6 de setembro de 2009

Sandokan. Le Tigre de Malaisie. Mino Milani e Hugo Pratt (Casterman)

O livro que aqui nos traz não é um clássico, pela simples razão de ter sido até agora inédito: tratando-se de um projecto para o mítico suplemento de jornal infanto-juvenil italiano Corriere dei Piccoli (de longa vida: 1908 a 1995), acabou por não ver a luz do dia por várias ordens de razão, sendo a mais divulgada o facto do artista, Hugo Pratt, acabar por dedicar mais tempo ao seu Corto Maltese, que começava não só a ganhar forma como algum grau de êxito. Uma pequena introdução de Alfredo Castelli dá conta de toda a história editorial. A carreira de Pratt é por demais conhecida para fazer sequer aqui uma tentativa e redutora apresentação. O que importa salientar é que este projecto se deve incluir na fase de regresso à Itália/França, depois de um curso conturbado pelo mundo, destacando-se a Argentina, onde Pratt muito provavelmente aprendeu a inflectir a banda desenhada para territórios mais sérios, adultos e matizados após a aprendizagem com Oesterheld. Para mais, nota-se nas páginas deste livro o mesmo tipo de traço que vemos nas páginas mais recuadas de Corto (e não, por exemplo, da trapalhada ainda-Caniff de L’Ombra, também editado recentemente em francês pela Casterman).
Tudo se estrutura para tornar – se não o foi já cumprido, de facto – a figura de Pratt como um dos grandes nomes inamovíveis do cânone da banda desenhada internacional (ainda que haja um desconhecimento generalizado nos Estados Unidos, por exemplo), como se depreende da publicação de biografias, a bateria de entrevistas, depoimentos e memórias, as novas edições da série Corto a cores com introduções e dossiers informativos, e objectos de toda a sorte de diversificação e merchandising, verdadeiras peças de uma hagiografia em construção. Aliás, esta edição consiste num álbum de capa cartonada, ao comprido, com uma sobrecapa-envelope que o transforma no formato ideal para a mesma prateleira do resto da colecção (L’Ombre também seguia esta estratégia, ainda que o formato se coadunasse pela da colecção Écritures). Os completistas agradecem. Pelo contrário, não há uma correspondente produção de estudos críticos, de distanciamentos, levando antes a que existam, em sinal contrário ao do fanatismo, mais exercícios de descontrução e de degradamento que qualquer outra coisa. A apreciação deste autor e até da sua mais famosa série ganharia com um distanciamento que iluminasse as fórmulas narrativas, os princípios de machismo inerentes aos seus livros, a estranha diluição do poder de acção da personagem Corto, etc. As abordagens continuam a reflectir sobretudo se as coronhas das espingardas desenhadas correspondem de facto às verdadeiras.
Le Tigri di Mopracem, primeiro episódio do que seriam os onze livros sobre o corsário do Bornéu, La Tigre della Malesia, Sandokan, foi publicado, como soía no século XIX, em capítulos em série, a partir de 1883, num jornal chamado La Nuova Arena. É essa mesma história que aqui se adapta. Um dos pontos que julgo importantes nesta série de romances populares (e creio que existirá literatura sobre isso, apesar de a desconhecer) é o facto do herói não ser branco e sequer europeu, mas sim do número dos “povos exóticos” com os que os heróis usualmente se cruzavam (os de Haggard, Stevenson, Burroughs, Verne, Rohmer, e outros felizmente esquecidos, e até mesmo o Gulliver de Swift), fórmula que, na banda desenhada, continuará em personagens quer originais como o Fantasma, de Falk, quer adaptadas, Tarzan. Mais, não só Sandokan combate o colonialismo britânico (isto é, da parte dos leitores italianos e europeus, o “nosso lado”) como ainda se apaixona por uma mulher branca, Marianna (invertendo as fórmulas mais típicas, de herói branco + amante nativa-exótica; mesmo que isso não implicasse casamento, sendo esse reservado para uma puro-sangue, claro; e a relação talvez se deva à parte “italiana”, i.e., passional, latina, do sangue de Marianna). Algum peso político estes elementos terão numa apreciação contemporânea positiva de Salgari (e estas questões não são de somenos quando ainda nos nossos dias o volcabulário de “rebelde”, “frente de libertação”, “terrorista”, “auto-determinação”, “neo-colonialismo”, “ordem mundial”, “segurança” são menos palavras objectivas do que programas políticos). Alguns estudos apontam para a ideia de que muito possivelmente a figura de Sandokan se baseia em pessoas e acontecimentos reais, mas ainda que isso seja importante, em termos estéticos é essa personagem ter sobrevivido para além da sua realidade literária, ganhando aquele tipo de sobre-vida que atingiram personagens como Sherlock Holmes, Drácula ou Lord Greystoke.
Esta dimensão política não é, naturalmente, abordada nos textos de encómio em torno desta edição, se bem que se destaque o gesto de Pratt de representar Sandokan não como um indiano (recorrente desde as primeiras versões de adaptação à imagem do romance, inclusive a famosa série televisiva), mas como um malaio. Não obstante o comentário anterior sobre coronhas, Pratt procurava instalar nestes pormenores a sua diferenciação por uma outra ideia de “verdade”.
Quanto à escrita, estamos em crer que a adaptação procure ser o mais fiel possível a esse espírito de uma “verdade” tanto para com a realidade histórica como para o valor literário da obra original (indica-se, porém, nos materiais complementares, que a adaptação parte de uma versão teatral). Todavia, o que fica em termos narrativos são alterações de perfil e comportamentos psicológicos demasiado abruptos, sem as esperadas conturbações humanas: Marianne apaixona-se por Sandokan “porque sim”, o próprio Sandokan surge como alguém sem grande gradação de personalidade, mas frio e calculista (tal como Corto, a meu ver...), e os restantes personagens surgem ora como fiéis embevecidos (os piratas/corsários/vingadores) ora como palermas sobranceiros (os ingleses/colonialistas). E as peripécias são como que um fio contínuo, sem curvas e folgas. Perfeito, portanto, para o Corriere dei Piccoli, mas sem que sobreviva fora dele... Não estamos, então, perante uma “pérola escondida”, mas um pequeno projecto sem grandes diferenças das características que comporiam os primeiros Cortos. Aliás, na introdução de Castelli, faz-se uma breve comparação gráfica destas personagens com as dessa outra série mais conhecida, encontrando-se os traços coincidentes entre, por exemplo, o companheiro português do Tigre da Malásia, Yanez (ou “Eanes”) e Corto/Pratt. Contudo, é também nos enquadramentos e focalizações, no estranho equilíbrio de alta estilização e não-manutenção dos traços das personagens (quer dizer, sempre que são desenhadas parece perderem uma série de características que se esperariam perenes no peso físico realista, mas como existem outros traços de fácil identificação – penteados, jóias, chapéus, suíças, etc. – reconhecemo-las), e numa meia-dúzia de outras estratégias visuais que encontramos pontos em comum. Num outro artigo (“Palcos de (des)concertos de guerra”, in Vértice no. 120, 2004), havíamos explorado o que se apelidou de “elipses dissonantes”, i.e., em relação ao modo como o artista geria o posicionamento dos seus personagens no espaço de representação e suas relações com o universo referencial em que se integravam, que nem sempre correspondiam às expectativas da gravidade do realismo. Mas se em relação a Ernie Pike (escrito por Oesterheld, não obstante a ausência do seu nome durante anos nas edições francesas) essa integração estava em consonância com a filosofia moral das histórias, estabelencendo uma impossibilidade de hierarquização e heroicização entre/das personagens, a mesma união perfeita de forma e conteúdo não ocorre em Sandokan. Poderíamos dizer que são meros erros de raccord, se estivéssemos demasiado enamorados com a aproximação da banda desenhada e do cinema, mas penso que se trata de um outro problema: Pratt trata cada vinheta não enquanto unidade de um fluxo contínuo, não enquanto imagens em desiquilíbrio que se vão constituindo num texto coerente, mas como ilustrações singulares, e quanto mais dramáticas e espectacularizadas elas forem, melhor. Se bem que Sandokan tenha sido preparado como um trabalho de banda desenhada infanto-juvenil, para um suplemento num jornal e possivelmente para ser reproduzido num tamanho drasticamente inferior ao que conhece neste livro, não penso que se poderá dizer que este é um trabalho “de um mestre do romance gráfico no apogeu da sua arte”, como publicita a contracapa. Aliás, e para mais, o tamanho imenso em que é publicado – pergunto-me qual será a razão com a arte original – impede que as imagens apareçam de um modo mais condensado e legível, e acabamos por ver em demasia o gesto das mãos de Pratt, quando não era essa a regra da altura.
Tentarei ser mais claro. Pratt tem alguns trabalhos de alto contraste, de claro-escuro, que são realmente magníficos, e ele foi sem dúvida um grande aguarelista e cultor do desenho a pincel e tinta-da-china. Hoje em dia, muitos são os autores que cultivam um desenho a que se muitas vezes se chama “caligráfico”, como Sfar ou Gipi (cuja projecção em Ma Vie Mal Dessinée fantasia ser o braço direito do pirata malaio, Tremal-Naik, que não surge nos primeiros episódios da série de Salgari), por exemplo, isto é, em que o acto do desenho se assemelha ao da escrita, e a gestualidade idiossincrática da assinatura se imiscui na própria fabricação gráfica. Mas isso deve-se não só a toda uma série de “evoluções” de percepção e permissibilidades estéticas como a técnicas de reprodução. Pratt trabalhava num tempo em que os desenhos eram feitos de um modo tal que, quando diminuídos para reprodução e publicação, se tornavam mais densos e ajustados. Logo, esta publicação está realmente mais próxima da reprodução de um álbum com a arte original do que uma publicação com o material como deveria ter sido pensado para publicação, no seio da indústria para o quel estava previsto. Bizantinices, decerto, mas que alteram o modo de fruição de um livro desta natureza.
Seja qual for o resultado da fruição da obra, aqui a tendes.

Nota: agradecimentos à Casterman, pela oferta do livro.

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