linguagem” para poder aceder a um outro nível de disposição dos elementos visuais, textuais e estruturais, um nível no qual o inarticulável da experiência humana (seja a sua origem física ou psicológica, da vigília ou da esfera do onírico, do desejo, do medo, do místico, do inominável) ganha uma forma possível de articulação.
Paul Wells, no seu livro Understanding Animation, apresenta esquematicamente uma maneira de diferenciar a animação “ortodoxa” da “experimental”, cujos termos, penso, são facilmente adaptáveis à banda desenhada (salvas as distâncias das determinações tencológicas, e o facto de que alguma da animação não recorre ao desenho, tal qual como alguma banda desenhada...). Wells faz as seguintes oposições: configuração vs. abstracção, continuidade específica vs. não-continuidade específica; forma narrativa vs. forma interpretativa; evolução do conteúdo vs. evolução da materialidade; unidade de estilo vs. estilos múltiplos; ausência do artista vs. presença do artista; dinâmica do diálogo vs. dinâmica da musicalidade.
Destas oposições, que devem ser, como sempre, entendidas como pólos de tensão ou espectros nos quais os vários trabalhos se podem colocar, e não enquanto territórios de exclusão mútua absoluta, talvez aquelas que menos adaptabilidade ofereçam à banda desenhada sejam as duas últimas: ausência/presença do artista e diálogo/musicalidade. A primeira dever-se-á ao facto de que mesmo na produção mais comercial e taylorizada da banda desenhada (envolvendo editor, escritor, desenhador, arte-finalista, colorista, letrista e outros), há uma largíssima distância dos métodos de produção de um filme de animação da mesma “categoria”, que envolve um número muito superior de pessoas, as quais não estabelecem relações directas entre si; e mesmo nesses casos de banda desenhada cada um dos passos é relativamente “visível”, isto é, “presente”. Nesse sentido, mesmo a banda desenhada mais comercial premite a presença do artista num grau maior do que no caso da animação (a qual atravessa sempre a “caixa negra” da tecnologia e a “ignorância” do seu “funcionário”, para empregar expressões de Villém Flusser). A segunda dever-se-á à ausência de som nas bandas desenhadas, mas pode-se traduzir essa ideia pela organização narrativa linear e causal (o “diálogo” coerente, claro, consequente) e pela livre associação de temas, formas, permitindo recuos e modos de leitura heterogéneos (a “musicalidade”).
As restantes, porém, são claras o suficiente na sua passagem ao nosso território. Se bem que nenhum destes livros apresente imagens abstractas (como em Abstract Comics), a configuração é problemática em todas elas: Deprez oference “interrupções” a negro, as figuras altamente estilizadas a que a gravura em madeira obriga, e a tipologização minimalista das personagens; Fortemps, com o seu costumeiro trabalho sobre acetato e progressiva destruição (riscando, apagando, borrando os materiais que havia empregue), torna tudo fluido, indefinido, indeciso até, talvez apenas uma imagem nos mostre um barco, e noutras adivinhamo-los como se por entre uma tempestade (vagas enormes, chuva, vento, ruído); Hasselt mostra personagens humanas construídas pela acumulação de manchas de tinta difusas, riscos que retiram a tinta de uma superfície, fazendo emergir paisagens naturais e urbanas, e interiores, de um fundo informe.
Em segundo lugar, nenhuma delas oferece uma clara narrativa, ou seja, há uma não-continuidade, uma procura pela fluida associação dos elementos distintivos, fazendo surgir na continuidade imposta pela leitura bases ilógicas de sentido, ligações oníricas. Heureux, Alright!, não só pela presença de um texto verbal escrito mas pela recorrência de “cenas” determinadas (um casal, espaços), apresenta uma ideia fugaz de uma “história”. Nesse sentido, há menos uma “forma narrativa” do que a capacidade de encontrar várias “formas interpretativas”, jamais resolvidas.
Depois, a questão da unidade ou da multiplicidade de estilo é curiosa, já que cada artista tem a sua própria unidade – Fortemps e o acetato riscado, Deprez e a xilogravura, Hasselt e as manchas – ainda que a questione no interior do livro – Hasselt multiplica e diferencia a composição das páginas, emprega várias opções cromáticas e estratégias de criação das imagens; Deprez apresenta uma escala que tanto compreende desenhos representativos como “pranchas” a negro, imagens auto-referenciais como outras que remetem a um mundo mais vasto para além do livro; Fortemps ora permite um grande grau de visibilidade do desenho-objecto ora torna-o totalmente opaco, remetendo para uma espécie de registo automático sem intervenção humana.
Todas estas razões e estruturações (ou destruição das estruturas clássicas e ortodoxas) levam-nos a compreender mais facilmente a última oposição, que dá menos importância ao conteúdo (i.e., a “história”, a “trama”, a “clareza”) do que à materialidade. Os materiais de cada artista não desaparecem, subsumidos na ideia que pretendem fazer emergir. O que ocorre quer na banda desenhada clássica (esquecemo-nos de que Tintin ou o Batman são desenhos a tinta sobre papel, seguindo-os nas suas aventuras) quer na banda desenhada “comunicativa” (aprendemos sobre cortar peixe cru em Oishinbo e não paramos para contemplar as formas criadas por Akira Hanasaki). Bem pelo contrário, somos levados a contemplar a beleza própria, material, inalianável, dos cortes sobre a madeira, do carvão e dos riscos sobre acetato, das manchas de tinta de, respectivamente, Deprez, Fortemps, Hasselt. Esta faceta é reforçada pela segunda citação que Deprez faz de Bakhtin no seu artigo: “O artista não é um especialista senão como um artesão, isto é, apenas o é em relação ao material”. E Deprez sublinha ainda mais ao falar das imagens de Fortemps a negro riscadas a branco como se fossem registos dos sons dos músicos, as estratificações das de Hasselt como se fossem fotogramas da animação, e das suas como exercício auto-referente dando a ver a própria gravação e impressão do livro.
A banda desenhada é, em si mesma, uma estrutura de alguma sofisticação. Na sua acepção mais recuada, a palavra arte relaciona-se com técnica, com um gesto: se podemos ver nos gestos fundamentais, primários, de riscar sobre a superfície ou de moldar um pedaço de lama as origens da pintura ou da escultura, aquele gesto mais original da banda desenhada – que passa necessariamente por um qualquer tipo de estruturação e de re-agregação de uma separação anterior (a linguagem verbal e a criação de imagens, pois é o gesto da banda desenhada só pode emergir depois da emergência dessa separação) – implica necessariamente uma distância que não seria possível na mais básica das expressões (a infantil, a primitiva, a enferma). O aceder à esfera da arte enquanto discursividade específica, social e informada intelectual e culturalmente é outro assunto, que não é conquistado de modo fácil. Podemos falar de “banda desenhada” em termos sociais em relação a muitas produções e criações (num seu sentido mais imediato: “alguém moldou algo”); podemos falar de uma “linguagem visual”, com Cohn, para falar da produção de discursos com objectivos nítidos, simples e de interpretação cartografável. Mas podemos encontrar, de quando em vez, em verdadeiros exercícios, obrigatoriamente tentativos, inimitáveis, suspensos, da expansão do território da banda desenhada numa esfera mais ampla e elevada. Estes três livros, porém, cumprindo aquilo que Bakhtin afirma na primeira citação de Deprez, atingem esse domínio: “Tem de se parar de se ser somente si-próprio para entrar na História”.