3 de novembro de 2008

Drawing words and writing pictures. Jessica Abel e Matt Madden (First Second)

Menos do que uma leitura, que compreende o acompanhamento sério de todo um texto, procurando através da reflexão quais os pontos de diálogo mais pertinentes, deixo aqui apenas uma nota de impressões rápidas suscitadas pela consulta breve e ametódica deste verdadeiramente exaustivo manual de banda desenhada, do casal de autores e professores Jessica Abel e Matt Madden.
Como o próprio jogo do título indica, Drawing words and writing pictures aponta para a naturez biface e implicada da banda desenhada, abordando várias técnicas ora da “escrita” ora do “desenho” da banda desenhada, ainda que não se ensinem aqui técnicas de escrita nem de desenho estrita e propriamente ditas: trata-se de abordar os passos e aspectos intrinsicamente empregues na linguagem da banda desenhada: as associações e transições entre vinhetas (Groensteen falaria de articulações), a estruturação de uma página e gestão dos espaços, inclusive os intervinhetais, técnicas de uso dos lápis, canetas e pincéis, e as suas várias tipologias e resultados, tipos de papel, de reprodução, métodos de correcção das imagens, de design, o recurso a figuras, a fotografia ou outro material de referência, emprego das letras, exploração dos arcos narrativos, do desenvolvimento de personagens, experimentação dos cenários, das focalizações, dos maneirismos vários, da distribuição das personagens dinamicamente numa vinheta, das expressões faciais e corpóreas, e muitos outros conselhos paralelos, desde a identificação de autores de referência fundamental aos fanzines de 24 horas, e até mesmo exercícios que previnam dores musculares de horas de trabalho...
Olhando para o subtítulo, “um curso definitivo do conceito a uma banda desenhada em 15 lições”, pode parecer ambicioso e megalómano, mas a verdade é que nas quase 300 páginas oblongas deste livro, Abel e Madden conseguem de facto montar um curso completo de como fazer uma banda desenhada, sem consessões a princípios formulaicos (como em livros tais como Desenhar superheróinas à maneira Marvel, por exemplo...), sem descurar aspectos teóricos, históricos e terminológicos fundamentais e práticos, e sendo mesmo exaustivos, metodologica e brevemente, nas matérias a abordar nesta senda. Seguramente que existirão muitos outros aspectos por explorar, mas serão aspectos que caem fora do âmbito excluivo da banda desenhada, para serem partilháveis noutras áreas (por exemplo, a capacidade de representação e expressão dos desenhos, ou a causalidade dos eventos descritos na história). Existem muitos outros livros importantes da pedagogia da banda desenhada, nomeadamente os de Will Eisner, de David Chelsea ou até mesmo, em mais do uma instância, os de Scott McCloud (sobretudo Making Comics, igualmente excelente), os quais vão muito além de conselhos práticos e relativamente banais encontrados no exército de manuais de banda desenhada existentes no mercado, criados ora por autores medíocres ora por burocratas da pedagogia.
Sendo um livro-curso, há muitos TPCs, exercícios, e ideias... A página que reproduzimos aqui mostra algumas alternativas em encenar um breve diálogo entre duas personagens, ora de modos mais clássicos, ora mais dinâmicos, explicando-se os efeitos particulares a cada uma das opções. Todos os exemplos destes exercícios são criados pelos próprios autores, sendo eventualmente possível identificar os desenhos de Matt Madden (quase todos os pastiches serão dele, relembrando o seu 99 ways to tell a story...) e os de Jessica Abel. Todavia, não descuram, ao longo de toda a obra, exemplos concretos e bem seleccionados provindo de uma ampla escolha de autores e obras, desde Mutt & Jeff a Big Questions, de Wash Tubbs a American Born Chinese, Mignola a Baudoin, de Tezuka a Paul Pope. Naturalmente, muitos dos exemplos são retirados das obras dos próprios autores, já que não há melhor partilha de saberes do que beber da experiência própria. Esta mistura entre modelos experimentados pelos próprios autores e o confronto com excelentes exemplos quer de autores consagrados quer com talentos novos torna o volume, ao mesmo tempo, num exercício de equilíbrio e atenção muito amplo e inteligente: cria-se a ideia de uma verdadeira comunidade de artistas que, na diversidade máxima, contribuem para a emergência de um território com uma história e um valor particulares.
Como disse, existem muitas notas, conselhos e factos espalhados ao longo do livro, como por exemplo uma breve nota histórica sobre a história da impressão e o uso do azul não-fotográfico, ou uma explanação desse maravilhoso instrumento que é o Ames Lettering Guide. Importante é também o modo pedagógico com que alertam para erros comuns, exemplificando-o, de modo a criar uma forma clara de se entender a razão de que existem métodos mais acertados que outros. É neste sentido que de facto Abel e Madden conseguem tornar este livro numa obra exaustiva, até no sentido físico desta palavra: criar uma banda desenhada, pelo menos algo que desejo um mínimo valor estético ou parâmetro de qualidade (independentemente do género, estilo ou contexto criativo) requer algum esforço.
Uma das características fortes deste livro é não recorrer somente à própria banda desenhada para veicular os seus ensinamentos (como ocorre em Eisner, McCloud, Chelsea, etc.). não é que esse recurso seja necessariamente mau ou redutor, mas leva a uma estratégia afunilada. O emprego de textos explicativos, “bullet points”, notas e TPCs apenas garante uma maior amplitude na matéria dada. Não obstante, e paralela ou entrosadamente, existem duas personagens que vão ilustrando os exercícios ou exemplificando as acções: Clay, uma espécie de Tintin negro, autor de mini-comics, e Junko, jovem japonesa fã de mangá kawaii. Existem outras personagens também que são utilizadas noutros momentos. Não existindo uma história contínua que as possa transformar em personagens tout court, são no entanto suficientemente presentes para se tornarem um curiosa forma de guiar os leitores-alunos deste livro de uma forma dinâmica e interactiva (recordando quer Clique e Flash, de José Ruy, quer os Ahlalaaas no cursinho de Derib, ambos na revista Tintin dos anos 80).
Apesar de dirigido sobretudo a estudantes de banda desenhada (sem limitações etárias, culturais ou outras), cobrindo tantas bases, este é um livro a ler e reler quer por aspirantes a autores, quer por professores da área, quer ainda por teóricos e críticos que desejem, como nós, apercebermo-nos de todos os pormenores de bastidor que concorrem para o aparecimento de uma obra de banda desenhada. E há que fazer os trabalhos de casa.
Nota: o livro consultado pertence à Biblioteca da Escola Superior Artística do Porto, pólo de Guimarães.

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