2 de março de 2008

Acme Novelty Library # 18. Chris Ware (auto-edição)

Penso que podemos empregar o descritivo “inacabado” a uma obra de arte de duas maneiras. De uma forma mais definitiva, naqueles exemplos onde a morte – ou uma sua substituta menor (é sempre menor, forçosamente) – se veio instalar como obstáculo ao acabamento de uma obra qualquer, em relação à hipotética vontade do autor (penso no Maestro de Caran d’Ache ou no l’Alph’Art de Hergé mas também nas imagens que Botticelli iniciara para ilustrar a parte do Inferno, da Divina Commedia, para ser impressa). Outra classe de instâncias é quando estamos perante uma obra que ainda progride e entendemos que cada um dos seus novos blocos (história, livro, contribuição) obrigam a repesar e repensar o que lhe pertence, e veio atrás. Noutros momentos neste espaço, havia tomado de empréstimo a expressão de Herberto Helder, e referido essas obras como se de um Poema Contínuo se tratassem. Esta situação não ocorre com todos os autores, nem sempre da mesma maneira num mesmo autor. Há alguns autores cujos novos livros são simplesmente novas unidades, autónomas, suficientes, que virão a ser consideradas como parte de “toda a sua obra” após a morte do autor, mas sê-lo-ão de um modo meramente nominal, arquivístico, embora os elementos constituintes dessas novas obras não contribuam de forma clara para a redefinição das anteriores.
Chris Ware pertence a um número reduzido mas feliz de autores que parecem conseguir manter-se numa mesma senda, em que cada livro novo surge como uma peça de um contínuo perfeito.
O que começara como sucessiva pesquisa sobre o humor, e que o próprio título da sua série revela (primeiro na Fantagraphics, agora por conta própria: “Acme” remetendo para a marca omnipresente nos filmes animados da Warner Brothers e “Novelty Library” para a ideia de uma colecção de publicações baratas e descartáveis, de fruição momentânea mas também momentaneamente empolgante), explorando todo o rol de lugares-comuns da banda desenhada e cultura popular – astronautas, cowboys, super-heróis, gatos e ratos, etc. – foi paulatinamente deslizando para um território cada vez mais mergulhado na angústia. Não é que as histórias de personagens como Quimby, the Mouse, Sparky, a abelha Branford, Rocket Sam, Big Tex, o “homem-batata” (sem nome), Rusty Brown, a versão patética do Super-Homem e a mais solitária das suas personagens, Deus, não sejam histórias de humor que não albergam no seu âmago tragédias profundas. Até podemos mesmo encontrar nessas histórias dramas humanos terríveis, desconcertantes, mas sobre o qual se havia depositado uma cobertura de comédia. Nesse sentido humano que Charles Chaplin explorava nos seus filmes e que raras vezes foi, se o foi, superado. As “fontes” de Ware são bastante claras e várias oportunidades houve em que isso se tornou patente. Max Fleischer, Frank King, George Herriman, Charles Schulz e tantos outros. O aspecto em comum em todos estes artistas é que criaram linguagens plenas de representações estilizadas do mundo para expressar aquilo que de mais emotivo nos move. Todavia, é natural que Ware se tenha permitido ir mais longe, não num sentido de “profundo”, pois há vários caminhos para rasgar a superfície e chegar ao verdadeiro coração do homem, mas num sentido de que o momento histórico em que ele criou os seus livros permitia uma abordagem mais adulta da banda desenhada, sem condescendências para com o público mais generalizado. E assim chegou a essa obra-prima – no mais completo sentido desta palavra, usada as mais das vezes ao desbarato – que é Jimmy Corrigan, the Smartest Kid on Earth.
A personagem principal do volume 18 é uma jovem rapariga, que não tem uma perna, está a tentar terminar os estudos superiores, trabalha numa florista, rememora a única relação que teve (um homem bem mais velho e que conseguiremos entender não ter sido a pessoa mais bem formada do mundo), recordando o seu velho gato e tentando resguardar-se de todas as maneiras dos males que advêm da vida. Já havia surgido nas “Building Stories” do volume 16, e acabou por ir ganhando vida noutras publicações em que Ware participou (a Kramer’s Ergot 6 ou a McSweeney’s, por exemplo). Todas essas histórias se reúnem neste volume, assim como material novo. O facto desta personagem ter sido empregue numa pequena série de histórias em que Ware havia feito uma abordagem formal experimental (de que falámos anteriormente) talvez tenha impelido Ware a continuar essa experimentação. Todo o livro é legível, como tem sido característica do autor norte-americano: se a capa evita qualquer tipo de informação visual (exceptuando o lacónico título da série, o número e um breve arranjo gráfico), as guardas participam imediatamente da diegese, apagando essa ideia mesmo de guarda – (já no ANL # 16 tinha explorado um “genérico” em torno da neve/chuva televisiva). É possível identificarmos pelo menos vários “episódios” simplesmente pela tipologia da composição das páginas, apresentadas como breves sequências uniformes, ainda que não autónomas em relação à história completa, e distribuídas intricadamente. Para quem segue a noção hipotética da tressage de Groensteen, este livro é um território riquíssimo de estudo e análise.
Tentemos detectá-las: temos a primeira estrutura, o “exórdio”, num esquema circular e plurilegível (que já havia explorado antes, como na capa da McSweeney’s); existem as páginas de estruturação metódica, em vinhetas regulares e múltiplas; existem as páginas duplas, centradas por uma imagem que se torna de imediato o núcleo das acções disposta nessa unidade narrativa; as pranchas-monólogo que começam com o início da frase como um título e perseguem um texto contínuo desfasado em relação às imagens que retratam um tempo e acção maiores do que o texto, mas com ele relacionadas; as páginas que apresentam os sentimentos e as memórias do próprio edifício, revelando secções dele mesmo, e as leituras que faz dos seus inquilinos; e as três pranchas que vão revelando as camadas que compõem o corpo da protagonista para chegarmos a interpretações mais profundas [vejam-se as várias imagens ao longo do artigo]. Tudo isto é muito fácil de perceber durante a leitura. Depreende-se que Ware explora modos diversos de poder escavar este personagem, como se transformasse a alma e espírito desta rapariga numa estação arqueológica que pudesse ir explorando com vários instrumentos.
Por um lado, mais imediato e superficial, temos toda uma série de elementos que nos permitem criar retrospectivamente a “história” desta rapariga, uma parte substancial da sua vida, as suas relações, e a sua inscrição no espaço que “agora” habita e é o palco de estruturação destas mesmas narrativas. Mas também podemos procurar uma outra perspectiva. A uma primeira vista, poderá parecer que a abordagem ultra-estilizada de Ware implicaria um apartamento total, “frio”, dir-se-ia, da esfera das emoções humanas. Mas aqui recordamos os nomes arrolados acima, a propósito das influências – os rios que fluíram na sua direcção, para o seu interior, de que ele é efluente e em que é fluente – que participam deste mesma natureza. Encerrando as suas personagens em corpos e paisagens aparentemente delineadas com os instrumentos mais rigorosos, e em planificações que parecem não deixar espaço à espontaneidade, erigem os mais exactos, pautados e por isso mesmo mais dolorosos retratos da existência humana. Veja-se a página (o que chamei de “monólogo”, pois são ininterrompidos por falas, e são transmitidos em balões, criando essa ilusão teatral) que inicia “That girl” e apercebamo-nos como se desenha um movimento de aproximação e afastamento dessa outra rapariga, de compreensão e negação dos seus sentimentos, acompanhando as palavras da nossa protagonista.
É sabido como Ware, quer em pessoa quer nas suas aparições ficcionais, gosta de se apresentar como alguém aberrantemente tímido e inseguro, e até mesmo desinteressante e alheio e dissimulado para com o que o rodeia. Esta nova personagem, na continuidade, mas numa curva ascendente, das anteriores, vem provar exactamente o contrário: a sua capacidade não de imitação – que passa por “realismo” nos nossos dias – mas de uma subtil e empática observação para depois nos devolver trechos da vida como apenas a ficção nos na pode explicitar e fazer compreender.

1 comentário:

Guilherme disse...

Chris Ware é um gênio. Está no hall dos maiores criadores e transgressores de linguagens desse início de século. Infelizmente, aqui no Brasil, o seu trabalho ainda é pouquíssimo conhecido (como muitos gênios do indie e underground).

Aprecio muito o seu blog. É o melhor sobre quadrinhos (banda desenhada)em língua portuguesa que conheço.

Abraços.