25 de junho de 2009

The Life of Christ in woodcuts. James Reid; e Vertigo. Lynd Ward (Dover)


Podemos afirmar que a história da banda desenhada, na sua máxima amplitude, ainda está por trilhar completamente. Existem, sem quaisquer dúvidas, muitos sendeiros parciais, a cartografia dos principais marcos, o sulcar das direcções a seguir e pesquisar. Mas em termos de síntese e de fluidez (quer dizer, ainda nos faz falta um The Story of Comics, à la Gombrich), existem ainda cantos por perscrutar, nichos por trazer à luz, blocos por considerar. A história, porém, faz-se no presente.
No seu livro sobre esta classe de livros – novelas sem palavras e usualmente de xilogravura, cuja maior concentração se deu na década de 1930 -, David A Beronä indicou numa pequena nota como não incluiria no seu estudo alguns dos livros que lhe poderiam ser coligidos, citando os vários livros em torno da vida do Cristo, e citando este título de Reid, originalmente publicado em 1930. A opção, parece-nos, deve-se a duas razões: em primeiro lugar, para se garantir uma maior reflexão sobre os títulos abordados, não se procurando uma dispersão enciclopédica, o autor centra-se em obras de invenção “original”; em segundo lugar, dado que a inventabilidade associada à vida de Jesus se encontra profundamente limitada, e ocorre no interior de uma história sobejamente conhecida na nossa cultura e civilização, apenas se procurariam explicações meramente estilísticas, que não garantiriam um aumento da qualidade média dos trabalhos discutidos. O acesso agora permitido pelas edições Dover - sobejamente conhecida pela garantia e acessibilidade de obras há muito esgotadas, antigas ou de difícil manejo, desde as gravuras tardo-medievais de Durer aos romans-collage de Ernst, dos desenhos de um batalhão de referências às ilustrações de grande referência – a este livro (e do Vertigo de Ward) permite-nos compreender melhor, e até aceitar, a precisão da exclusão de Beronä. De facto, The Life of Christ in woodcuts apresenta-se-nos como uma obra pouco notável.
Dividido em quatro capítulos de tamanho similar (“The Infant”, “The Boy”, “The Son of Man” e “The Messiah”), James Reid apresenta os episódios mais famosos e esquemáticos da vida de Jesus: poucos em maior pormenor, como a matança dos inocentes, sendo a sua maioria apresentados sumariamente, como os milagres dos anos da sua pregação pública. A juventude (o capítulo intitulado “The Boy”) apenas apresenta cinco imagens, com grandes saltos temporais entre si, uma vez que é uma fase da vida de Cristo sobre o qual nem há escritos nos Evangelhos nem se desenvolveriam mitos ou lendas suficientemente fortes para vir a fazer parte do imaginário com ele relacionados. As duas últimas imagens desse capítulo mostram um Jesus observando um grupo de jovens casais caminhando, e ele ficando para trás, cabisbaixo, como se soubesse ter de abandonar essa vida mundana e isso representasse algum peso e, quem sabe, arrependimento ou mesmo desejo de renúncia. É, portanto, o único momento em que Reid parece contribuir com uma ideia ou interpretação sua, mas que acaba por não se desenvolver e cuja força, assim, não pode ser avaliada. Não estamos perante uma ficção forte em torno desta personagem como em King Jesus/Rei Jesus, de Robert Graves, nem num anedotário poderoso como 2001 Après Jesus Christ, de Jean-Luc Coudray com Moebius. Não há espaço para isso.
Um outro ponto problemático é o da representação de Judas: a de um homem de tez absolutamente negra, com orelhas e dedos pontiagudos, dentes aguçados e expressões assaz melodramáticas, idênticas às do demónio que havia tentado o Cristo, umas páginas atrás (em contraste com o rosto carregado do Cristo maduro ou sem expressão dos discípulos, por estarem envoltos em grandes sombras, da barba, cabelos, etc.). Deve mais a Nosferatu do que à representação de um negro, hipótese que não é de descartar completamente, se bem que fosse necessária uma avaliação histórica mais concreta e exacta. O que se retira dessa representação, para além das óbvias conotações racistas, é a de que Judas era intrinsecamente mau... Nada de surpresa aqui, segue-se o dogma, e espera-se que venha a ser roído eternamente pelas presas do Satanás de Dante.
Para além do paupérrimo contributo de Reid ao discurso teológico possível, à invenção romanciada da vida de Jesus, estilisticamente estamos perante uma obra com pouca matéria de agradibilidade. Os corpos são demasiado alongados, e o expressionismo parece mais caricato do que intenso. Alguns dos filmes bíblicos de Cecil B. DeMiller já haviam sido feitos, mas aqui ganham uma qualidade menos heróica do que de sobras de papelão.
Não colocamos em dúvida a pertinência do estudo deste livro no quadro dos livros ilustrados em xilogravura do seu tempo (terreno ainda por resgatar nas histórias amplas da banda desenhada e da ilustração), e até mesmo dos livros em torno da figura de Jesus, cuja história iconográfica é reveladora das transformações mentais de cada época, mas por si só, The Life of Christ in woodcuts de Reid não sobrevive enquanto grande obra.
Aliás, a sua apreciação “pela negativa” leva a um reequilíbrio curioso, ou melhor, a uma asserção cada vez mais forte “pela positiva” de outro autor. Tal como estudo da vastíssima produção de ilustração dita “vitoriana” nos obriga a uma travessia por um cerrado mato de personagens sem expressão, situações sem densidade, meros décors de correcção social, e pura e simplesmente desenhos sem qualquer traço de verdadeira vida, mas ao mesmo tempo nos permite aperceber as razões pelas quais os nomes de Gustave Doré, Richard Doyle, John Gilbert, Harrison Weir, entre outros, brilham como excepções, também a leitura de livros como os de Reid e de Ward nos fazem recalibrar o peso, cada vez mais exacto e inevitável, de Masereel.
O problema de Lynd Ward não é tanto a falta de expressividade do rosto das personagens (varrendo o “expressionismo”, portanto, para apenas a angulosidade dos ambientes, o recurso às tramas de linhas paralelas para a dinamização das acções e o melodrama das situações), como ocorre nas dezenas de negligenciáveis ilustradores vitorianos, ou até mesmo de Reid. É antes da a expressão errada, ou errónea. O melodrama, a hipérbole, o bathos, são as características – apetece quase dizer “americanismos”, se no permitirem este abuso generalista e preconceituoso, que apenas dá conta das produções culturais dadas à espectacularidade, e não daquelas que partem de uma pesquisa mais pessoal dos seus autores. Ward encontra eco numa espécie de “espírito médio”. A esmagadora maioria dos rostos das personagens que apresenta jamais mostra os olhos, ora por se apresentar numa posição que não apresenta o rosto aos leitores, ora por ocultá-los em densas sombras negras. Quando o faz, como ao banqueiro assustado, o edifício da expressão rui, pois Ward não consegue transmitir pelos seus traços o modo de comportamento mais humano previsto nos olhos (e na sua representação).
Vertigo (de 1937) tem as suas forças, naturalmente. O texto introdutório de Beronä sublinha-os: a opção pela construção narrativa separada entre as três personagens, obrigando o leitor a uma re-construção dos eventos e das relações; o tamanho da obra que permite explorar várias camadas narrativas e desenvolvimentos das acções; o posicionamento político de esquerda que atravessa a “moral” da história; o desencantamento social com a modernidade e a apresentação de um final quase desesperado (se não mesmo de desistência); a “abertura” das gravuras às generosas margens brancas da página; a fina resolução do trabalho das tramas e do grão da imagem, mostrando o domínio técnico de Ward da xilogravura; a integração do texto escrito no universo diegético para concorrer e apoiar a história; a oscilação entre abandonar as personagens no centro das paisagens, urbanas ou não, demonstrando o seu fraco poder, ou aproximando-nos delas para dar a ver pormenores significativos. No entanto, muitos destes aspectos já haviam sido explorados em datas anteriores por outros autores, noutras paragens às quais seguramente Ward teria acesso, na sua aprendizagem académica. A relação entre a xilogravura e a escola expressionista (e, depois, a do Novo Objectivismo), de sinal político de esquerda e todos os valores sociais e económicos que ela representa, eram já apanágio de todo um grupo de expressão alemã que contava com Kathe Kollowitz, Kirchner ou Emil Nolde, por exemplo (a própria Dover tem um livro dedicado a esse “grupo”; e é directamente aliado à mesma veia que encontramos Frans Masereel). A sua aplicação à caricatura narrativa, ao cartoon, à banda desenhada e até mesmo ao livro de imagens, ainda que mais temático do que narrativo, era também algo detectável na Europa, pelas mãos dos autores da Simplicissimus ou da L’Assiete au Beurre (nos Estados Unidos, a publicação correspondente era The Masses). Quando falamos de livros, falamos de “álbuns de caricaturas”, ou de desenhos, como os de George Grosz, Das Gesicht der herrschenden Klasse (de 1921) e Abrechnung folgt! (de 1923), podendo mesmo recuar-se a Bordalo.
Ou seja, Ward estava na esteira de uma já longa tradição, mas apura-a enquanto forma narrativa (e modo de publicação), tornando-a mais clara, mais espectacular, quem sabe mais eficiente perante o imaginário da sua época, paulatinamente a passar a ser criado quase em exclusivo pela indústria do cinema. Beronä quer reavaliar a história da banda desenhada, considerando Ward (e Vertigo em particular) como percursor daquilo que viria a ser chamado nos Estados Unidos por “graphic novel”, formato o qual – nesse país e de acordo somente com os princípios com que lá se pautam – apenas surgiria mais tarde. Será por essa razão que a acapa deste livro é refeita para que o título e o nome do autor figurem integrados de um modo dinâmico nas estruturas dos edifícios? De certa forma, é uma recuperação e aplicação retroactiva de uma conhecida fórmula de Will Eisner (o suposto “inventor” da graphic novel, suposição sobre a qual já existe uma larga história que corrige essa ideia), para tornar ainda mais clara essa inscrição no tecido histórico. Todavia, parece-nos que é maior o esforço quanto menor a verve interna da obra... Ward não é desprovido de interesse, bem pelo contrário: deve desde já fazer parte de uma consideração maior sobre este território. Mas é curioso como a cada sua leitura se torna mais forte a presença de Masereel, incólume e crescendo.
Nota: o vídeo é de má qualidade, mas ainda demorarei a aprender a controlá-lo. Se o fim vos parecer abrupto, é porque o é: mais uma vez a interrupção deve-se à Miki.

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