5 de abril de 2008

This book contains language. Comics as Literature. Rocco Versaci (Continuum)

Numa importante obra da Filosofia da Linguagem, Metaphors we live by, os seus autores, George Lakoff e Mark Johnson, demonstram quão presentes estão as metáforas na nossa linguagem, muito para além daquilo a que normalmente se dá o nome de “discurso figurativo”. Quando falamos, empregamos conceitos e aspectos de um domínio (a “fonte”) para explicitar um outro (o “alvo”). Os autores dão inúmeros exemplos da língua inglesa, mas muitos deles são literalmente os mesmos em português, e muitos outros seriam descobertos na nossa língua, ou noutras. Uma das metáforas sistemáticas (.i.e., que fazem sistema, logo, mais significativas e estruturais) que Lakoff e Johnson estudam, na verdade a primeira apresentada e debatida é a de “Discussão é Guerra”, presente em muitas expressões em torno deste tema. Quando discutimos, quando se trocam argumentos, dizemos que “as suas posições são indefensáveis”, “as críticas dela acertaram no alvo” ou “ele derrubou todos os meus argumentos” (op. cit., pg. 4).
E é esta a metáfora ubíqua na obra de Rocco Versaci, This Book Contains Graphic Language: Comics As Literature. Nos cinco capítulos centrais deste livro (há ainda uma longa introdução), a banda desenhada é colocada “versus” uma série de categoriais mais ou menos estáveis no interior da literatura, a saber, Memórias, Memórias do Holocausto (e Fotografia do Holocausto), Reportagem, Filmes de Guerra e “Verdadeira” Literatura. Deverá ser óbvio que, colocadas estas categorias tal qual, surgirá de imediato a questão de como é que estas categorias se relacionam umas com as outras, como é que elas se relacionam com esse animal elusivo que é a Literatura, e até mesmo se esta categorização é pertinente à partida. Porém, Versaci dedica algum tempo a apresentar razões inteligentes e convincentes em relação a cada uma delas, delineando-as de um modo claro (ainda que possa permitir abertura) e sublinhando-lhes os aspectos que são mais importantes para a sua argumentação principal – afinal de contas, o autor centra-se no aspecto narrativo da banda desenhada, ou melhor, na natureza narrativa da banda desenhada narrativa -, evidenciando as características em comum ou opostas em relação à banda desenhada (outro animal elusivo, sem dúvida). Devo confessar que, em princípio, não me parece que esta estratégia de argumentação seja a melhor, na qual algo se destaca para servir de arma de arremesso ou de comparação antagonista com outro aspecto qualquer, como se estivéssemos de facto perante um combate, ou seja, na expectativa de termos um vencedor no final. Uma coisa é esclarecer uma determinada qualidade, demonstrando como um conjunto de instrumentos analíticos, desenvolvidos numa área específica de estudo e de investigação, de uma disciplina, pode ser aplicado a uma outra área, contígua ou remota, despertando assim a esperança de que desse confronto possa surgir algo pertinente e frutífero. Penso que o livro de Ann Miller, Reading Bande Dessinée, é um excelente dessa estratégia específica. Outra é simplesmente colocar exemplos de um campo versus os de outro.
Não obstante, não é isso o que Versaci faz. Mais, se desejarmos desenvolver a metáfora da “guerra”, e se nos recordarmos da ideia de Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, como um combate entre dois combatentes em que nenhum vence ou é vencido mas antes “elevam-se um ao outro à auto-afirmação das suas essências”, estaremos mais próximos daquilo que o livro de Versaci não só tenta como cumpre.
Depois de um primeiro capítulo introdutório às vezes demasiado pessoal, e muitas vezes entregando-se à indulgência, uma vez mais de que “a banda desenhada já não é só para crianças” ou que “há muitos exemplos de boa banda desenhada”, etc., mas que se compreende necessário à abertura do campo, são os seguintes estruturados de acordo com as tais “categorias”.
O segundo capítulo dedica-se não somente à questão da autobiografia, mas a uma categoria literária ligeiramente mais abrangente a que se dá o nome de “Memórias”. Versaci aqui debate algumas das obras de Chester Brown, Debbie Dreschler, Phoebe Gloeckner, Craig Thompson, Paul Hornschemeier, Al Davison, Dan Clowes, Catherine Doherty, Lynda Barry e, claro, Harvey Pekar e os seus colaboradores. Possivelmente o número elevado de exemplos impede Versaci de fazer uma verdadeira leitura pausada e pormenorizada destas obras, mas ele próprio revela não desejar tanto a exaustão como abrir um campo de discussão. O problema está no facto de que este não é propriamente um novo campo de discussão, e surge antes mais como uma espécie de balanço dos temas pertinentes de discutir neste campo – a representação/mediação do corpo-protagonista, a estruturação das memórias através de dispositivos ficcionais, a questão de “verdade”, etc. – em relação aos mesmos na banda desenhada. Esse balanço é bem-vindo, sem dúvida, e coloca este volume num mesmo patamar que os livros de Ann Miller ou de Bart Beaty (Unpopular Culture), todos eles neste momento excelentes livros de introdução às problemáticas contemporâneas do estudo da banda desenhada, mas não o torna um espaço de inauguração.
O terceiro capítulo especifica o campo anterior, afunilando as memórias àquelas relacionadas com o Holocausto judeu da segunda Grande Guerra (campo imenso na literatura, mas também noutros modos de expressão). Será evidente que a obra que se encontra no centro deste capítulo seja o Maus de Art Spiegelman (obra que já suscitou muitos estudos académicos), se bem que Versaci poderia eventualmente ter tornando este capítulo mais consolidado e alerta se houvesse alargado a sua atenção analítica a outras obras com a mesma temática (mesmo que as cite, fá-lo transversalmente). Acima de tudo, Versaci preocupa-se neste capítulo com o problema da mediação e a representação do “eu social” (na qual se inclui o corpo, naturalmente). Na conformidade da leitura de Susan Sontag, Versaci demonstra como Spiegelman evita cair nos perigos da suposta desejada objectividade no seu relato/retrato da experiência do pai na Shoah, incorporando os caveats de um modo implicado da sua obra, revelando como a narratividade – “só aquilo que narra nos faz compreender”, citando-se Sontag - do desenho, ou com maior rigor, da banda desenhada, ultrapassa as armadilhas prometidas pela fotografia. Há aqui um território por explorar, aflorado somente pelo autor.
Segue-se a relação da banda desenhada com o conceito de reportagem (de certa forma, um grau, não uma natureza, ligeiramente diferente da categoria anterior), explorando-se a obra de Joe Sacco, Ted Rall, Dave Collier e Sue Coe. Para ser mais específico, Versaci advoga que estes autores são como que uma nova geração daquilo que nos Estados Unidos se conhece por “New Journalism” (arregimentando-se neste campo Thomas Wolfe e Truman Capote como os seus “pais”, e Michael Herr, um jornalista na Guerra do Vietname, o famoso Hunter S. Thompson, ente outros). Versaci demonstra como aquilo que havia surgido como uma reacção moderna e saudável em relação a uma falsa objectividade do jornalismo (que mais não era que “a voz do dono” do poder da sua época, curiosamente um tema muito contemporâneo nos nossos dias após decisões de Alberto João Jardim), como a entrega a um consciente subjectivismo e até mesmo uma certa abertura e inclusão de uma verdade pessoal exacerbada levou a uma mais consolidada atenção democrática e humana, mas que seria mais tarde reabsorvido pelos “círculo do poder”, perdendo a sua força e até mesmo acabando por se reduzir a pequenos “tiques técnicos” em qualquer jornalista (Portugal, em particular, peca por excesso neste defeito). Porém, é de um território surpreendente, a banda desenhada, que surgem posições vincadas e destacadas da massa opinativa geral: Sacco com a sua posição dita pró-palestiniana, Rall contra a administração Bush, Coe contra a indústria da carne... Mas mais uma vez, seria interessante ter alargado o campo da discussão, integrando-se precisamente os problemas e as críticas que Sacco atravessou, ou se soubesse ter integrado outras posições radicais no campo da banda desenhada, como as do grupo da World War III ou de Philippe Squarzoni, se o conhecesse. Mais uma vez, fica como que a nota de intenções de “questões a explorar”.
Finalmente, o quinto capítulo é aquele que, se me parece ser o mais bem conseguido, e verdadeiramente “novo” no seu tratamento, também é aquele que revela os mesmos problemas aventados atrás, e que torna o resultado desta leitura naquilo a que de dá o nome em inglês de “mixed feelings”. Basicamente, Versaci opõe a banda desenhada norte-americana dos anos 40 e 50, de guerra, aos filmes (dos estúdios de Hollywood, o que é praticamente dizer todo o cinema norte-americano, já que não existia ainda a cultura dos independentes; mavericks, sim, independente não) da mesma época e da mesma temática. Se digo “basicamente”, é porque na verdade Versaci está a fazer uma escolha muito ajuizada, ainda que desequilibrada: centra-se sobretudo nas histórias que Harvey Kurtzman criou ou produziu para as revistas Two-Fisted Tales e Frontline Combat (por vezes, Kurtzman escrevia as histórias e apresentava uma mise-en-page mas não era ele quem as desenhava), a maioria delas sobre a Guerra da Coreia (então contemporânea), mas também versando outros conflitos bélicos. Versaci demonstra como a indústria cinematográfica norte-americana trabalhava em consonância com as políticas da Secretaria de Estado, não revelando quaisquer inclinações intervencionistas enquanto a América no geral não o era, e envolvendo-se na demonização do inimigo (diferentemente, mas quer dos alemães quer dos japoneses) depois de declarar guerra ao Eixo. Estabelecendo-se um diálogo directo entre o poder militar e político e os estúdios de cinema, não se poderia esperar que não houvesse senão um respeito para com todo um conjunto de regras inerentes a um processo que implicava, primeiro, uma concertação do direito internacional (o filme de Charles Chalin, O Grande Ditador, de 1940, antes da intervenção, levantou uma celeuma muito grave), depois as políticas de propaganda do Estado. Os comics, uma vez que estavam “abaixo do radar crítico” (Versaci emprega esta expressão dizendo que empresta o jargão militar, mas não deve ignorar que foi Spiegelman quem primeiro a aplicou à banda desenhada), escapavam a essa necessidade de controlo directo da parte da Administração da altura, o que permitiu criações bem mais intervencionistas (o Capitão América de Kirby e Simon a socar Hitler na sua primeiríssima capa, a 1941) e, mais tarde, a outras que revelavam o lado humano e trágico do inimigo (Kurtzman em relação aos norte-coreanos, aos alemães, aos japoneses, etc.). Versaci centra-se muito nestas criações “positivas” e de facto politicamente avançadas e até mesmo arriscadas, mas acaba por preterir em demasia a outra banda desenhada de guerra que era produzida na mesma altura, muitas vezes atroz na sua representação (V. Chris Murray, “Popaganda: Superhero Comics and Propaganda”, in Comics Culture. Analytical and Theoretical Approaches to Comics, Magnussen e Christiansen, eds., que Versaci não cita, apesar da sua boa bibliografia; e, se me permitem, o meu “Palcos de (des)concerto de guerra” in Vértice no. 120). Aliás, chega a mostrar exemplos, mas sem se referir aos seus autores (desenhadores ou escritores): mesmo que ache esse trabalho reprovável do ponto de vista moral ou político, não se tratam de trabalhos anónimos... No cômputo geral, o capítulo faz emergir uma ideia muito forte, significativa e que mereceria uma maior publicidade junto aos teóricos da cultura que desconhecem as forças existentes em obras concretas da banda desenhada, como as de Kurtzman, mas há outros aspectos no texto de Versaci que tornam, mais uma vez, a discussão “incompleta”.
Finalmente, o último capítulo, cujos dois últimos parágrafos servem de coda a toda a sua argumentação, é dedicado às adaptações em banda desenhada dos ditos clássicos da literatura. Naturalmente que parte deste capítulo é dedicado às várias versões do modelo estreado com os Classic Illustrated da Elliot (em Portugal foram distribuídos alguns dos volumes da Marvel Illustrated, entre os quais o Moby Dick de Bill Sienkiewicz), sendo esse quase o parâmetro “de ouro” das adaptações dos “clássicos” em banda desenhada no eixo britânico-americano, mas Versaci torna também a discussão mais interessante – que não pode ser surpreendente, mas apenas pertinente e alertando a uma atitude ampla para com a banda desenhada – ao discutir as várias adaptações-pastiche de Robert Sikoryak, espalhadas nas mais diversas publicações. O Sandman de Gaiman e tal. e a League of Extraordinary Gentlemen de Moore e O’Neill faz parte também dos blocos deste estudo comparativista, assim como outras várias adaptações das peças de Shakespeare. Versaci sublinha como a visualidade da banda desenhada traz uma dimensão de mais-valia em relação ora à encenação teatral ora à linguagem escrita, não apontando para qualquer tipo de superioridade que pudesse existir na instituição de uma hierarquia entre artes incomparáveis (o que seria ridículo), mas antes sublinhando as valências da especificidade da arte que discute, como que demonstrando não ficar a dever nada em relação às estratégias acessíveis aos outros modos.
O volume tem ainda alguns problemas de revisão textual e de impressão (uma página, a 148, que parece não estar relacionada com nenhuma outra) mas nada que impeça a leitura que se vai consolidando a posteriori; simplesmente traz alguns “soluços” à mesma. A inclusão de imagens é feita com um critério sólido, que não só terá a ver com o mero embelezamento das páginas, mas constituindo-se como os exempla concretos do que Versaci e emprega enquanto “armas” da sua argumentação.

1 comentário:

Isabelinho disse...

Olá Pedro:
Ainda só li o primeiro capítulo (que funciona como introdução) e já há uma ou duas coisas que considero muito questionáveis. Por um lado há aquilo que referes sobre uma espécie de complexo de inferioridade e espírito de cruzada já um pouco "deslocado" nos dias de hoje. Mas pior: na ânsia de afirmar a banda desenhada, na sua espicifícidade e capacidades expressivas, cai no essencialismo (fala, por exemplo, de estruturas narrativas seriadas como se isso, por um lado, não existisse noutras formas, e por outro, não fosse contingente a uma história de arte de massas; quer dizer, tivessem sido outras as circunstâncias históricas e outro galo cantaria...). Mas Versaci, parece-me, pelo pouco que li, repito, tem uma tendência grande para confundir o essencial (coisa que eu acho que não existe, mas enfim...) com o circunstancial.
Versaci Vai também ao exagero de dizer que _Eightball_ # 22 e 23 são, em conjunto, "a mais económica e detalhada exploração de um dado meio de expressão jamais feita por um escritor ou artista". Esta afirmação grandiloquente é obviamente absurda e leva-me a dizer que não é necessário passar do complexo de inferioridade ao complexo de superioridade. Se a banda desenhada não é ontologicamente inferior às outras artes, também não é superior a nenhuma delas.